Biomedicina
Pesquisadora propõe novo protocolo para cintilografias renais
Novo protocolo foi adotado por centro de diagnósticos em Sorocaba desde 2019

Cerca de 500 milhões de pessoas ao redor do mundo apresentam algum tipo de patologia renal. O número equivale a mais do que o dobro da população brasileira. Desses, 1,5 milhão estão passando por diálise, o tratamento que emula artificialmente as funções dos rins, nos casos daqueles pacientes em que os órgãos estão muito comprometidos para dar conta do recado. No Brasil, segundo dados de 2016, o número de pacientes dialíticos excede os 100 mil, reforçando a importância da prevenção e do diagnóstico apropriado das patologias do sistema urinário, desde a primeira infância quando necessário. Os dados fazem parte de uma dissertação desenvolvida por Fabiana Trevisan, docente no curso de graduação em Biomedicina da Universidade de Sorocaba (Uniso), como parte de seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade, defendido em 2019.
No diagnóstico das patologias renais, os isótopos radioativos integrados a moléculas químicas — os chamados radiofármacos — costumam ser grande aliados. Tratam-se de átomos instáveis, emissores de radiação gama, que são deliberadamente injetados no organismo dos pacientes e, por meio da molécula química acoplada, acumulam-se em determinados pontos do organismo, possibilitando a geração de imagens num processo que recebe o nome de cintilografia. “A característica principal da cintilografia é transformar o próprio paciente numa fonte de radiação, ao contrário de outras modalidades diagnósticas que utilizam, por exemplo, fontes externas de raios-X”, explica Trevisan.
Segundo a pesquisadora, esse tipo de exame, desenvolvido a partir de práticas da medicina nuclear surgidas na década de 1940, conquistou bastante espaço na nefrologia, a área da medicina que trata dos rins, por se tratar de um método que avalia o metabolismo, ou seja, o corpo em funcionamento. “Sendo assim,” ela diz, “é possível mensurar o grau de prejuízo que uma determinada alteração anatômica representa para o funcionamento dos órgãos.”
Na nefrologia, há duas modalidades de cintilografia que, pelo nível de sensibilidade diagnóstica, destacam-se entre os outros métodos disponíveis. Em primeiro lugar está a cintilografia renal dinâmica (CRD), que se faz necessária no caso de doenças obstrutivas, especialmente as hidronefroses, quando ocorrem bloqueios nos canais de urina entre o rim e a bexiga, como nos casos de pedras nos rins. A segunda modalidade é a cintilografia renal estática (CRE), utilizada para identificar cicatrizes renais, geralmente causadas por infecções urinárias reincidentes.
Em ambos os casos, são utilizados isótopos do metal radioativo tecnécio. No caso da CRD, usa-se um radiofármaco chamado DTPA-99mTc e o processo de geração das imagens leva em torno de uma hora. Depois, é preciso esperar 24 horas antes da administração de um segundo radiofármaco, o DMSA-99mTc, que exige de duas a três horas para ser metabolizado. No Instituto de Diagnósticos de Sorocaba (IDS), assim como em muitas outras clínicas no Brasil, esse era o protocolo seguido até pouco tempo atrás, alinhado a diretrizes não só da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN), mas também das sociedades análoga na Europa e nos EUA. O grande problema é que, de acordo com esse protocolo, os dois exames não podem ser realizados no mesmo dia.
“A solicitação médica de exames renais cintilográficos costuma ocorrer aos pares, com estudos que avaliam tanto a ocorrência de obstrução das vias excretoras quanto a presença de cicatrizes e a função renal relativa, uma vez que as informações isoladas não costumam possibilitar uma definição terapêutica. Caso sejam solicitados ambos os exames, os pacientes precisam realizá-los em dois dias separados. São necessárias, assim, duas punções venosas, e os pacientes também precisam estar disponíveis em duas ocasiões distintas, em vez de apenas uma”, explica a pesquisadora. Nos 10 anos que ela tem de experiência na área da medicina nuclear, ela percebeu que esse pode ser um empecilho para um diagnóstico adequado, especialmente quando se trata do público pediátrico, já que a punção endovenosa em crianças pode ser bastante difícil. E é exatamente isso que ela tentou mudar, por meio de seu estudo, avaliando a possibilidade de se realizar ambos os exames num mesmo dia, sem prejuízo clínico aos pacientes.
Para testar a hipótese, Trevisan avaliou 25 pacientes com idades entre 2 e 18 anos, de ambos os sexos, que tinham solicitações médicas para os dois exames. Dos 50 rins considerados (dois para cada paciente), 78% estavam desobstruídos, 6% estavam obstruídos, 6% apresentavam um padrão ainda indeterminado e 10% apresentavam exclusão funcional, ou seja, já não tinham qualquer função no organismo. Todos os pacientes passaram pelos exames de CRD e CRE em sequência, sem o intervalo de 24 horas determinado pelo protocolo antigo. Depois, foram feitas imagens em intervalos de 3, 6 e 24 horas.
Quando as imagens são comparadas, o que se pode observar é que, por mais que exista variabilidade estatística, o nível de variabilidade clínica, que é o que determina a decisão por um ou outro tratamento, não é significativo. A pesquisadora explica que isso acontece porque o cálculo de função renal é categorizado em níveis, que admitem uma grande variação percentual. “Uma obstrução de 0 a 10%, por exemplo, compreende uma única categoria, não importando se o resultado foi 1% ou 9%. O receio que se tinha é que a variação estatística no exame alterasse a classificação clínica, mas isso não aconteceu; há, de fato, alguma variação estatística, mas, ainda assim, os pacientes continuam nas mesmas categorias”, detalha Trevisan. Especialmente quando se considera as fotos feitas com intervalos de 6 e 24 horas, mais de 77% dos resultados são idênticos. Além disso, nos casos em que resta alguma dúvida, existe a possibilidade de se repetir o exame em até 24 horas (enquanto o radiofármaco ainda está no organismo), sem a necessidade de uma nova punção.
Dessa maneira, tendo em vista a comodidade dos pacientes, a pesquisadora propôs um novo protocolo, para substituir o anterior. “Considerando-se o índice de confiabilidade dos resultados obtidos, de 95%, eu finalizo o meu trabalho defendendo que, a partir de agora, há subsídios suficientes para a adoção do protocolo de apenas um dia”, ela diz. A mudança já foi implementada no IDS, que, desde 1º de fevereiro de 2019, vem desenvolvendo ambas as cintilografias no mesmo dia.
Segundo o orientador da pesquisa, o professor doutor José Martins de Oliveira Junior, a alteração de um protocolo pode até parecer um processo simples, mas não é, e é fundamental que tal procedimento seja amparado por evidências científicas, tais quais as obtidas por Trevisan, especialmente numa época dada a “achismos” e pseudociências. “Em primeiro lugar, fez-se necessária a aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, que avaliou se os benefícios que a pesquisa poderia trazer seriam maiores do que os riscos inerentes. Por fim, para que as sociedades científicas aceitem um novo protocolo, deve haver comprovação científica de que ele de fato funciona. Se não tivéssemos obtidos dados estatísticos mostrando que o procedimento podia ser alterado, sem prejuízos ao diagnóstico médico, não teríamos elementos suficientes para defender a mudança”, ele defende.
Com base na dissertação “Cintilografias renais - Protocolo de um dia”, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação do professor doutor José Martins de Oliveira Junior, aprovada em 25 de janeiro de 2019. Acesse aqui.
Texto: Guilherme Profeta
Galeria
Confira a galeria de fotos