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Tratamento inovador para salvar vida de envenenados por picadas de serpentes
A cada ano, mais de 30 mil acidentes ofídicos ocorrem no Brasil

Todos os anos, milhares de pessoas morrem envenenadas por picada de serpentes no mundo todo, sobretudo na região tropical. E o Brasil está entre os principais países com este tipo de ocorrência, chamada de acidente ofídico, com mais de 30 mil casos registrados oficialmente por ano. Para piorar a situação, as picadas de cobra são consideradas “doenças negligenciadas” e constituem um sério problema de saúde pública, segundo classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para mudar este cenário, a OMS instituiu uma política para incentivar o desenvolvimento de estratégias e soluções inovadoras no tratamento das vítimas de animais peçonhentos.
O pesquisador Edson Hideaki Yoshida, da Universidade de Sorocaba (Uniso), aceitou o desafio proposto pela OMS e desenvolveu um tratamento inovador, que pode salvar a vida de muitas pessoas envenenadas por picadas de serpentes, sobretudo pela cascavel. “A soroterapia antiofídica ainda é o único tratamento específico para envenenamentos por animais peçonhentos. No entanto, a soroterapia ainda apresenta limitações principalmente em países em desenvolvimento onde o acesso ao antiveneno é limitado ou inexistente, além da pequena eficácia contra os efeitos locais causados pelo veneno de algumas serpentes como as jararacas e surucucus”, explica o pesquisador.
Nos últimos anos, segundo Yoshida, um achado interessante encontrado em trabalhos científicos para neutralizar os venenos seria o ácido tânico, encontrado em diversos tipos de plantas. Embora esse ácido seja capaz de combater a toxicidade do veneno ofídico, os testes feitos com a aplicação do tanino de forma endovenosa (pela veia) causaram uma série de danos às proteínas constituintes do sangue, o que torna seu uso inviável.
“Então, o grupo de pesquisa comandado pela professora doutora Yoko Oshima Franco decidiu encontrar uma forma para utilizar as propriedades do ácido tânico, o que foi conseguido através do desenvolvimento de um cartucho para hemoperfusão extracorpórea”, conta o pesquisador. O nome é complicado, mas a hemoperfusão é uma técnica que existe há muito tempo para filtrar o sangue, fora do corpo, e remover uma toxina. “O uso de cartuchos nesta técnica tampouco é inovador. Comercialmente, encontram-se cartuchos destinados tanto à hemodiálise como à hemoperfusão. Porém, é inovadora a ideia de um cartucho conter, além do agente adsorvente, um agente precipitante de venenos ofídicos”, detalha Yoshida.
Técnica inovadora
Durante a pesquisa, o grupo de pesquisa construiu um cartucho para hemoperfusão contendo grãos de carvão ativado e filtro polimérico revestido por ácido tânico comercial. O objetivo do carvão ativado era reter o veneno e do ácido tânico, precipitá-lo, de forma que o sangue livre do veneno retornasse à circulação. Com o equipamento pronto, o pesquisador partiu para a segunda fase do estudo, em ratos: testar a eficácia do cartucho em ratos severamente envenenados com venenos de jararaca e cascavel, que apresentavam uma lesão renal aguda, que é um dos principais danos causados pela picada deste tipo de serpente.
O tratamento feito nos ratos com o uso do cartucho hemoperfusor de carvão ativado e ácido tânico se mostrou eficiente, mas em partes. “Conseguimos diminuir a ureia e a creatinina sanguínea no envenenamento botrópico. Também conseguimos reduzir a perda excessiva de proteínas urinárias no envenenamento crotálico, sem levar aos níveis normais, no período de uma hora de circulação extracorpórea. Contudo, restabelecemos o número de leucócitos aos níveis normais, no mesmo período de tempo”, explica.
Trocando em miúdos: o tratamento inovador desenvolvido por Yoshida, e com o suporte da equipe, mostrou-se eficiente quando utilizado nos casos de envenenamentos crotálicos, desde que instituído precocemente. “A soroterapia mostrou-se eficaz contra a letalidade, mesmo em casos graves de envenenamento”, comemora.
Infelizmente, os resultados conseguidos com a hemoperfusão não foram bons para os casos de envenenamentos botrópicos graves. Mas o sucesso da técnica com o veneno crotálico se mostrou eficaz, inclusive, para impedir a evolução do quadro para a lesão renal aguda. Se for adequado o modelo experimental obtido em ratos para os humanos poderá representar um grande ganho para a ciência e para as milhares de vítimas que todos os anos morrem por causa da picada de cascavel.
No Brasil, quanto à ocorrência, o envenenamento por serpentes peçonhentas do gênero Crotalus é o segundo tipo de acidente ofídico mais comum, entre os considerados de interesse médico, atrás somente do envenenamento botrópico. Entretanto, quanto à letalidade, o veneno crotálico supera o botrópico exatamente por desencadear a insuficiência renal aguda.
Ética no uso de cobaias
Os testes com ratos em laboratório foram autorizados pela Comissão de Ética no Uso de Animais da Uniso, após um minucioso estudo sobre a necessidade do uso de animais.
Com base na tese “Avaliação da eficácia do uso do cartucho hemoperfusor de carvão ativado e ácido tânico no tratamento de lesão renal aguda em ratos, induzida por envenenamento por peçonhas de bothrops e crotalus”, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Farmacêutica da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação da professora doutora Yoko Oshima Franco e coorientação da professora doutora Valquíria Miwa Hanai Yoshida e aprovada em 28 de junho de 2019. A disponibilização integral da tese aguarda publicações de artigos em outras revistas acadêmicas, mas o resumo da tese pode ser encontrado e baixado no site.
Texto: Marcel Stefano