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Uniso comenta: O futuro da carne cultivada em laboratório

11 de Agosto de 2022 às 17:04
O professor doutor Renan Angrizani de Oliveira, em visita a uma das áreas de pasto localizadas na Cidade Universitária da Uniso
O professor doutor Renan Angrizani de Oliveira, em visita a uma das áreas de pasto localizadas na Cidade Universitária da Uniso (Crédito: Gabriela Brandão)

A partir de 12 mil anos atrás, com a Primeira Revolução Agrícola — quando os seres humanos deixaram de depender do nomadismo para cultivar os próprios alimentos —, começou a aumentar, nas comunidades humanas, o consumo de alguns alimentos que até então eram consumidos com pouca frequência. Entre eles estava a carne, um item que se tornava mais abundante nos cardápios diários devido a novas técnicas de domesticação de animais. Afinal, a exemplo de muitos outros aspectos de nossas vidas, a alimentação também sofre forte impacto das mudanças tecnológicas (para se lembrar disso, basta ligar o micro-ondas para estourar um saco de pipocas, preparar um copo de leite em pó, ou simplesmente apanhar no armário um produto relativamente fresco graças ao acréscimo de aditivos industriais). Especificamente em relação às carnes, existem outras mudanças tecnológicas em curso, atuais, que prometem, mais uma vez, revolucionar a forma como nos relacionamos com esse alimento.

Disso tratou um boletim divulgado pelo Centro de Inteligência da Carne Bovina (CiCarne) e pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em 2021. Assinado por Sergio Raposo de Medeiros, Fernando Rodrigues Teixeira Dias e Guilherme Cunha Malafaia, pesquisadores do CiCarne, teve como objetivo discutir se a carne de laboratório representará o fim da pecuária como a conhecemos.

“A carne cultivada”, explicam os pesquisadores no boletim, “é produzida a partir de células-tronco de músculo retirado por biópsia, portanto de um animal vivo, usando o soro fetal bovino como meio de cultura. As células-tronco podem se transformar em vários tipos de células e, neste caso, se diferenciam em células musculares. Essas células se ligam a uma armação que é colocada em biorreatores: tanques estéreis que fornecem calor, nutrientes e fatores para o crescimento para a produção de carne cultivada.” Em outras palavras, é possível cultivar um hambúrguer sem precisar matar um boi.

Dimitrios - AdobeStock
Dimitrios (crédito: AdobeStock)

Ainda que haja empresas do segmento anunciando que a carne cultivada estará disponível comercialmente em até cinco anos, previsões mais conservadoras, das quais compartilham os autores do boletim, mencionam o ano de 2050 como uma aposta mais certeira. Alguns dos desafios que ainda existem para chegar a esse estágio do processo são a capacidade ainda limitada de produção em larga escala (e, consequentemente, o preço elevado do produto final), a necessidade de novas normas de regulação governamental e a própria aceitação por parte do público consumidor.

Nesta edição, para discutir a viabilidade da produção em massa desse tipo de alimento, bem como os aspectos culturais envolvidos e os possíveis impactos às discussões sobre sustentabilidade, três especialistas da Universidade de Sorocaba (Uniso), de diferentes áreas do conhecimento, discutem o futuro da carne cultivada em laboratório.

Quanto custará a carne cultivada em laboratório?

A professora doutora Elaine Berges da Silva, no Laboratório de Origem Animal da Uniso -  Danielle Berti
A professora doutora Elaine Berges da Silva, no Laboratório de Origem Animal da Uniso (crédito: Danielle Berti)

Segundo a professora Elaine Berges da Silva, doutora em Tecnologia de Alimentos, que leciona o componente “Tecnologia das Carnes” no curso de graduação em Engenharia dos Alimentos da Uniso, ainda é cedo para falar em preço, mas ela aposta que, se a carne que consumimos hoje já vem apresentando um preço elevado, aquela produzida em laboratório será ainda mais cara, ao menos por algum tempo.

“O mercado para alimentos alternativos aos derivados cárneos, como os baseados em plantas, por exemplo, cresceu muito nos últimos anos, a ponto de gigantes como a Sadia e a Seara oferecerem produtos alternativos. Isso para dizer que, havendo interesse econômico e investimento, é possível chegar rapidamente em produtos viáveis para produção em escala industrial”, ela diz. Mas ainda é difícil dizer se haverá interesse dos consumidores pela carne cultivada, opina Silva, já que, por ser feita em laboratório, ela pode ser percebida por parte do público consumidor como um produto que vai na contramão dos orgânicos. Tudo vai depender de suas características sensoriais e nutricionais.

A professora pontua que um exemplo de organização que está investindo fortemente nesse mercado é a israelita Future Meats Technologies, que anunciou, em junho de 2021, a inauguração de sua primeira fábrica de produção de carne cultivada, com capacidade para produzir cinco mil hambúrgueres por dia. Além da carne bovina, também estão no rol de produtos da empresa as carnes de frango, porco e cordeiro.

A perspectiva, segundo ela, é que esse mercado emergente seja dominado por um pequeno número de empresas. Porém, ainda que a falta de ampla concorrência possa ter um impacto no preço, existem fatores positivos dessa hiperespecialização tecnológica, e um deles é a segurança dos alimentos. 

“Como a tecnologia é um fator importante na produção desse alimento, a expectativa é de um produto com maior controle higiênico-sanitário, e isso é bom”, destaca a professora Elaine Berges

Além da questão do custo ao produtor final, ela relembra que é necessário avaliar, também, questões logísticas e tecnológicas (que também têm relação com o custo repassado ao consumidor): “É difícil dimensionar isso agora, porque ainda se trata de um produto em desenvolvimento, mas o impacto econômico na cadeia de proteína animal será muito grande. A produção de carne em laboratório afetará desde o produtor até o abatedouro, além de toda a rede de fornecedores que abastece essa cadeia.” Por isso, existe uma certa resistência, não só por parte dos consumidores, mas também da própria cadeia produtiva.

Afinal, por que comemos o que comemos?

O professor mestre Carlos Martins, no Laboratório pedagógico de cozinha -  Gabriela Brandão
O professor mestre Carlos Martins, no Laboratório pedagógico de cozinha (crédito: Gabriela Brandão)

“O uso de células-tronco para a produção de carne cultivada em laboratório fica numa ‘região’ do entendimento que, para muita gente, por ignorância, pode gerar desconfiança”,

destaca o professor mestre Carlos Martins, coordenador do curso de graduação em Gastronomia da Uniso, lembrando que, quando o assunto é alimentação e tecnologia, existem muitos discursos reproduzidos sem conhecimento. “Muita gente fala que não devemos comer esse ou aquele alimento por se tratar de um alimento transgênico, mas a maioria das pessoas não tem a menor ideia do que é, de fato, um alimento transgênico”, ele exemplifica. Com a carne cultivada deve acontecer exatamente a mesma coisa.

Um aspecto a se considerar, igualmente, é se o público consumidor irá de fato entender a carne cultivada como “carne de verdade”, porque o consumo de carne é uma questão com profundas raízes culturais. O professor relembra que já se consumia carne no Brasil mesmo antes da chegada dos europeus — uma afirmação amparada por estudos de antropologia alimentar que evidenciam que os indígenas brasileiros, apesar de adeptos da pesca, também apreciavam carne de caça —, contudo o nosso consumo de carnes na contemporaneidade tem bastante influência europeia.

“Tanto no Brasil quanto no mundo”, diz Martins, “uma questão que influencia o hábito de comer carne é a nossa base gastronômica de origem francesa. Nos séculos XVIII e XIX, como resquício da Revolução Francesa, ainda existia uma simbologia muito forte da carne como poder. Nos banquetes da época, o momento máximo dos eventos era a hora de trinchar a carne, que vinha inteira para o salão. Essa simbologia de poder acabou se espalhando pelo mundo.” Assim, não raro na literatura gastronômica, a carne é compreendida como o elemento central na construção de um prato: “Muitas das obras da literatura de gastronomia promovem a montagem de um prato começando pela proteína de origem animal. Na sequência vêm os carboidratos, as fibras e um molho.”

Comer carne, muito além das questões nutricionais, é também uma questão de estilo de vida. “Mesmo com o visível crescimento de movimentos contrários ao consumo de carne, como o vegetarianismo (que exclui produtos de origem animal da dieta) e o veganismo (que exclui os produtos de origem animal não só da dieta, mas de qualquer outro tipo de consumo, incluindo, por exemplo, o vestuário, os cosméticos etc.), bem como com o aumento no consumo de produtos à base de plantas nos últimos tempos, eu não acredito que o consumo de carne deverá cair exageradamente apenas por uma questão de tendência. Talvez isso aconteça, no entanto, por necessidades futuras — ambientais, por exemplo —, que poderão nos levar a um consumo mais consciente e moderado.”

Consumo de carne e meio ambiente

Seja o churrasco de domingo, o hambúrguer de sexta-feira ou o bife que você come no meio da semana, a carne, quando produzida em larga escala, impacta diretamente o meio ambiente, conforme explica o professor doutor Renan Angrizani de Oliveira, do curso de Engenharia Ambiental da Uniso. Isso se dá, naturalmente, não por aquele pedaço de carne em si, mas por todo o processo de fabricação, que gasta (muita!) água e energia, além de liberar gases de efeito estufa e outros resíduos.

“A pecuária ainda é uma das maiores fontes de emissão de gases de efeito estufa (os chamados GEE), o que agrava o aquecimento global”, diz Oliveira, destacando, também, que mesmo a criação de animais em pastos abertos — que emite menos gases do que o sistema de confinamento — ainda incorre em impactos ambientais, principalmente pelo desmatamento necessário para criar novas áreas de pasto. Assim, pensar em medidas para garantir o consumo da proteína animal preservando o meio ambiente é uma necessidade urgente.

Para o professor, a carne cultivada em laboratório pode ser uma alternativa nesse sentido: “O cenário de crescimento populacional aumenta a demanda por carne e sua produção apresenta riscos para o planeta Terra. A carne de laboratório é, sim, um dos caminhos para se chegar nesse fim, mas um caminho que pode ser implementado junto a outros, como, por exemplo, o reducetarianismo (movimento de alimentação consciente, menos radical do que outras alternativas, que defende a redução consciente no consumo de alimentos que causam impactos ao meio ambiente).”

Para ler o boletim original, da Embrapa, siga o link: https://www.embrapa.br/documents/1355108/51748908/Boletim+CiCarne+38-2021.pdf/e8d175f6-2cb2-2eef-3778-376df1880130

Texto: Focs, Agência Experimental de Jornalismo da Uniso*
*Participaram 
dos processos de pesquisa e redação para esta reportagem os seguintes estudantes do Programa de Graduação em Jornalismo da Uniso: Ana Catarina Veloso, Danielle Berti, David Pontes, Erick Araujo, Gabriela Brandão, João Paulo Del Fiol, Laís Ribeiro, Maria Fernanda Ragozzini e Priscila Neves.

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