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Em busca de alternativas para o tratamento de picadas de serpente

21 de Setembro de 2020 às 16:07

Certa vez, o funcionário de um ferro-velho decidiu movimentar uma pilha de pneus há muito acumulados num canto. Ao colocar as mãos por dentro da borda de um dos pneus, foi surpreendido, sem aviso, por uma dor lancinante. Ele ainda não sabia, mas tinha acabado de sofrer um acidente ofídico, como são chamados os eventos em que seres humanos são picados por serpentes peçonhentas. O mesmo aconteceu com um médico veterinário que realizava uma necropsia no corpo de outra serpente e acabou se ferindo acidentalmente com a presa do animal, que inoculou o veneno mesmo depois que a serpente estivesse morta. Ambos os casos são reais e foram mencionados pelo professor mestre Rodrigo Hidalgo Friciello Teixeira, do curso de graduação em Medicina Veterinária da Uniso, ex-apresentador do programa de TV “Dr. Selvagem”, dos canais por assinatura Animal Planet e Discovery Channel.

O professor mestre Rodrigo Hidalgo Friciello Teixeira, no Hospital Veterinário Universitário da Uniso. Foto: Paulo Ribeiro

“De fato, as interações entre humanos e serpentes não passam disto: acidentes”, enfatiza Teixeira. Ele conta que, apesar do pânico que as pessoas costumam sentir em relação a esse grupo de animais, os seres humanos não são presas naturais de nenhuma espécie de serpente. “Os acidentes ocorrem, em sua grande maioria, quando as pessoas se aproximam delas sem perceber a sua presença. Geralmente esses encontros acontecem com pessoas que trabalham no campo, em ambiente natural, que podem de forma involuntária pisar nos animais ou colocar as mãos em seus abrigos, como buracos, cupinzeiros inativos, entulhos, madeiras e montes de folhas — ou mesmo numa pilha de pneus, como aconteceu com o funcionário do ferro-velho em ambiente urbano.” Segundo o especialista, os animais selvagens se aproximam dos seres humanos quando perdem seus habitats naturais, buscando alimento e abrigo. No caso das serpentes, o que costuma acontecer é que as pessoas criam as condições ideais para a proliferação de roedores, o que as acaba atraindo quando elas estão em busca de uma refeição.

Estimar a quantidade de picadas de serpente que ocorrem todos os anos no mundo pode ser bastante difícil. Segundo um boletim da Organização Mundial da Saúde (OMS) publicado em 2018, os relatos anuais passam de cinco milhões. O número de mortes pode ultrapassar a marca de 137 mil, enquanto as sequelas permanentes, como amputações, podem chegar a três vezes esse número. São dados bastante alarmantes, que fizeram com que a OMS passasse a tratar os acidentes ofídicos como doenças tropicais negligenciadas. A lista reúne uma série de enfermidades que já não existem nos países desenvolvidos, mas ainda persistem nas nações em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, onde, em 2014, por exemplo, foram relatados nada menos do que 27.261 acidentes ofídicos, segundo dados do Ministério da Saúde.

A jararaca é uma das serpentes do gênero Bothrops. Foto: Paulo Ribeiro (serpentário do Parque Zoológico Municipal Quinzinho de Barros)

No Brasil, existem 250 espécies diferentes de serpentes, das quais 70 são peçonhentas — ou seja, são capazes, por meio de suas presas, de inocular veneno no organismo de outros animais. Dessas, aquelas do gênero Bothrops representam não apenas o maior grupo (com mais de 60 espécies), mas também o mais perigoso, uma vez que são as responsáveis por 90% das picadas em seres humanos, como é o caso dos dois exemplos reais citados na abertura desta reportagem. A Bothrops jararacussu (popularmente conhecida como jararacuçu) é, dentre as espécies peçonhentas, aquela que produz a maior quantidade de veneno. Diferentemente da cascavel, ela não tem chocalho para alertar os intrusos, o que pode aumentar o risco de encontros inesperados. Algumas das complicações causadas por sua peçonha são a incapacidade de coagulação sanguínea, a hemorragia, a queda da pressão arterial e a necrose na região da inoculação do veneno — ou seja, a destruição dos tecidos, o que pode levar à amputação de membros.

Quando há um desses acidentes, o tratamento costuma ser realizado por meio de soroterapia: após ser picado, o paciente recebe uma dose de soro antiofídico, que contém anticorpos contra um tipo específico de veneno. Apesar de possíveis reações ao soro, a aplicação rápida e adequada tem todo o potencial de salvar vidas. Todavia, o que pouca gente sabe é que o soro antiofídico tradicional nem sempre é a única opção de tratamento.

A alternativa está na flora

“Plantas e seus derivados têm sido estudados como adjuvantes ao tratamento específico, a soroterapia, na tentativa de minimizar os efeitos causados pelos envenenamentos. A flora brasileira compreende uma variedade de plantas com tais efeitos, mas o seu estudo tem sido pouco explorado cientificamente”, diz Natália Tribuiani, que estudou em sua pesquisa de Mestrado, no programa de pós-graduação em Ciências Farmacêuticas da Uniso, a utilização do extrato de uma planta nativa do Cerrado brasileiro, o camaçari (Terminalia fagifolia), para tais fins.

A pesquisadora Natália Tribuiani (à direita) e a orientadora da pesquisa, a professora doutora Yoko Oshima Franco (à esquerda), no Laboratório de Pesquisa em Neurofarmacologia e Multidisciplinar da Uniso. Foto: Paulo Ribeiro

O objetivo da pesquisadora foi verificar se o extrato de camaçari — conhecido também como capitão-do-mato, mirindiba ou pau-de-bicho —, poderia ser utilizado para inibir os efeitos neurotóxicos e miotóxicos do veneno da jararacuçu. Para isso, ela testou o extrato em nervos e músculos de camundongos e pintinhos e os resultados mostraram que ele foi capaz de proteger as células dos efeitos da peçonha, tanto nos mamíferos quanto nas aves. Isso significa que o extrato de camaçari contém moléculas bioativas capazes de atenuar certos constituintes do veneno de jararacuçu, tornando-se um forte candidato com potencial para ser utilizado como um adjuvante ativo, ou seja, como um medicamento que reforça a ação de outro, nesse caso o soro, aumentando a sua eficácia.

Sugere-se que as saponinas (substâncias de origem vegetal com características tensioativas e detergentes) presentes no extrato tenham um papel importante nessa proteção. “As saponinas interagem com o colesterol presente nas células. É essa interação, no fim das contas, que faz com que haja a proteção contra os efeitos neurotóxicos e miotóxicos do veneno”, resume Tribuiani. E isso vale hipoteticamente não só para o veneno da jararacuçu, mas para as peçonhas de todas as outras espécies do gênero Bothrops, já que, em geral, os soros são aplicados de acordo com os gêneros das serpentes, de diferentes espécies.

“Essa pesquisa, finalizada em 2016, foi um estudo inicial, que pode contribuir para outras pesquisas que ainda estão por vir. O extrato de camaçari é promissor e, uma vez que haja a continuidade para um estudo mais aprofundado, de modo a identificar e purificar os seus constituintes, a pesquisa pode ser direcionada para o desenvolvimento de um medicamento comercial, que seja uma alternativa para todas essas pessoas que têm encontros desafortunados com as Bothrops”, conclui Tribuiani.

A Uniso, junto a órgãos de fomento, tem apoiado desde 2004 a linha de pesquisa básica em Toxinologia — ramo da ciência que estuda as toxinas produzidas por seres vivos —, em particular os venenos de serpentes. “Essas pesquisas, em geral, buscam minimizar os efeitos tóxicos do veneno ofídico”, explica a orientadora do estudo, a professora doutora Yoko Oshima Franco. “Isso pode se dar através do uso de extratos naturais, como é o caso do camaçari, mas também através de moléculas bioativas provenientes de produtos naturais, como os fitoquímicos, ou sintéticas, como é o caso das nanopartículas de prata.” Atualmente, há oito estudantes envolvidos em pesquisas relacionadas a veneno de serpentes, cinco de Iniciação Científica, dois de Mestrado e um de Doutorado.

Para saber mais: serpentes não são as vilãs da história

“O pânico em relação às serpentes e a outros grupos de animais, como os morcegos, os escorpiões, as aranhas e os sapos, se dá pela falta de conhecimento”, reforça Teixeira. “Existe em relação a esses animais, que normalmente possuem hábitos noturnos, uma associação ilógica com as trevas e o mal. Com informação e educação, podemos minimizar os efeitos nocivos do horror que os seres humanos possuem em relação às serpentes e a outros animais da nossa fauna.” Ele lembra que as serpentes são consumidores finais, ou seja, estão posicionadas no topo da cadeia alimentar, e podem causar sérias modificações a toda a estrutura da cadeia se forem eliminadas. “Além disso”, ele alerta, “elas são animais protegidos por lei. Eu sinceramente não faço distinção entre um mico-leão-dourado e uma jararaca, por exemplo; ambos são animais da fauna nacional e devem receber a mesma atenção, respeito e carinho. Eu posso garantir que, se ninguém os incomodar, nada de ruim acontecerá.”

Para saber mais: de onde vem o soro antiofídico?

Normalmente, o soro antiofídico é produzido por meio de um processo em que pequenas doses da peçonha de uma serpente são injetadas em cavalos, de forma segura para os animais. Os cavalos produzem, então, anticorpos contra aquele tipo de veneno, os quais são posteriormente extraídos do sangue e filtrados para a produção de um soro concentrado. Esse soro resultante é armazenado em postos estratégicos, de modo que esteja disponível quando houver um acidente envolvendo seres humanos.

Com base na dissertação “Uso do veneno de Bothrops jararacussu como ferramenta farmacológica na avaliação do potencial antiofídico de Terminalia fagifolia (camaçari) pelo parâmetro da sinapse nervo-músculo (camundongo/ave)”, do programa de pós-graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação da professora doutora Yoko Oshima Franco, e aprovada em 29 de fevereiro de 2016. Com dados adicionais da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde. Acesse a pesquisa: http://farmacia.uniso.br/producao-discente/dissertacoes/2016/natalia-tribuiani.pdf

Texto: Guilherme Profeta

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