Editorial
Tal pai, tal filho
É justo também que os médicos e enfermeiros entendam que o serviço público não é um bico
O ano é 1977. Num edifício no centro de Sorocaba, um jovem médico, recém-formado, está prestes a comemorar o primeiro aniversário de seu primogênito. Foram doze meses de muita luta e apreensão. A criança havia nascido com um grave problema de saúde e foram necessários muitos cuidados médicos para que sobrevivesse. A festa era para comemorar esse momento de vitória. O salão já estava quase todo pronto. Mesas postas, bebida gelada, tudo organizado.
Faltavam poucas horas para a celebração começar. Nisso, o porteiro do prédio informa ao médico que ele estava sendo procurado por dois rapazes que se encontravam no portão. Sem desconfiar de nada, o profissional foi até eles. Uma pequena discussão começou e, minutos depois, o pai do aniversariante foi forçado a entrar em um veículo. O carro partiu para lugar incerto.
O sumiço do médico começou a preocupar a família. A festa já tinha começado e nada dele aparecer. As horas foram se passando e a tensão, pela falta de informação, só crescia. A noite acabou e só aí o médico foi deixado na porta do prédio. Exausto e desapontado, contou que os parentes de um paciente que ele atendera dias antes o forçaram a realizar um procedimento de emergência. Praticamente sequestrado, foi obrigado a cumprir todas as exigências da família até que o doente apresentasse sinais de estabilidade. Foram horas de ameaças que resultaram também na perda de momentos inesquecíveis junto à sua própria família.
O tempo passou, o filho do médico cresceu, se formou na mesma profissão e, seguindo os ensinamentos do pai, optou pelo trabalho no serviço público. Passou a dedicar boa parte de sua jornada a atender aqueles que mais precisam. Só que os problemas do passado voltaram a assombrar. O médico de hoje, principalmente o que trabalha no serviço público, enfrenta situações muito parecidas com as registradas décadas atrás. Ameaças de pacientes que ocupam a vaga de quem precisa apenas para conseguir um atestado médico que os libere do trabalho, riscos e depredações nos veículos, tentativas de assalto e uma infinidade de outros dissabores. A mesma rotina é vivida pelos outros profissionais de saúde que trabalham espalhados nas diversas unidades básicas da cidade.
Muitas vezes, como noticiado na edição do jornal Cruzeiro do Sul de quinta-feira, 27, o comportamento de algumas pessoas contra os profissionais de saúde extrapola os limites da civilidade. Foi o que aconteceu na UBS Vila Haro. Um munícipe de 36 anos se achou no direito de agredir, com um pedaço de pau, dois servidores públicos que estavam ali para atendê-lo. Além disso destruiu parte das instalações da unidade, além de causar confusão e medo em quem estava ali presente. Tudo por causa de uma informação desencontrada. O cidadão acabou detido pela polícia, mas isso não apaga os momentos de terror vividos pelos profissionais que atuam no local.
Esse tipo de situação é grave e deve ser resolvida pelo poder público. De acordo com o presidente do Conselho Municipal de Saúde, Milton Sanches, o debate sobre segurança dentro das unidades de saúde é antigo e preocupa a instituição.
A solução não é simples e exige muito empenho de todos os envolvidos no processo. Cabe aos profissionais de saúde garantir o melhor atendimento possível a quem procura os serviços médicos. Toda empatia é necessária na hora de lidar com cidadãos que, na maioria das vezes, estão alterados pela dor ou pela preocupação com a saúde de um ente querido. Cabe à população compreender os limites de cada serviço de saúde e suas funções.
Cabe ao poder público garantir não só as condições de trabalho adequadas aos profissionais de saúde como, também, os estoques de medicamentos necessários para os atendimentos. Outra função vital do poder público é fiscalizar o cumprimento das jornadas de trabalho e das escalas, para que os serviços não deixem de ser oferecidos. A segurança dos locais de trabalho jamais deve ser esquecida.
Cabe às entidades de classe acompanhar esse trabalho e oferecer cursos de aprimoramento para que os profissionais estejam cada vez mais aptos a lidar com o público.
Público este, que no final das contas, é o responsável por pagar os salários desses profissionais. É justo também que os médicos e enfermeiros entendam que o serviço público não é um bico. Não se pode permitir que alguns compareçam ao local de trabalho sem as condições perfeitas de atender bem os pacientes que ali estão. As unidades de saúde não são locais para descanso, nem para colocar a agenda e a leitura em dia. A função é séria e assim tem que ser encarada por todos s contratados, concursados ou não.
Se todas essas estruturas funcionarem em conjunto, vai ficar mais fácil oferecer um serviço de saúde gratuito, universal e de qualidade. É isso que prega a Constituição e que é custeado por nossos impostos.
Não podemos deixar que aptidões que vêm de pai para filho se percam pela falta de condições de atuar em benefício da comunidade. Que aqueles que são realmente abnegados e que seguem à risca o juramento de Hipócrates, sejam incentivados a permanecer no atendimento de quem mais precisa.