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Uso de antibióticos poderia ser evitado em grande parte das cirurgias para implantes dentários

04 de Dezembro de 2020 às 06:00

Um terço da população brasileira acima de 18 anos faz uso de próteses dentárias. Desse grupo, uma parcela que compreende cerca de 16 milhões de indivíduos (ou 11% de toda a população maior de idade) não possui sequer um de seus dentes originais. Os dados, que evidenciam uma questão social bastante problemática, são da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, conforme divulgação pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde.

A área de atuação que compreende as cirurgias de implantes orais é a implantodontia. De acordo com as normas para procedimentos dos Conselhos de Odontologia (Resolução CFO nº 63/2005), essa é uma especialidade voltada à implantação, na mandíbula e na maxila, “de materiais aloplásticos destinados a suportar próteses dentárias, que podem ser unitárias, parciais ou removíveis, e próteses totais”. Essa é uma técnica que costuma ser bem-sucedida, devido principalmente a um fenômeno conhecido como osseointegração.

São muitas as razões que podem levar uma pessoa a perder seus dentes. No caso da professora aposentada Monica Gomes Martins Doná, 50, por exemplo, foi uma queda ainda durante a infância: “Quando eu era criança, caí e machuquei os dentes da frente. Desde então, tanto na adolescência quanto na vida adulta, eu sempre tive problemas nesses dentes. Fiz algumas cirurgias, pois ocorria a formação de pus na gengiva, até que o meu dentista resolveu fazer um implante, quando meus dentes já estavam muito comprometidos.”

No caso de Doná, foi recomendado o uso do antibiótico amoxicilina 500mg, um dia antes da cirurgia e por mais 10 dias após o procedimento. Além desse medicamento, também foi receitado o uso de analgésicos (somente em caso de dor) e de uma solução bucal à base de gluconato de clorhexidina a 0,12%, pelo mesmo período.

Ainda que não seja uma prática protocolar, o uso da amoxicilina é bastante comum em procedimentos pré-operatórios de implantes orais, por diversas razões. Eventualmente, contudo, essa é uma prática questionada e criticada, já que o uso indiscriminado de antibióticos pode resultar em resistência bacteriana, que é um grave problema de saúde pública.

Uso de antibióticos sem real necessidade é prática recorrente em procedimentos odontológicos, aponta pesquisadora. Foto: Alexandre L. M. Monteiro

“Essa discussão é muito importante, pois o uso indiscriminado de antibióticos, que gera bactérias resistentes, principalmente em ambiente hospitalar, faz com que os antibióticos não tenham mais efeito quando o uso se faz de fato necessário. O ideal é usar o antibiótico somente quando é realmente preciso. Esse é o X da questão”, defende a pesquisadora Patrícia Spada Gimenez, que, em 2014, defendeu uma dissertação sobre o tema no Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso).

Avaliando as reais necessidades

A pesquisa de Gimenez apresenta algumas condições em que o uso de antibióticos é indicado no caso de cirurgias odontológicas: quando não é possível realizar a cirurgia num local limpo e adequadamente higienizado; quando há várias intervenções cirúrgicas seguidas programadas; quando é enxertada grande quantidade de biomaterial; e quando há risco de endocardite infecciosa, mas apenas no caso de pacientes suscetíveis.

Para comprovar a real necessidade do uso desse tipo de medicamento, Gimenez conduziu um estudo clínico randomizado com 135 pacientes que estavam para passar por cirurgias de implantes orais, entre setembro de 2012 e fevereiro de 2013. A ideia era comparar a eficácia do procedimento seguido do uso de antibiótico (amoxicilina) e de anti-inflamatórios (dexametasona e nimesulida).

Os pacientes foram divididos em quatro grupos, que receberam diferentes conjuntos e concentrações dos medicamentos. Dois grupos passaram pelo procedimento apenas com o uso de anti-inflamatórios e os outros dois receberam ambos os medicamentos (anti-inflamatórios acrescidos de antibióticos). Além disso, todos foram acompanhados por sete dias após o procedimento, além de receberem um questionário para avaliar o nível de dor no pós-operatório.

Por meio do estudo, a pesquisadora concluiu que o uso de antibióticos se mostrou desnecessário. “Na verdade, o antibiótico é mais um conforto para o profissional que vai fazer a cirurgia, para poder deitar a cabeça no travesseiro sossegado sabendo que não haverá nenhuma complicação”, ela diz. Vale lembrar, contudo, que essa afirmação só vale nos casos em que a cirurgia é controlada e quando é possível acompanhar o paciente depois dos procedimentos. Nem sempre isso é possível, por várias razões.

Uma questão que também é social

Apesar de todo o conhecimento dos profissionais sobre os problemas que o uso indiscriminado de antibióticos pode provocar na população, a situação envolve diferentes fatores sociais, como destaca o orientador do estudo, o professor doutor Fernando de Sá Del Fiol. “Há um conjunto de atores envolvidos nesse processo: a indústria farmacêutica, que faz uma propaganda maciça em prol do uso de antibióticos; a população em geral, que vê nos antibióticos um sinônimo de saúde e exerce pressão sobre os médicos; os profissionais da saúde, que prescrevem os medicamentos”, ele diz.

No caso desses profissionais, a prescrição pode ocorrer por excesso de zelo, considerando possíveis deficiências nos sistemas de saúde, que impossibilitam conduzir o acompanhamento regular de um paciente. “Se uma criança passa hoje pelo posto de saúde, o médico pode pensar ‘poxa, vamos aguardar até amanhã para ver como vai ser a evolução do quadro’, só que amanhã os pais da criança podem não levá-la novamente, ou amanhã o médico pode não ter um novo plantão naquele posto de saúde... Então o que ele faz? Ele usa o antibiótico ‘só para garantir’. Ou seja, nem sempre a situação é assim tão simples”, ele relativiza.

Ainda assim, são pesquisas como a de Gimenez que, em última instância, ajudam a corroborar alternativas mais conscientes de prescrição, de modo a propor soluções para um problema que afeta o mundo todo — segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que, anualmente, 700 mil mortes são decorrentes de infecções causadas por bactérias multirresistentes, como são chamadas aquelas que adquirem resistência a mais de um tipo de antibiótico. Assim, se o uso desses medicamentos puder ser evitado em intervenções comuns, como é o caso dos implantes dentários, garante-se uma maior probabilidade de que eles venham a funcionar em procedimentos médicos mais graves.

Para saber mais: O que é osseointegração?

Segundo histórico disponibilizado pela Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas (APCD), os primeiros registros de implantes dentários ocorridos na história da humanidade datam de mais de 5 mil anos atrás. Há registros de implantes sendo realizados no Egito e nas civilizações pré-colombianas há cerca de 3 mil anos, com materiais tão diversos como pedras preciosas, conchas, dentes falsos esculpidos em marfim ou dentes de animais de verdade. Contudo, o fenômeno conhecido como osseointegração — a união entre o osso e uma superfície de titânio — foi estudado somente no fim do século XX, quando o professor sueco Per-Ingvar Bränemark publicou seus estudos sobre a aplicação de implantes osseointegrados. No Brasil, a técnica vem sendo utilizada desde 1987. Desde a década de 90, ela é considerada uma especialidade pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO).

Para saber mais: A resistência bacteriana

O surgimento de bactérias resistentes a antibióticos se dá pelo fenômeno da seleção natural: as bactérias estão se reproduzindo constantemente, gerando novas gerações de bactérias mais adaptadas a sobreviver num dado ambiente. Se considerarmos um ambiente com determinada quantidade de antibiótico e, em seguida, aumentarmos a concentração desse medicamento, muitas bactérias morrerão, mas aquelas que estiverem aptas a sobreviver continuarão se multiplicando, gerando uma nova geração de bactérias resistentes à nova concentração de antibióticos. Mais informações sobre o combate à resistência bacteriana podem ser conferidas na reportagem “Resistência Bacteriana: solução perpassa restrição de uso de antibióticos e educação”, publicada na edição de número 3 (jun./2019) da revista Uniso Ciência.

Com base na dissertação “Atividade de amoxicilina, dexametasona e nimesulida como agentes profiláticos em cirurgias de implantes orais”, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Uniso, com orientação do professor doutor Fernando de Sá Del Fiol e aprovada em 24 de junho de 2014. Acesse a pesquisa: http://farmacia.uniso.br/producao-discente/dissertacoes/2014/Patricia_Spada_Gimenez.pdf

Texto: Alexandre L. M. Monteiro, Edilson F. Junior, Janayna P. Borba, Matheus R. de Oliveira, Vinícius S. Rocha, da Agência Experimental de Jornalismo da Uniso