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Aplicação de insulina através da pele, por meio de gel, pode vir a beneficiar milhões de pacientes

A administração através da pele pode propiciar a adesão correta do paciente ao tratamento e a liberação controlada da insulina ao longo do tempo

17 de Fevereiro de 2022 às 12:30
A pesquisadora Ludmilla R. R. Jorge desenvolveu um biofilme hidrogelatinoso a partir de dois biopolímeros para administração transdérmica de insulina
A pesquisadora Ludmilla R. R. Jorge desenvolveu um biofilme hidrogelatinoso a partir de dois biopolímeros para administração transdérmica de insulina (Crédito: Paulo Ribeiro/Arquivo Uniso)

Adriana Guimarães Vernaglia, 42 anos, convive com a diabetes desde os 22. Ela foi diagnosticada após perceber que estava perdendo muito peso e, como a mãe dela já era sabidamente diabética, não demorou muito para que os médicos suspeitassem da doença. No início, o controle se deu somente pela mudança alimentar e por medicamentos, que eram administrados pela via oral. Mas chegou um momento em que só isso deixou de bastar. “O tratamento evoluiu para a aplicação de insulina”, ela conta. “No meu caso, levando em consideração que uso dois tipos de insulina, são obrigatoriamente cinco injeções diárias, além, é claro, das picadas nas pontas dos dedos antes das refeições, para medir os níveis de glicemia. Eu tenho pavor de todas essas aplicações. E há, também, o constrangimento de aplicar insulina em público: algumas pessoas olham para você como se você tivesse cinco cabeças! Nem sempre é possível ser discreto, dependendo da roupa que você esteja vestindo.” 

Adriana Guimarães Vernaglia, 42, diagnosticada diabética desde os 22, faz uso de uma bomba de insulina conectada ao organismo por meio de um cateter na barriga - Paulo Ribeiro/Arquivo Uniso
Adriana Guimarães Vernaglia, 42, diagnosticada diabética desde os 22, faz uso de uma bomba de insulina conectada ao organismo por meio de um cateter na barriga (crédito: Paulo Ribeiro/Arquivo Uniso)

Foi o pavor e o desconforto que levaram Adriana a testar outro tipo de aplicação. Hoje, o hormônio que o corpo dela não produz é introduzido em seu organismo por meio de um cateter conectado a uma bomba de insulina, que ela descreve como um pâncreas artificial. “A bomba de insulina garante mais conforto na aplicação, que se dá por meio de um controle remoto, o qual transmite informações para a bomba por bluetooth. Como a cânula da bomba deve ser trocada somente a cada três dias, são menos picadas diárias. Além disso, a aplicação é muito mais discreta”, ela diz. O lado negativo é que a bomba é consideravelmente cara, representando um custo que pode passar dos R$15.000 anuais. Outros pacientes podem optar, também, pelas tradicionais injeções subcutâneas, administradas por meio de agulhas, ou por canetas de insulina. Não existem alternativas orais, pois a insulina sofre degradação pelas enzimas digestivas.

“Para o tratamento da diabetes insulinodependente, faz-se necessária a administração parentérica de insulina exógena, várias vezes ao longo do dia, para obter um bom controle glicêmico. Esses métodos de administração são inconvenientes e levam a uma baixa adesão ao tratamento, um fator importante que pode comprometer a qualidade de vida dos pacientes diabéticos. É por isso que desenvolver uma forma de administração alternativa para a insulina, que seja minimamente invasiva e ao mesmo tempo suficientemente segura e eficaz, ainda é um desafio que nós tentamos vencer nos dias de hoje”, diz Ludmilla Rodrigues Ribeiro Jorge, graduada em Farmácia e Bioquímica, cujo estudo de mestrado, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Unversidade de Sorocaba (Uniso), teve tal fim. O trabalho fez parte da linha de pesquisa “Avaliação de Substâncias Bioativas e Sistemas de Liberação de Farmacos”.

E por que não a pele?

Ludmilla Jorge conta que, na impossibilidade de se usar a via oral para a administração da insulina, a via transdérmica está sendo considerada uma alternativa bastante atraente pela comunidade acadêmica: “A administração através da pele pode propiciar a adesão correta do paciente ao tratamento e a liberação controlada da insulina ao longo do tempo, evitando-se a sua degradação no trato gastrointestinal ou efeitos hepáticos de primeira passagem. A nossa dificuldade é o fato de a pele ser uma barreira natural a ser vencida.” Mas o fato de ser uma barreira, não quer dizer que se trata de um órgão isolado, muito pelo contrário: “a pele se encontra associada a muitos sistemas de órgãos, como o músculo-esquelético, o neurológico, o circulatório, o imunitário e, é claro, o endócrino. Com o objetivo de ultrapassar o estrato córneo — que é a camada mais externa da pele —, e permitir a administração transdérmica, vários métodos têm sido investigados. Um deles é a utilização de promotores de permeação.”

Os promotores de permeação são compostos que permitem diminuir, de forma reversível, a resistência do estrato córneo. Na pesquisa de Ludmilla Jorge, ela sintetizou líquidos iônicos, usando-os como promotores de permeação. “Os líquidos iônicos são essencialmente sais em estado líquido, que podem ser preparados a partir de materiais pouco dispendiosos e geralmente reconhecidos como seguros”, ela explica. As suas moléculas, ao deslizarem entre os compostos graxos da pele humana, abrem caminho transiente para que outras moléculas passem para o outro lado, e assim a barreira é rompida.

Com o caminho livre através da pele, a insulina seria administrada por meio de um biofilme hidrogelatinoso produzido a partir de dois biopolímeros: a nanocelulose bacteriana, obtida em laboratório a partir de culturas da bactéria Gluconacetobacter xylinus, e a goma xantana, obtida por meio de fermentação pela bactéria Xanthomonas campestris.

“Em relação à nanocelulose”, explica a pesquisadora, “ela é secretada em nanofeixes como parte do metabolismo da G. xylinus, o que permite a produção dessas membranas em larga escala. Quando hidratada, a membrana apresenta grandes poros ao longo de toda a sua estrutura, resultando numa vasta interface para interações. Devido a essas propriedades, esse biomaterial tem sido extensivamente utilizado em aplicações da área de engenharia de tecidos. Já a goma xantana é utilizada nas indústrias farmacêuticas, de cosméticos e também na alimentícia, como espessante, dispersante e emulsificante. Ultimamente, essa goma tem sido empregada em aplicações biomédicas e medicamentosas, obtendo-se produtos biodegradáveis, atóxicos e com adequadas propriedades funcionais.”

A grande vantagem de se usar esses biomateriais, derivados do metabolismo bacteriano, como sistema de liberação de fármacos — neste caso, potencialmente a insulina — é o conforto do paciente, o que costuma promover maior adesão ao tratamento e, consequentemente, maiores chances de sucesso. Essa ainda não é uma realidade, mas, quando esse dia chegar, são pessoas como a Adriana que poderão se beneficiar da alternativa. “Para mim, uma aplicação tópica seria muito positiva, já que tenho pavor das aplicações por meio de agulhas”, ela diz. “Não precisaria mais passar por todas as picadas diárias e, além disso, não teria o constrangimento de aplicar a insulina, quando necessário, na frente das pessoas.”

Segundo o orientador da pesquisa, o professor doutor Victor Manuel Cardoso Figueiredo Balcão, a utilização conjunta do biofilme e do líquido iônico já pode ser considerada uma alternativa promissora, mas a pesquisa ainda está longe de ter sido finalizada. “Os passos seguintes envolveriam a realização de testes in vivo, utilizando-se primeiramente modelos animais e diversas dosagens e tipos de insulina, para que, depois, pudessem ser conduzidos testes em pacientes diabéticos. Uma vez que os biopolímeros utilizados e o líquido iônico sintetizado provaram ser completamente atóxicos para linhagens celulares, tais testes não comprometeriam o bem-estar dos animais nem teriam qualquer impacto negativo”, ele diz. Posteriormente, uma aplicação comercial dependeria ainda de uma requisição de patente e da liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e de outras agências internacionais, mediante a realização de outros testes. A questão principal, contudo, é atrair o interesse e o investimento das grandes indústrias farmacêuticas.

Para saber mais: o que é a diabetes?

O que acontece com Adriana é que o seu pâncreas não é capaz de produzir um hormônio chamado insulina, que é responsável por fazer com que o corpo absorva adequadamente a glicose disponível no sangue (em outras palavras, o açúcar que o organismo usa como fonte de energia). Sem a insulina, a quantidade de glicose sobe drasticamente, podendo causar uma série de complicações graves, até mesmo a morte. E Adriana não está sozinha: em 2015, 415 milhões de pessoas sofriam com essa condição em todo o mundo, número que deverá subir para 642 milhões até 2040, segundo o atlas da Federação Internacional de Diabetes (IDF). Inclusive, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já a classifica como uma doença epidêmica.

Com base na dissertação “(Bio)2 - Sistema híbrido bioinspirado e biomimético à base de nanocelulose de origem microbiana e líquido iônico, para estabilização e entrega transdérmica de insulina”, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação do professor doutor Victor Manuel Cardoso Figueiredo Balcão e coorientação da professora doutora Marta Maria Duarte Carvalho Vila e aprovada em 28 de fevereiro de 2019. A veiculação pública da dissertação se dará somente após a publicação dos resultados na forma de artigos científicos.

Texto: Guilherme Profeta

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