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A culpada é a vítima

10 de Fevereiro de 2019 às 11:35

A responsabilização da vítima pelo crime da qual foi alvo tem sido um desses paradoxos que tem perseguido o ser humano há muito tempo. Mais que um paradoxo, é um oximoro, pois traz embutido em si uma forte contradição, como sugere a origem da palavra, em grego.

É quase uma preferência nacional quando se tenta justificar a ineficiência operacional, a incapacidade de investigação policial. “Fulano estava andando com o celular a mostra por isso foi morto”. “A jovem foi estuprada porque estava vestida de tal forma”. “A família foi roubada na favela porque o GPS não deu a direção certa”. Esse tipo de raciocínio já atingiu a região metropolitana de Sorocaba, em Araçoiaba da Serra, explicando com especial efeito numa dedução pós-sherlockiana, a nova onda de pequenos assaltos e furtos, até que aconteça algo mais grave, uma vez que são assaltos com armas de fogo: “Polícia reclama da falta de denúncias dos moradores em Araçoiaba da Serra. Ausência do registro de boletins de ocorrência prejudica o trabalho da polícia.” São manchetes do jornal Cruzeiro do Sul da semana passada. O fato relata fatos na cidade vizinha a Sorocaba, mas nada é diferente de outras cidades menores na nossa região. Talvez Tatuí escape dessa análise por ser uma das cidades menos violentas do Brasil com população acima de 100 mil habitantes.

Continua o Cruzeiro do Sul: “Araçoiaba da Serra vem sofrendo com uma onda de violência em termos de roubos e furtos e a Polícia Civil reconhece que o problema existe, mas reclama que as vítimas não têm registrado boletim de ocorrência (BO). (...) Para a Polícia Civil, criou-se em Araçoiaba da Serra uma espécie de “delegacia paralela”, com denúncias e informações sendo feitas por meio de redes sociais, mas que não são passadas para os locais competentes.”

O que não se pergunta é porque a população não quer registrar as ocorrências na delegacia de polícia local. O que não explica a Polícia Civil é onde está operando a delegacia enquanto tem seu prédio reformado, sem qualquer placa que indique o novo endereço. Mais que isso, não se pergunta, independente de local, quanto tempo um cidadão assaltado tem que aguentar em fila de espera para registra um boletim de ocorrência para obter como resultado ser uma mera estatística a mais. Mais, que é público e notório: o receio que tem um cidadão de bem de, após ter feito

seu registro, na rara possibilidade de alguém ser preso, esse mesmo meliante ser colocado em liberdade em poucos dias e vir ameaçar o denunciante.

A triste realidade é que apenas 4%, isso mesmo, 4 casos em cada 100, dos crimes ocorridos no Estado de São Paulo em 2018 foram solucionados. “A Polícia Civil de São Paulo só conseguiu solucionar 4% dos crimes que mais preocupam a população nesse ano. Dos 788.405 homicídios dolosos, estupros, latrocínios, roubos e furtos

registrados no estado de janeiro a outubro, somente 32.150 foram esclarecidos. Os dados de resolutividade foram obtidos pela rádio Jovem Pan via Lei de Acesso à Informação. Já as informações sobre a quantidade de boletins de ocorrência são divulgadas todo mês pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), que, questionada pela

reportagem, não justificou os baixos índices. Os roubos compõem a categoria com menor quantidade porcentual. Apenas 3,6 de cada 100 casos foram solucionados em 2018. O número inclui todos os tipos de roubo registrados em São Paulo: de rua, de veículos, de cargas, a residências, bancos, casas, ônibus, entre outros. No total desse delito, foram 268.939 casos e apenas 9.753 esclarecimentos. Isoladamente, 3% dos roubos de veículos foram solucionados, enquanto o índice foi de 5% para os roubos de cargas. Aparecem com 42% os roubos a banco, que tiveram 21 boletins até outubro.”

Há cerca de uma semana, um homem foi preso pela polícia em Araçoiaba da Serra e confessou ser o autor de uma série de assaltos diversos. Um deles foi gravado por câmeras de vigilância. Por falta de registro de ocorrência, o famigerado BO, apesar da ocorrência de fato, poderá ser logo posto em liberdade mesmo tendo confessado, repita-se.  Está preso por porte de arma, apenas isso. E ainda assim, poderá ser libertado por que a ação foi realizada pela Guarda Civil Municipal que tecnicamente não tem fundamento legal para a prisão a não ser quando acompanhada

pela PM ou Civil.

Isso não tira o mérito, no entanto, de que uma pequena e mal aparelhada força policial local, com pouca capacidade investigativa e pouco efetivo, tenha conseguido êxito numa investigação. Mérito porque ouviu a rádio-peão (a informal rede de contatos de cidadãos) e foi fazer trabalho de campo para ver o que existia de realidade? Mérito da GCM de Araçoiaba porque levou a sério as informações das redes sociais e soube filtrar as informações? Ou mérito

porque sente que tem compromisso com o dever e com sua cidade?

Certamente não culpam os cidadãos por serem vítimas e responsáveis por não quererem contatos com a Policia Civil.