Tecnologia
Os desafios da Quarta Revolução Industrial para a Educação Superior
Pesquisa traçou perfil docente quanto ás competências digitais
Como apresentou a reportagem publicada em abril “O mundo já está na Quarta Revolução Industrial, mas organizações ainda operam na terceira” —, existem novas tecnologias que, nos últimos anos, vêm revolucionando a produção industrial. Da integração cada vez mais automatizada entre hardware (as partes físicas dos equipamentos eletrônicos) e software (os programas instalados nesses equipamentos, que os fazem funcionar efetivamente) decorrem imensas quantidades de dados que não estavam disponíveis até pouco tempo atrás, quando as tecnologias que hoje permitem o armazenamento e a transmissão dessas informações ainda não eram uma realidade.
Para se ter uma ideia, estima-se que, a partir do ano de 2017, a humanidade vem gerando todos os anos o equivalente em dados à informação gerada durante toda a história humana, sendo que tal quantidade dobra novamente a cada 13 meses. Tudo isso representa uma mudança de paradigma sem precedentes para diversos setores da economia: gestores industriais podem tomar decisões mais assertivas, como tratou a reportagem mencionada acima, e profissionais de marketing, por exemplo, têm informações mais confiáveis sobre os padrões de consumo das pessoas — o que leva a uma série de outras implicações, como a recorrente insegurança em relação à privacidade e à proteção desses dados.
O mesmo fenômeno da Quarta Revolução Industrial, quando analisado a partir de abordagens oriundas de diferentes campos do conhecimento, suscita preocupações distintas: do ponto de vista dos processos tecnológicos, o foco está muitas vezes voltado sobre o aperfeiçoamento do uso desses dados; já nos estudos das Humanidades, as preocupações costumam estar voltadas às implicações sociais e até psicológicas das mudanças tecnológicas. Na Educação, há pesquisadores estudando em diversas frentes como os sistemas cyber-físicos e outras tecnologias contemporâneas podem impactar as formas de aprender e ensinar. Foi esse o caso de Marcus Vinicius Branco de Souza, que defendeu, em 2020, uma tese sobre o assunto no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba (Uniso).
Uma distância que a pandemia escancarou
“Assim como ocorre em outras áreas, como na indústria, o impacto dessa revolução tecnológica tem sido bastante agressivo na Educação Superior”, destaca o pesquisador. “Especialmente com a pandemia, vivemos uma aceleração tecnológica que forçou a quebra de um paradigma que já perdurava por mais de 300 anos: o da educação presencial. Nunca antes se utilizou tanta tecnologia no Ensino Superior. Assim, descortina-se um desafio que vai ao encontro das competências digitais, tornadas ainda mais necessárias neste momento de instabilidade.”
Para Souza, o problema vai além das imposições momentâneas da pandemia de Covid-19 — na verdade, a sua pesquisa já vinha sendo desenvolvida antes disso, desde 2017, e ele também foi pego de surpresa por tudo que houve em 2020. É claro que a pandemia teve, sim, um impacto na velocidade das mudanças, especialmente na transposição das aulas presenciais para os ambientes online — em que as mesmas aulas foram oferecidas de forma síncrona, por ferramentas de vídeo e plataformas de gestão da aprendizagem (ou learning management systems, os chamados LMS). Contudo, a questão não é pura e simplesmente a plataforma que está sendo utilizada num dado momento, mas sim a diferença de perspectiva entre os professores e o alunado, uma diferença que, em grande parte, é geracional.
“A falta de exigência de uma formação pedagógica para professores do Ensino Superior costuma levá-los a ensinar da mesma forma que aprenderam quando ainda eram estudantes (o que se dá o nome de isomorfismo). Só que um aprendeu no século XX, enquanto o outro está vivendo e aprendendo no século XXI, o que significa que os professores são formados para um mundo que já não existe mais. Seja nas salas de aulas presenciais ou nas remotas, é preciso considerar que hoje convivem dois tipos de pessoas: os nativos digitais, normalmente representados pelos estudantes, e os imigrantes digitais, normalmente os professores, que nasceram e se desenvolveram em um mundo analógico e precisam ‘migrar’ para o mundo virtual”, explica Souza.
Apoiando-se no sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925—2017), o pesquisador chamou os professores de navegantes, classificando-os em três tipos: os navegantes analógicos, que têm pouca ou quase nenhuma capacidade de se orientar no ambiente digital; os navegantes híbridos, que num momento estão no ambiente analógico (o seu ambiente natural) e em outro precisam “saltar” para o ambiente digital; e os navegantes digitais, aqueles que têm grande facilidade de trafegar nesse novo ambiente, pois já nasceram fazendo parte dele.
Perfil docente
De posse dessa classificação, Souza aplicou um questionário a professores de um importante complexo de educação técnica e tecnológica do Brasil, e o maior da América Latina. Responderam ao formulário 468 docentes, o que representou, na época, mais de 14% do grupo pesquisado. O objetivo, com o questionário, foi conhecer o perfil desses professores em relação às competências digitais — o que se mostrou como um fator muito importante para a adaptação de plataformas, metodologias e estratégias, especialmente quando veio a pandemia.
Um dos pontos que mais chamou a atenção foi a idade média dos professores, geralmente superior a 50 anos (46,02% da amostragem), o que permite classificá-los como imigrantes digitais. O autor do estudo explica: “Para os docentes mais jovens, a presença do aparato tecnológico em sala de aula é algo mais comum. Já para os imigrantes digitais, com idade acima de 40, esse costuma ser um fato novo e digno de destaque. Quando a idade é cruzada com o tempo de experiência no Ensino Superior — sendo que 57,88% dos respondentes têm mais de dez anos de experiência —, nós nos remetemos a uma potencial dificuldade de comunicação com os nativos digitais, seja pela época de sua formação ou mesmo pela carência pedagógica, já que a maior parte desses professores não tem formação didático-pedagógica.”
Agrupando os indivíduos de acordo com suas tendências de respostas, Souza descobriu, também, que, em relação à capacidade de “navegação” nos ambientes digitais, 48% dos docentes que compuseram sua amostra podem ser categorizados como navegantes híbridos, enquanto os digitais somam 22% e os puramente analógicos, 20%.
Ter esse tipo de dado à mão, segundo o pesquisador, é importante para subsidiar programas de desenvolvimento profissional docente com foco nas competências digitais, ainda mais necessárias do que nunca no pós-pandemia.
“É um processo irreversível e inevitável”, ele defende, “mas precisamos entender, acima de tudo, que incorporar as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs) na educação não quer dizer apenas levar os estudantes a laboratórios de informática, ou levar os computadores (ou outros dispositivos digitais) às salas de aula; quer dizer ser flexível com tecnologias que já estão amplamente difundidas, tendo em mente o fundamental: elas são meio, não fim. Não podemos nos deixar iludir pela tecnologia em si, pois o que garante a efetividade do processo de educação não é a tecnologia utilizada, mas o próprio ensino e a própria aprendizagem.”
O primeiro elemento — o ensino —, conforme destaca a orientadora do estudo, a professora doutora Maria Alzira de Almeida Pimenta, é centrado não só na figura do professor, mas também na instituição como um todo, englobando questões como a formação pedagógica e didática, o ambiente de aprendizagem e a cultura organizacional. Já a aprendizagem, por sua vez, inclui questões outras, como a motivação dos estudantes, tal qual o repertório e os valores desse alunado. “O processo de ensino-aprendizagem, afinal, sempre envolverá outras diversas variáveis além das TDICs pura e simplesmente”, ela conclui.
Com base na tese “Competências digitais de professores da educação superior tecnológica no cenário da Quarta Revolução Industrial”, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação da professora doutora Maria Alzira de Almeida Pimenta, aprovada em 29 de junho de 2020. Acesse.
Texto: Guilherme Profeta
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