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Hormônios na sua água potável e como removê-los

19 de Novembro de 2019 às 15:08

Você já parou para pensar sobre o que acontece depois que você vai ao banheiro? Se você tiver o privilégio de habitar uma região com tratamento adequado de esgoto, depois que você dá a descarga a água e os dejetos (para usar uma palavra menos indigesta) seguem por tubulações até chegar às estações de tratamento. O objetivo dessas estações é garantir que os efluentes sejam devolvidos ao ambiente da forma mais limpa possível, para que a água possa, inclusive, ser consumida novamente. Nesse processo todo, a concentração populacional é um grande problema, pois nas cidades há centenas — ou milhares, ou até mesmo milhões, dependendo de onde você more — de pessoas dando a descarga ao mesmo tempo. É muito material para tratar de uma vez só e vale lembrar que os sistemas de tratamento simplesmente não estão adequados para filtrar todos os poluentes que existem.

A pesquisadora Márcia Regina T. Bovo propôs um sistema de adsorção com carvão ativado. Foto: Paulo Ribeiro

Fato curioso: a água de esgoto da cidade de Amsterdã, por exemplo, é, em toda a Europa, a que mais contém resíduos da droga recreativa conhecida como ecstasy — o que pode estar associado aos hábitos de consumo de drogas na capital holandesa (os dados, divulgados pelo jornal holandês NL Times, são de uma pesquisa desenvolvida pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, cujos resultados foram publicados em março de 2018). Mas as drogas, lícitas ou não, não são as únicas substâncias que, depois de serem processadas pelo metabolismo humano (ou animal), podem ser encontradas na água de esgoto. A mesma coisa acontece com os hormônios, sejam eles naturais ou sintéticos. E é agora que vem a parte assustadora: às vezes, se não houver a filtragem adequada dessa água residual, essas substâncias podem passar pelos sistemas de tratamento tradicionais, retornando à população por meio da água que as pessoas chamam de potável, ou seja, aquela que você bebe.

“Muitos desses compostos se enquadram no grupo dos desreguladores endócrinos, substâncias que alteram o sistema hormonal e causam efeitos adversos à saúde”, diz a pesquisadora Márcia Regina Teles Bovo, que desenvolveu um sistema de filtragem como parte de seu Mestrado em Processos Tecnológicos e Ambientais, na Universidade de Sorocaba (Uniso). Ela explica: “Os desreguladores endócrinos químicos estão sendo cada vez mais associados ao aumento da incidência de doenças não transmissíveis, como, por exemplo, doenças da tireoide, obesidade, diabetes e até mesmo alguns tipos de câncer. Vários tipos de desreguladores podem interagir com o sistema reprodutor feminino, causando doenças. Entre os efeitos provocados pode-se citar a puberdade precoce, a síndrome dos ovários policísticos e a falência ovariana prematura. Isso sem contar a mistura no organismo de dois ou mais desreguladores com mecanismos de ação parecidos, o que pode ocasionar efeitos ainda não estudados.”

Há também uma preocupação ambiental, já que, a partir do esgoto, os hormônios vão parar nos rios e se acumulam nos sedimentos e no solo. Eles podem ser assimilados pelos animais, desregulando sua reprodução e seu desenvolvimento — nos peixes, podem induzir características femininas em indivíduos machos, tornando-os estéreis e possivelmente reduzindo populações inteiras à extinção. Mas não é só isso: o acúmulo se dá ao longo da cadeia alimentar, passando de espécie para espécie. E quem é que está no topo dessa cadeia? Se você disse “o ser humano”, o prêmio é seu. Não que seja uma boa notícia, de qualquer forma.

O que fazer, então, já que deixar de consumir água está longe de ser uma opção? Essa é uma pergunta que representa um desafio para as companhias de saneamento em todo o mundo e a pesquisa de Bovo é um passo para ajudar a resolver essa questão. O que ela propõe é um sistema de adsorção com carvão ativado de casca de coco, que possa ser escalonado para nível industrial e um dia integrado ao sistema de tratamento convencional de água, para adsorver determinados hormônios.

Em seus experimentos, Bovo considerou dois hormônios sexuais: o 17-?-estradiol e o 17-?-estradiol. O primeiro é utilizado em terapias de reposição hormonal, com o intuito de reduzir os sintomas da menopausa; já o segundo é responsável pelas características femininas e, dentre os estrogênios, é um dos principais causadores de desregulação hormonal.

“Esses experimentos apresentam a possibilidade de se reduzir o nível residual dos dois hormônios, quando presentes na água, por meio de um sistema idealizado para fazer uso do carvão de casca de coco”, diz a pesquisadora. A vantagem de se usar o carvão é o fato de se tratar de um tratamento de baixo custo, bastante popular, que utiliza resíduos agrícolas normalmente descartados.

Em relação ao escalonamento industrial, o estudo mostra que é possível aplicar a técnica em grandes estações de tratamento, sendo que o volume de carvão a ser utilizado depende, entre outras variáveis, da concentração de hormônios registrada no local de aplicação do projeto. Varia também o tempo que levaria para o carvão se tornar saturado — ou seja, incapaz de continuar filtrando. Nesse momento, o carvão pode ser incinerado e reaproveitado para outros fins.

Segundo a pesquisadora, estudos como esse podem incentivar a população, no Brasil e em outros países, a pressionar os seus governos a criar leis específicas para incluir os níveis toleráveis de hormônios nos parâmetros de aceitabilidade da água potável. Hoje, no Brasil, a portaria n° 2914 do Ministério da Saúde, de 12 de dezembro de 2011, determina alguns parâmetros como cor, turbidez, pH e algumas substâncias permitidas em determinadas concentrações, além de parâmetros microbiológicos, mas não abrange níveis de hormônios. “Análises envolvendo esse assunto ainda se restringem às pesquisas realizadas por instituições independentes e universidades”, Bovo conclui.

Texto: Guilherme Profeta

Texto elaborado com base na dissertação “Remoção de estrogênios de águas tratadas destinadas ao consumo humano, por adsorção em carvão ativado de casca de coco: estudo de caso com 17-?-estradiol e 17-?-estradiol”, do Programa de Pós-Graduação em Processos Tecnológicos e Ambientais da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação do professor doutor Victor Manuel Cardoso Figueiredo Balcão e aprovada em 24 de setembro de 2018. Com dados adicionais do estudo “A análise das águas residuais e a droga - um estudo multimunicipal europeu”, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência. Acesse a pesquisa pelo link http://pta.uniso.br/documentos/discentes/2018/marcia-bovo.pdf