Buscar no Cruzeiro

Buscar

Uniso Ciência

Violência contra a mulher: tema delicado exige redes de apoio

Pesquisa identificou desgaste emocional e físico entre profissionais

23 de Março de 2022 às 11:00
De acordo com dados da OMS, a cada três mulheres, uma já foi submetida a algum tipo de violência física e/ou sexual
De acordo com dados da OMS, a cada três mulheres, uma já foi submetida a algum tipo de violência física e/ou sexual (Crédito: Divulgação)

“Ele era legal, no início. Era engraçado e todo mundo gostava dele, até que as atitudes abusivas começaram: ele não queria que eu tivesse amigos homens, não queria me deixar usar roupas justas ou curtas, e começou a brigar por tudo. Se eu chegasse um pouco mais tarde do trabalho, era motivo para dizer que eu estava ‘aprontando’. Terminamos diversas vezes e, em todas, eu me sentia culpada. Mesmo tendo sido traída, eu sempre voltava atrás. Na última vez, em 2017, eu já tinha depressão e já havia afastado todos os meus amigos. Então o abuso ficou diferente: ele começou a me xingar e a dar tapas em meu rosto; pelo menos uma vez na semana eu apanhava. Eram chutes, murros, empurrões, enforcamentos... Eu estava definhando, tanto que tentei me matar duas vezes. Minha mãe, coitada, não sabia de nada; eu era do tipo que sofria calada. Numa ocasião, eu desmaiei. Ele me levantou para me levar para casa e, quando chegou, pediu milhões de desculpas. Para não piorar a situação, eu disse que ele estava perdoado. Quando fui tomar banho, eu estava toda roxa, cheia de mordidas e de marcas de dedos. Ele fez o que quis comigo.”

O relato anterior, apesar de chocante, é real. Não só na vida de M., 23 anos, uma vítima de violência contra a mulher — cuja identidade foi preservada —, mas na de milhares de outras mulheres em todo o mundo que, em algum momento, já sofreram abusos semelhantes. De acordo com dados publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada três mulheres, uma já foi submetida a algum tipo de violência física e/ou sexual. Violências desse tipo normalmente são cometidas por pessoas próximas; quase um terço (27%) das mulheres de 15 a 49 anos que estiveram em um relacionamento já foram submetidas, em algum momento, a algum tipo de violência física protagonizada por seu parceiro.

Para essas mulheres, falar sobre a violência pode ser terapêutico. É por isso que algumas Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) oferecem plantão psicológico. Na DDM de Votorantim, por meio de uma parceria com a Uniso, o serviço é oferecido por uma equipe de estagiárias do curso de Psicologia.

E, se ler tal relato nas páginas de uma revista pode ser bastante angustiante, imagine então ouvir histórias como essa, várias e várias horas por dias. Mesmo para psicólogos, já formados ou em formação, há um preço a se pagar: estresse, muitas vezes, e a necessidade de criar mecanismos de defesa. Para a professora doutora Andressa Melina Becker da Silva, do curso de Psicologia da Universidade de Sorocaba (Uniso), existe, por parte de muita gente, uma crença de que os psicólogos são “super-heróis” imunes a qualquer questão relativa à saúde mental, quando, na verdade, eles também precisam de apoio, como qualquer outra pessoa. “Definitivamente”, ela diz, “é preciso que o super-herói deixe a capa no cabide.”

Foi disso que tratou, em seu trabalho de conclusão de curso, a estudante de Psicologia Mara Bini. A pesquisa culminou no artigo “Percepções sobre o Plantão Psicológico em uma Delegacia de Defesa da Mulher”, apresentado em 2020. O estudo evidencia que as responsáveis pelo acolhimento às vítimas de violência contra a mulher também precisam de apoio psicológico. Para chegar a essa conclusão, Bini entrevistou a equipe responsável pelo plantão psicológico na DDM de Votorantim, que, na época da coleta dos dados, era composta por 16 estagiárias de Psicologia, além de uma delegada, duas escrivãs e quatro estagiárias de Direito, totalizando 23 mulheres entre 19 e 56 anos.

As perguntas foram elaboradas com a intenção de avaliar as percepções que as participantes tinham em relação à violência contra a mulher e aos impactos em suas vidas. As respostas foram então analisadas com o apoio de um software de análise textual chamado Iramuteq, que ajuda pesquisadores a identificar padrões em conjuntos de textos. Por meio da análise lexical das respostas, foi possível chegar à conclusão de que os atendimentos desencadeiam desgastes físicos e emocionais nas ouvintes.

Uma estagiária anônima conta, por exemplo, que, sentindo a necessidade de desabafar, muitas vezes ela chegava em casa e compartilhava os relatos que ouvia com seu marido. Outra relata crises de choro e dores no estômago após os atendimentos. Houve também uma estagiária que relatou não se sentir abalada durante o atendimento em si, mas que, ao chegar em casa, percebia-se preocupada e se perguntando se a mulher atendida por ela estava bem.

“Muitas delas levam os conteúdos para casa, então é fundamental ter um trabalho de saúde mental dentro das delegacias, para efetivamente cuidar das mulheres que cuidam, por conta da identificação e da projeção que acontecem ali. De alguma forma, por mais que se tente ser profissional, esse estresse é levado para dentro de casa e para as relações que essas mulheres têm”, destaca Bini.

Segundo a pesquisadora, um dos efeitos desse tipo de prática, que faz parte do trabalho dos psicólogos, é o desenvolvimento de um escudo emocional: uma espécie de “couraça” que se cria para ser capaz de manter um distanciamento dos casos e não se envolver emocionalmente de forma danosa. O atendimento psicológico certamente pode ajudar a lidar melhor com essas questões, o que significa que se faz necessária uma rede de apoio não só para as usuárias atendidas pelo serviço de plantão psicológico, mas também para as agentes da delegacia, e mesmo para as psicólogas.

No caso das profissionais da Uniso, Silva explica que essa função é cumprida durante a supervisão dos estágios: “Muitas vezes as estudantes não têm recursos financeiros para buscar terapia e esse é um ponto bastante importante, então, indiretamente, a supervisão realizada na universidade acaba cumprindo uma dupla função. Isso faz muita diferença no suporte emocional para essas alunas e, como a supervisão é conduzida em grupo, cria-se essa rede de apoio.”

Para saber mais: Violência contra a mulher

A violência contra a mulher, como consta no levantamento histórico presente na pesquisa de Bini, é um fenômeno sistêmico de longa data, respaldado por uma cultura de misoginia e por um sistema patriarcal, tradicionalmente centrado no poder masculino. Esses conceitos foram questionados pelos movimentos feministas, já no século XIX, quando as mulheres passaram a reivindicar direitos em variadas frentes, uma luta que se estende até hoje. Das transformações sociais que ocorreram durante todo esse período, incluem-se o direito ao voto, ao divórcio e ao acesso à educação superior, entre outras vitórias.

No Brasil, quando o assunto é violência contra a mulher, uma das conquistas mais emblemáticas é a Lei Maria da Penha, em homenagem à farmacêutica de mesmo nome, que, desde 1983, lutava bravamente para ver seu agressor condenado, tendo seu caso resolvido apenas em 2002. A lei foi sancionada em 7 de agosto de 2006 e tem como objetivo proteger a mulher da violência doméstica e familiar.

Apesar de ser uma vitória para as mulheres, a violência de gênero ainda é uma realidade em todo o mundo, e as DDMs são uma forma de contribuir para a redução desse tipo de crime. Estabelecidas pela primeira vez na cidade de São Paulo em 1985, hoje elas estão distribuídas por todo o território brasileiro, somando cerca de 400 delegacias ao todo. Nessas delegacias são prestados os serviços de prevenção, proteção e investigação dos crimes que envolvem violência doméstica e sexual contra mulheres.

Com base no artigo “Percepções sobre o plantão psicológico em uma Delegacia de Defesa da Mulher”, de autoria de Mara Cristina Normídio Bini e da professora doutora Andressa Melina Becker da Silva, ambas da Uniso. O artigo foi publicado no volume 32 da revista Psicologia da USP, em 2021.

Texto: Agência Experimental de Jornalismo da Uniso, com as alunas Ana Laura Gonzales, Joyce Rosa, Thaís Pacífico e Verônica Ferreira