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Pedagoga estuda dificuldades de surdos para compreender informações exibidas pelo sistema Closed Caption

16 de Março de 2021 às 12:31

Eu ir sua casa hoje não. Ocupada. Eu ir filha minha médico. Ela bem, não. Espirra, espirra. Garganta ruim, cabeça dor, dormir, dormir. Desculpar ok?

Você conseguiu entender o parágrafo acima? Provavelmente, você teve de ler duas ou três vezes com bastante calma para compreender a mensagem. Agora, imagine ler este parágrafo uma única vez, bem rápido, em meio a um texto enorme, todo escrito desta forma. É mais ou menos assim que uma pessoa surda compreende um telejornal legendado pelo Closed Caption, um sistema criado, justamente, para permitir que deficientes auditivos possam acompanhar os programas.

A tradutora e intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais), Francimar Mangabeira Martins Maciel. Foto: Paulo Ribeiro / Arquivo-Uniso

Tradutora e intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais), a pedagoga Francimar Mangabeira Martins Maciel pesquisou as dificuldades encontradas pelos surdos para compreender as informações transmitida em jornal televisivo pelo sistema Closed Caption. O trabalho foi resultado da sua dissertação no mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso), concluído em 2018, sob orientação do professor doutor Paulo Celso da Silva. Mais do que constatar as dificuldades, a pesquisa de Maciel aponta sugestões de adaptação do atual modelo de legenda oculta para facilitar a compreensão dos surdos.

O Português e a Libras

O trabalho da pesquisadora deixa claro que a legenda é uma grande aliada para a acessibilidade de pessoas com deficiência auditiva, isto é, com déficit de audição. Mas para quem é completamente surdo e tem a Libras como sua primeira língua, a história é outra.

Segundo Maciel, os surdos são pessoas com cultura e língua próprias, que precisam ser levadas em consideração pelo sistema Closed Caption. “É possível que para os surdos implantados e deficientes auditivos, que dominem a língua portuguesa, as legendas televisivas façam sentido. Mas isso não ocorre com os surdos. Eles têm grande dificuldade para ler e entender o idioma oral. E o Closed Caption apresenta de forma escrita exatamente o que está sendo falado”, explica.

A percepção sensorial do surdo é essencialmente visual, tendo acesso restrito, ou nenhum acesso, à modalidade oral do Português. A pesquisadora explica que, embora a Língua Brasileira de Sinais (idioma reconhecido oficialmente no país desde 2002) possa parecer uma sequência de gestos utilizados de forma a acompanhar a estrutura da fala ou escrita da língua portuguesa, a Libras é estruturalmente complexa e distinta do Português.

Para explicar ao público leigo essas diferenças, Maciel apresenta em sua pesquisa algumas sentenças que mostram como uma pessoa surda teria dificuldade de entender o sentido. Um exemplo é a frase: "O ontem já passou, mas o amanhã pode não chegar”. Nela, há um problema triplo de compreensão para os surdos: “passou”, “amanhã” e “chegar”.

“A Libras dispõe do significado de cada uma destas palavras, mas elas não teriam sentido para esta frase. ‘Passar' refere-se a sentidos que não estão ligados a 'ontem', como por exemplo: passar roupa; a pessoa passou correndo; ele passou de ano... Para cada uma destas frases o sinal para a mesma palavra 'passar' é diferente, por causa do contexto. Para a palavra ‘amanhã’, o sinal se refere a algo literal, ou seja, amanhã é quinta-feira. No caso desta frase, o sentido é de 'futuro' e deveria ser utilizada a palavra ‘futuro’. No caso de 'chegar', pode-se dizer que uma pessoa chegou ou que o carro chegou, mas não poderia haver concordância para dizer que ‘o amanhã pode não chegar’”, ensina a pesquisadora.

Além do problema do sentido das palavras, há também a questão da estrutura da frase, ou seja, da localização dos termos na sentença, que na Libras pode ser diferente do Português. “Por exemplo: ao dizer ‘Ângela chegou atrasada’, o surdo possivelmente utilizará: ‘Ângela atrasada chegar’. A língua de sinais possui estrutura própria e distinta da língua portuguesa. Podemos nos reportar à língua inglesa, em relação ao Português: a ordem pode diferenciar-se, e quase sempre o faz. Enquanto a língua portuguesa é estruturada no sujeito-predicado, a Libras é uma língua de estrutura tópico-comentário", detalha Maciel, que destaca: “as distâncias existentes entre o Português e a Libras podem causar distorções na notícia do telejornal e anular as boas intenções do Closed Caption”.

Pesquisa em campo

Além de toda pesquisa bibliográfica e do uso da experiência de Maciel como tradutora e intérprete de Libras, seu trabalho de mestrado ainda aplicou uma abordagem empírica, com a realização de duas reuniões com vinte pessoas surdas para analisar as legendas ocultas do jornal televisivo. As entrevistas são reveladoras. Um dos surdos entrevistados explicou: "Sempre assisto ao jornal, mas não é possível entender tudo. Às vezes, trechos inteiros ficam sem entendimento”.

Os entrevistados destacaram, ainda, que consideram a língua portuguesa um idioma difícil, muitas vezes incompreensível para os surdos, e que as legendas do telejornal apresentam outras barreiras, como a rapidez em que o texto aparece na tela e a falta de sincronia com a imagem que é transmitida.

“O Closed Caption, hoje, é uma cópia fiel da narração e constitui-se numa barreira para o entendimento dos surdos", afirma a pesquisadora. Para melhorar o sistema de legenda oculta, Maciel defende uma “mudança na concepção de modelo do conteúdo” do Closed Caption para que, entre outros pontos, o texto se torne mais próximo da Libras. “Atualmente, fala-se muito em acessibilidade e em inclusão. Minha pesquisa procurou explorar a inclusão pela comunicação, considerando inclusive que a problemática apresentada, relativa à legenda oculta, possa se resumir a um problema de tradução", conclui.

Texto elaborado com base na dissertação “A Legenda Oculta no Jornal Televisivo e a Comunicação dos Surdos”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso, com orientação do professor doutor Paulo Celso da Silva e aprovada em 28 de fevereiro de 2018. A dissertação pode ser encontrada e baixada no site: https://cutt.ly/szMTF9y

Texto: Marcel Stefano