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Uniso Ciência

Rumo às profundezas do DNA

Terapias gênicas e outras alternativas experimentais representam esperança para doenças raras

30 de Junho de 2022 às 11:15
Rafael Rainha, 1 ano e 11 meses, é possivelmente o único paciente vivo com SMABF2
Rafael Rainha, 1 ano e 11 meses, é possivelmente o único paciente vivo com SMABF2 (Crédito: Arquivo Pessoal)

Quando a sorocabana Amanda Nabuco Rainha, na época com 27 anos, descobriu que estava grávida do pequeno Rafael, ela já sabia mais ou menos o que esperar. Sua primeira filha já tinha cinco anos, de modo que ela não era mais uma mãe de primeira viagem. “A gravidez do Rafael foi planejada”, ela conta. “Eu estava tomando ácido fólico e todos os meus exames de rotina estavam normais. O resultado positivo para o teste de gravidez veio em junho de 2018 e nós logo iniciamos o pré-natal. No começo, não houve qualquer intercorrência; os exames estavam normais, sem alterações morfológicas nos dois primeiros trimestres, ele estava dentro da curva de crescimento e peso, e eu sentia que ele se movimentava normalmente. Foi uma gravidez tranquila, até certo ponto. Eu só comecei a achar que havia algo estranho porque, conforme a gravidez avançava, em vez de ele se mexer mais, como seria esperado, ele se movimentava cada vez menos.” Chegou então um momento, por volta das 27 semanas de gestação, em que ela deixou de sentir qualquer movimento. As coisas não pareciam certas.

“A consulta médica pela qual passamos naquela ocasião foi a primeira vez em que um médico sugeriu a palavra ‘atrofia’, ao constatar que os pezinhos do Rafa estavam tortos. Mas ninguém precisou dizer nada; só pela expressão do médico eu já soube que havia alguma coisa muito errada. E, então, eu passei a odiar a hora de dormir, porque era quando eu me deitava e colocava as mãos sobre a barriga, esperando um chutinho ou qualquer sinal de que ele estava bem, mas esse sinal nunca vinha.” A angústia perdurou até 32 semanas de gestação, quando o obstetra que atendia a família constatou uma diminuição no nível de líquido amniótico de Rainha. Em 20 de janeiro de 2019, ela teve de ser submetida a uma cesárea de emergência. “Eu só rezava para que ele chorasse, para que eu soubesse que ele estava bem. Mas, quando ele nasceu, foi um silêncio total. Não houve nenhum choro, absolutamente nada.”

Rafael chegou ao mundo pesando 1,7 kg e medindo 40 cm. Magro, com os ossinhos diminutos à mostra e os dois braços fraturados, ele foi direcionado imediatamente à Unidade de Tratamento Intensivo, sem muitas perspectivas além das primeiras 48 horas. Seus rins não funcionavam adequadamente e a médica desconfiava que ele pudesse ter a chamada síndrome dos ossos de vidro. Mas a situação melhorou nos dez dias que se seguiram, ao menos por um tempo, até que ele teve um derrame pleural por quilotórax — como é chamado o acúmulo de líquido entre as membranas que envolvem o pulmão, que causa compressão e, no fim das contas, insuficiência respiratória. “Ao todo, foram 50 dias com dreno na pleura direita e, desses 50 dias, dez com dreno bilateral, nas duas pleuras. Nesse período, foram cinco antibióticos, sete transfusões de sangue e uma parada cardíaca. Foram dias intermináveis e angustiantes, dias em que pediam para que eu me preparasse para o pior, dias em que deixavam meu marido entrar na UTI fora do horário de visita somente para que ele pudesse se despedir...”

Diagnóstico 

"Apesar de tudo, vivemos felizes", diz a mãe de Rafael, Amanda Rainha - Arquivo Pessoal
"Apesar de tudo, vivemos felizes", diz a mãe de Rafael, Amanda Rainha (crédito: Arquivo Pessoal)

Foi durante esse período que Rafael passou na UTI, que perdurou por quatro meses sem qualquer previsão de alta, que os médicos investigaram arduamente o que poderia estar causando a sua condição clínica — além dos membros entortados (o que se chama de artrogripose) e das fraturas, Rafael também apresentava degeneração neuromotora, diminuição considerável no tônus muscular (hipotonia), encurtamento no pescoço, afilamento das costelas, ausência de testículos no saco escrotal (criptorquidia), além de outros sintomas.

O processo de diagnóstico incluiu o sequenciamento do DNA de Rafael, um exame razoavelmente demorado e geralmente dispendioso, em que os médicos procuram por mutações genéticas conhecidas que possam estar relacionadas aos sintomas apresentados. Finalmente, depois de mais 50 dias, veio uma resposta: o que Rafael tinha era atrofia muscular espinhal com fraturas congênitas tipo 2 (SMABF2, na sigla em inglês), uma doença extremamente rara causada por mutações num determinado gene (o ASCC1).

O fato é que somente um indivíduo a cada 14 mil carrega essas mutações específicas. Para que alguém desenvolva a doença, ambos os pais devem carregar essa mesma mutação, o que é bastante improvável de acontecer quando não há consanguinidade, ou seja, quando os pais não pertencem à mesma linhagem familiar. Mesmo quando ambos os genitores carregam a mesma mutação no mesmo gene, o risco de gerar um bebê que herde essa mutação de ambos os lados é de apenas 25%. Mas foi exatamente o que aconteceu com Rafael. “Dentre todas as probabilidades, ele foi a mais rara”, nas palavras de sua mãe. Ele foi o primeiro caso da América Latina e, pelo que mostra a literatura médica, um dos dez primeiros casos descobertos em todo o mundo. Com 2 anos e 4 meses de vida, ele é hoje o único paciente vivo com SMABF2 de que se tem notícia em todo o planeta.

Segundo o professor doutor Charles Marques Lourenço, professor titular de Genética Médica na Faculdade de Medicina do Centro Universitário Estácio de Ribeirão Preto, as primeiras descrições da SMABF2 datam de março de 2016 — como parte de um artigo publicado no periódico estadunidense The American Journal of Human Genetics (https://www.cell.com/ajhg/fulltext/S0002-9297(16)00012-4), por uma equipe de pesquisadores da Alemanha e do Japão. Até o momento, existem cinco possibilidades diferentes de mutações registradas no gene ASCC1, todas causadoras da SMABF2. No caso da mutação específica de Rafael, somente três outros pacientes já foram identificados no mundo, na Tunísia, na Turquia e em Portugal. Como ambos os pais de Rafael têm descendência portuguesa, o pesquisador acredita que essa pode ser uma mutação que, ao longo do tempo, tornou-se ligeiramente mais comum nesse grupo de pessoas (o chamado efeito fundador). No momento, Lourenço e uma equipe de estudantes brasileiros estão trabalhando na descrição do caso de Rafael, ainda não publicada até o fechamento desta edição.

“Todos os casos já descritos de SMABF2 foram registrados somente nos últimos anos, porque essa é uma doença que só foi descoberta por meio dos avanços da medicina genômica, quando se começou a sequenciar o DNA de pacientes que não tinham diagnósticos definitivos. Nós sabemos que a principal forma de atrofia muscular espinhal (a chamada AME) é causada pela mutação do gene SMN1, que inclui um tipo específico (o tipo zero) em que as crianças já nascem com as contraturas e, no caso do Rafael, essa seria a primeira hipótese, uma vez que a AME é mais frequente. Mas, com o sequenciamento, nós descobrimos que a situação dele era diferente, ainda mais rara. O que acontece é que, com o avanço da medicina genômica, esses casos cujas causas eram até então desconhecidas passam a ser conhecidas”, diz Lourenço.

Terapias gênicas

Não há, por enquanto, uma cura para a doença de Rafael. O que existem são algumas possibilidades meramente hipotéticas, que, apesar de ainda não serem realidade para a SMABF2 especificamente, podem representar esperança para casos raros como o dele. Por meio das chamadas terapias gênicas, já é possível introduzir genes saudáveis, sem mutações anômalas, em células de pacientes vivos, de modo a “ensinar” os seus ribossomos a produzir as proteínas corretas e curar algumas doenças.

“As terapias gênicas começaram a ser experimentadas há algum tempo, mas haviam sido deixadas de lado devido à quantidade de complicações”, conta a professora doutora Renata de Lima, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso). “Nesse tipo de terapia, é necessário ‘acertar o alvo’, ou seja, não há espaço para erros. Mais recentemente, com os avanços nessa área, surgiram novos estudos, com grande potencial terapêutico. Hoje, as terapias podem ser realizadas de diferentes formas, corrigindo diretamente o mecanismo patogênico, ou controlando os sintomas. Antes, as principais doenças cogitadas para utilização de terapias gênicas eram as doenças sanguíneas, como a hemofilia, porém, nos últimos anos, novas pesquisas possibilitaram a aplicação dessa tecnologia em diferentes distúrbios, como as doenças neurodegenerativas, por exemplo.”

Um dos exemplos mais recentes é um medicamento chamado Zolgensma®, desenvolvido pelo grupo farmacêutico Novartis e recentemente registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que é voltado ao tratamento da AME. No caso do Zolgensma, o gene SMN1 (cuja mutação causa a AME) é reposto por meio de um vetor viral, ou seja, um carreador que facilita que o gene saudável chegue ao núcleo das células vivas, onde está o DNA. A partir daí, o organismo do paciente se torna capaz de produzir a proteína que faltava em seu corpo até então. Por ora, o maior obstáculo para a grande maioria dos pacientes acometidos pela AME é o custo do tratamento — o medicamento vem sendo tratado como “o mais caro do mundo” pela mídia brasileira, devido ao seu preço no mercado internacional, que é superior a US$2 milhões (o equivalente a mais de R$10 milhões). Por meio de sua assessoria de imprensa, o grupo Novartis declara que o registro do medicamento junto à Anvisa é o primeiro passo para a comercialização da terapia no Brasil, mas que, para que o preço final possa ser definido, resta ainda uma aprovação junto à Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).

Ainda assim, no caso da SMABF2, que é a doença de Rafael, a aplicação do Zolgensma não teria qualquer resultado, já que o gene causador é diferente. E, por se tratar de uma condição bastante rara — até mais rara do que a própria AME —, é pouco provável que uma alternativa desenvolvida por grandes laboratórios surja tão cedo. Qual é, então, a esperança?

Lourenço aposta no que se chama de medicina de precisão: em alguns casos o sequenciamento genético do paciente torna possível até mesmo desenvolver terapias exclusivas, customizadas especificamente para um único indivíduo. É o caso de uma garotinha dos EUA chamada Mila Virginia Makovec, diagnosticada em 2016 com a doença de Batten, uma condição genética bastante rara e fatal, que até então não tinha qualquer perspectiva de tratamento. Foi o sequenciamento genético de Mila que possibilitou que uma equipe médica do Boston Children’s Hospital (o Hospital da Criança de Boston) desenvolvesse em tempo recorde um medicamento específico para o caso dela, que recebeu o nome de Milasen.

Lourenço acredita que, no caso de Rafael, na ausência de um tratamento universal para a sua doença, uma saída poderia ser algo semelhante ao que ocorreu com Mila: “A princípio, e hipoteticamente, uma terapia gênica poderia funcionar para a SMABF2, mesmo após o nascimento do paciente, recuperando os seus neurônios neuromotores comprometidos. Logicamente, isso não corrigiria as contraturas e nem as fraturas que já aconteceram, mas tudo isso é decorrente das alterações nos nervos e essas são questões que podem ser tratadas com correção ortopédica. Tudo isso é secundário em relação ao quadro neuromotor, que poderia ser tratado com a reposição genética, se ela estivesse disponível.”

Mas há quem pense que essa é uma perspectiva otimista demais. É o caso do professor Markus Schuelke, do Charité Universitätsmedizin Berlin, o hospital universitário que atende tanto a Universidade Humboldt quanto a Universidade Livre de Berlim, e um dos prinicipais autores do artigo publicado no The American Journal of Human Genetics, que descreveu a SMABF2 pela primeira vez. “Sabemos, por exemplo, que os pacientes acometidos pela AME que tomam Zolgensma só se beneficiam com a restauração da função comprometida pelo gene se o medicamento for aplicado antes dos neurônios motores terem morrido”, ele diz. “Já no caso da SMABF2, o gene ASCC1 pode ter diferentes locais de ação (além do sistema motor) e, ainda que alguns possam ser ‘reparáveis’, outros podem ser dependentes do desenvolvimento, o que significa que os efeitos não podem ser revertidos. Assim, na melhor das hipóteses, uma terapia gênica somente desaceleraria a progressão da doença.”

Perspectivas de tratamentos experimentais

Neste momento, os fibroblastos — como são chamadas as células que formam o tecido conjuntivo — de Rafael estão sendo cultivadas num laboratório na Alemanha, sob os cuidados de Schuelke. Essas células cutâneas estão sendo convertidas em células-tronco pluripotentes induzidas (conhecidas como iPSCs, da sigla em inglês), as quais podem ser transformadas em laboratório em células musculares e nervosas (chamadas de organóides). “Essas células serão utilizadas para estudar o desenvolvimento de tecidos musculares e nervosos, tanto normais quanto doentes. Ao fazer isso, os pesquisadores podem aprender mais sobre os mecanismos celulares e moleculares que causam a doença. Além disso, os organóides podem ser usados em triagens de drogas, de modo a encontrar medicamentos já aprovados para outras doenças que possam ter efeitos benéficos”, explica o pesquisador.

Vale ressaltar que essa tecnologia já foi utilizada com sucesso pela mesma equipe, para encontrar um medicamento já existente (no caso, usado originalmente para tratar impotência sexual) que pudesse ser usado, também, para tratar a síndrome de Leigh — outra doença genética que afeta o sistema nervoso central. Atualmente, os efeitos da droga estão sendo estudados.

“No caso do Rafael, primeiro temos de estudar os seus organóides para entender o efeito do gene ASCC1 no desenvolvimento e na manutenção do sistema neuromuscular. É o que estamos fazendo. Só então poderíamos tentar encontrar novos medicamentos com uma influência positiva sobre a doença. Ainda assim, contudo, eu receio dizer que as chances são baixas”, diz Schuelke.

Lourenço, que vem acompanhando o caso de Rafael no Brasil, acrescenta que, como não há muitos pacientes descritos no mundo com SMABF2, quanto mais linhagens celulares estiverem disponíveis, mais intensamente será possível estudar o efeito desses fármacos em células humanas. “Muitas terapias começam a partir daí. Para algumas mutações, esse tipo de terapia pode funcionar, e essa seria uma fase anterior às terapias gênicas. E, mesmo que não funcione agora, pelo tipo de mutação que o Rafael tem, estudar os seus fibroblastos pode ser a chave para uma terapia no futuro.”

Enquanto esse dia não chega, a família de Rafael vive um dia de cada vez, seguindo uma rotina intensiva de atividades interdisciplinares: sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. “Tudo isso é importantíssimo no caso do Rafa”, destaca a sua mãe. 

"Nosso maior medo é que um dia ele acorde e tenha perdido o pouco que já tem, que para nós é muito — qualquer simples movimento que ele seja capaz de fazer é motivo de choro e muito orgulho. Essas sessões são o nosso único recurso para estimulá-lo e evitar que ele perca ainda mais músculos. Atualmente, não existem muitas informações sobre a SMABF2, tampouco muitos projetos de pesquisa em andamento, o que diminui as chances de tratamento. Eu ainda tenho muitas perguntas sem respostas, mas hoje o sofrimento já passou. Apesar de tudo, vivemos felizes." Mãe do Rafael

Para saber mais: DNA, genes e mutações

As moléculas de DNA, compostas pelos chamados ácidos nucléicos, contêm todas as informações necessárias para replicar um determinado ser vivo. O DNA faz isso organizando a maneira como os ribossomos combinarão os 20 aminoácidos existentes em milhares de tipos diferentes de proteínas, as quais cumprem diversas funções nos organismos vivos, desde as estruturais (formando células e tecidos) até as enzimáticas e hormonais. Genes são os nomes dados aos trechos específicos do DNA que contêm as “receitas” para produzir determinada proteína. É por isso que uma mutação num determinado gene pode levar a malformações ou ao funcionamento inadequado de certas funções do corpo humano. Mutações acontecem o tempo todo e nem todas são negativas — na verdade, muitas delas podem ser imperceptíveis. Eventualmente, no entanto, podem ocorrer mutações em genes específicos (como o ASCC1), que levam a consequências negativas, como as doenças de origem genética.

Se você desenvolve pesquisas na área da Genética ou em outro campo relacionado e está trabalhando em algum estudo com potencial de contribuir para o tratamento da SMABF2 (ou mesmo de outras doenças raras), você pode entrar em contato com a revista Uniso Ciência pelo e-mail [email protected].

Texto: GUILHERME PROFETA

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