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Da natureza

A ciência dos cogumelos

Desde 2013 há na Uniso uma linha de pesquisa dedicada às aplicações científicas dos cogumelos

29 de Maio de 2023 às 08:30
Em ambiente natural, como nas florestas, os cogumelos crescem em substratos úmidos, em que haja matéria orgânica disponível para absorção
Em ambiente natural, como nas florestas, os cogumelos crescem em substratos úmidos, em que haja matéria orgânica disponível para absorção (Crédito: ShutterStock)

Crescendo furtivamente nas reentrâncias úmidas e escuras das florestas, eles já foram associados a fadas e a outras criaturas do folclore europeu. Ao longo das eras, devido às propriedades alucinógenas de algumas espécies, já foram utilizados em rituais religiosos ou como drogas recreativas. Em muitos países, especialmente na Ásia, são considerados iguarias culinárias — na China, por exemplo, as pessoas chegam a ingerir 10 kg deles todos os anos. Indubitavelmente, há muitos usos diferentes para os cogumelos. E nos laboratórios científicos, o que é que dá para fazer com eles? Muita coisa.

Os cogumelos são um tipo específico de fungo, o mesmo reino em que estão os bolores e as leveduras. “Tecnicamente, o cogumelo (também chamado de basidioma) é um corpo de frutificação onde são produzidos os esporos, as estruturas utilizadas para a reprodução desses fungos. É interessante lembrar que os cogumelos, bem como os talos, são apenas as partes visíveis desses organismos, mas que eles também são formados por uma rede de hifas, que são como finas raízes que se espalham pelo substrato e formam o que chamamos de micélio. Essa estrutura é responsável pela absorção de nutrientes e pela transferência desses nutrientes para o corpo de frutificação. Em alguns casos, essas redes de hifas podem se estender por quilômetros de distância”, explica o professor doutor Nobel Penteado de Freitas, coordenador dos cursos de graduação em Ciências Biológicas e Tecnologia em Gestão Ambiental da Universidade de Sorocaba (Uniso), além do Núcleo de Estudos Ambientais da Universidade.

Desde 2013 há na Uniso uma linha de pesquisa dedicada exclusivamente às aplicações científicas dos cogumelos, especialmente do shiitake (Lentinula edodes, a segunda espécie mais consumida no mundo), com dois projetos financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Hoje, essa linha se divide em três conjuntos de estudos, cada um voltado a uma área diferente do conhecimento, compreendendo pesquisas sobre: a ingestão do shiitake com objetivos funcionais em seres humanos, o uso do substrato do cultivo de cogumelos em sistemas de biorremediação ambiental e o uso do substrato na construção civil.

Ingestão com objetivos funcionais

“Em 2013, com a aprovação do primeiro projeto financiado, a ideia original dessa linha de pesquisa era estudar a segurança do consumo de shiitake, dado o seu apelo como nutracêutico — alimento com propriedades funcionais. É sabido que muitas substâncias e produtos naturais são consumidos sem parcimônia, e que alguns desses podem ser tóxicos se consumidos em excesso, assim o objetivo era assegurar a segurança do seu consumo”, explica a professora doutora Denise Grotto, pesquisadora responsável pelo projeto original, voltado à avaliação dos parâmetros bioquímicos e antioxidantes do shiitake e à possível aplicação em casos de distúrbios metabólicos (projeto 2013/05765-5).

Primeiramente, Grotto e estudantes de Iniciação Científica avaliaram, em estudo pré-clínico, o shiitake como alimento funcional e determinaram a dosagem ideal para o consumo por seres humanos, para que as propriedades nutracêuticas fossem mantidas: 7g de cogumelos secos por dia (ou o equivalente a 1,5 cogumelos frescos), considerando-se um adulto de 70kg.

Depois disso, também em estudo pré-clínico com animais, foi estudado o efeito do shiitake sobre os níveis de colesterol, triglicérides e antioxidantes. Uma reportagem sobre essa pesquisa foi publicada na edição inaugural da revista Uniso Ciência (jun./2018), fazendo referência à dissertação de mestrado da pesquisadora Sara Rosicler Vieira Spim, orientada por Grotto. “Tivemos ótimos resultados e partimos, então, para o estudo clínico, em que foram desenvolvidas barrinhas de cereal contendo shiitake na formulação, as quais foram ofertadas a voluntários com colesterol limítrofe num estudo clínico (fase II). Apesar de não ser possível afirmar que uma pessoa com colesterol alto pode ser ‘curada’ por meio do consumo de shiitake, os resultados obtidos foram importantes e promissores”, afirma Grotto.

Alternativas de uso para o substrato

Freitas explica que, na produção dos cogumelos, o substrato é um elemento essencial e isso se dá devido à forma como esses fungos se alimentam, por absorção: “Como fonte principal de alimentação, os cogumelos necessitam de matéria vegetal, já que absorvem principalmente a lignina e a celulose, que são compostos encontrados nas paredes celulares dos vegetais. Além disso, os cogumelos necessitam de outras substâncias, como nitrogênio e minerais. Cada espécie tem suas especificidades de absorção e preferências de substrato, que devem ser levadas em consideração na produção comercial.”

Iwao Akamatsu é proprietário da Yuri Cogumelos, empresa instalada numa fazenda na região de Sorocaba desde 1997, que foi parceira da Uniso na realização de dois simpósios internacionais sobre cogumelos, em 2010 e 2015. Ele conta que, no caso do shiitake, o substrato utilizado é uma mistura de serragem e farelo de cereais, que é prensada para formar um bloco no qual os cogumelos são inoculados. A técnica foi aprendida por ele no Japão. “Cada bloco produzido é desenvolvido por nós durante 30 dias, durante os quais os blocos são totalmente colonizados. Depois, eles são vendidos a produtores rurais, que terminam o desenvolvimento por mais 90 dias, quando tem início, então, a produção. Nesse ponto, cada bloco pesa em média 2,5kg — o que equivale a 1kg de bloco seco, já no fim do ciclo. Esses blocos permanecem produtivos por um período de 4 a 5 meses e, depois disso, cada produtor é responsável pelo descarte dos seus blocos”, ele diz.

Muitas vezes, após o uso, os blocos são transformados em compostos orgânicos e utilizados nas próprias propriedades rurais, mas, como não há controle, eles também costumam ser descartados diretamente no ambiente. “Pesquisas voltadas ao reuso desse substrato descartado, como as desenvolvidas na Uniso, se tornarão ainda mais importantes à medida que aumentarmos a quantidade de nossa produção. Assim poderemos dar o melhor destino possível a esses resíduos, ampliando as formas de uso e possivelmente gerando mais valor agregado à nossa atividade”, ressalta Akamatsu. Antes da pandemia de Covid-19, em 2020, a Yuri Cogumelos chegava a produzir 180 mil blocos de substrato todos os meses.

Biorremediação e construção civil

Grotto conta que a ideia de pesquisar o uso do shiitake para outros fins além da ingestão como nutracêutico surgiu durante os estudos pré-clínicos envolvendo diferentes concentrações do cogumelo, quando ela ainda estava buscando identificar o risco de toxicidade da ingestão do shiitake. “Um dos efeitos tóxicos encontrados quando usávamos altas doses de shiitake era a diminuição de alguns metais, como o cobre e o ferro, na corrente sanguínea dos animais. Foi daí que veio a ideia: se o shiitake pode ‘capturar’ esses metais dentro do sistema circulatório de um animal, será que conseguiria fazer o mesmo com metais tóxicos e outros poluentes em águas contaminadas?”, ela relembra. Foi então que mais um projeto foi aprovado, com financiamento da Fapesp (2016/22873-4), voltado ao uso de cogumelos como alternativas para a biorremediação, nome dado ao conjunto de técnicas que removem contaminantes do meio ambiente por meio de processos biológicos.

Nos projetos de biorremediação desenvolvidos na Uniso, a parte dos cogumelos utilizada não é a frutificação em si, como no caso das pesquisas voltadas à ingestão, mas os talos e os blocos de substrato, partes que normalmente não são comercializadas e seriam descartadas pelos produtores, como menciona Akamatsu.

Nessas pesquisas, esses blocos são reprocessados junto aos talos de cogumelos não utilizados, sendo então aplicados em água contaminada para a remoção de metais pesados e hormônios. “As pesquisas envolvendo o shiitake e outros cogumelos para a biorremediação continuam”, destaca Grotto, “elas estão sendo aperfeiçoadas para que, no final, seja desenvolvido um produto que possa, inclusive, vir a ser comercializado. ”

Além disso, é possível reutilizar o mesmo substrato do shiitake como insumo para a construção civil. Essa é uma alternativa bastante interessante porque, além de dar um novo destino aos blocos de substrato, reduzindo a quantidade de material descartada no meio ambiente, reduz também a necessidade de extração de novas matérias-primas, como a argila e o calcário, mantendo as reservas terrestres intactas e preservando os ecossistemas que seriam afetados pelo processo de extração.

Para saber mais: O reino dos fungos

Até pouco tempo atrás, na taxonomia dos seres vivos, os fungos eram classificados no mesmo reino das plantas, mas Freitas ressalta que, hoje, considera-se mais provável que fungos, plantas e animais tenham tido origens separadas, a partir de grupos diferentes de organismos originados das algas unicelulares. “Contemporaneamente, os fungos são classificados num reino específico, o Reino Fungi, o que se justifica, pois esses organismos têm características próprias, como seu modo de nutrição, heterotrófica absortiva, o que significa dizer que eles absorvem os nutrientes por meio da digestão dos tecidos de outros seres, vivos ou mortos. Pode haver uma confusão em relação à questão nutricional dos fungos e das plantas. As plantas absorvem água e minerais do solo, que são imprescindíveis para sua sobrevivência, mas seu alimento é sintetizado diretamente por elas pelo processo da fotossíntese. Os fungos não fazem fotossíntese; tanto os nutrientes minerais como o material energético (o alimento) são obtidos por absorção. Na verdade, os fungos têm mais características em comum com os animais do que com as plantas”, ele diz, contrariando o senso comum. Inclusive, algumas dessas características — como a presença de quitina nas paredes celulares, uma característica que é compartilhada com os artrópodes (como os insetos) — são muito importantes para a pesquisa que se desenvolve na Uniso.

Texto: Guilherme Profeta