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De Wakanda para a sala de aula

Cultura pop motiva atividades didáticas voltadas à representatividade negra

15 de Fevereiro de 2022 às 15:40
Registros de desfile com inspiração africana, realizado pelo curso de graduação em Moda da Uniso em 2019, a partir do filme Pantera Negra
Registros de desfile com inspiração africana, realizado pelo curso de graduação em Moda da Uniso em 2019, a partir do filme Pantera Negra (Crédito: Divulgação)

Quando a jovem Tamires Dagnes Correa Mendes dos Santos começou a cursar o curso de Jornalismo na Universidade de Sorocaba (Uniso), na época aos 19 anos de idade, ela costumava acordar por volta das 4h30, três horas antes do horário das aulas, todos os dias. Ela conta que o fazia para ter tempo suficiente para alisar os cabelos, naturalmente crespos. “Como se não bastasse”, ela relembra, “eu levava a chapinha comigo e alisava mais uma vez, na universidade, antes de entrar em aula. Eu ainda estava em processo de aceitação. O racismo é tão enraizado na nossa sociedade que nos faz ter medo e vergonha de mostrar nossos traços mais naturais, como é o caso dos meus cabelos crespos.”

Já na universidade, a estudante foi exposta a novas narrativas, que a ajudaram a mudar a sua forma de se relacionar com o que ela hoje chama de “discussões da negritude”. Ela passou, a partir daí, a traçar novos limites em relação a situações racistas cotidianas que, até então, considerava toleráveis, e também a se preocupar mais com a representatividade, dentro e fora das telas. “Eu mudei a forma de me relacionar com as pessoas, de ver o mundo e de entender como o mundo me vê”, conta. “Não me submeto mais a atitudes racistas a que eu me submetia antes, as quais, muitas vezes, eu nem mesmo percebia que eram racistas. Em termos de representatividade, houve um avanço muito grande nesse meio tempo; antes, quando eu era criança, nós tínhamos poucos desenhos animados com personagens com os quais eu conseguia me identificar, por exemplo, mas hoje a sociedade entende melhor a necessidade de se ter representatividade negra nas telas. Isso molda o mundo e mostra para aquela menina negra, como eu, que o cabelo dela também é bonito, que os traços dela também são belos e — o mais importante — que a pele dela não a torna inferior a ninguém.”

Esses novos ideais a levaram a criar um perfil na rede social Instagram, voltado a discutir beleza negra, incluindo dicas de maquiagens para essa tonalidade de pele e produtos específicos (que existem em menor quantidade quando comparados aos produtos voltados à pele branca). Até o fechamento desta edição, os seguidores de sua página passavam dos 14 mil. “Cerca de 80% do meu público é composto por mulheres”, ela estima. “Dessas, há mais mulheres negras interagindo do que as brancas. A maioria sempre quer saber sobre tons de base para pele negra, porque esse ainda é um produto difícil de encontrar, mas também existe uma boa parte que se envolve nas discussões da negritude.”

No mesmo período em que Santos alimentava o seu cantinho pessoal na internet e arrebanhava outras jovens em busca de modelos de beleza em que se espelhar, as mesmas discussões sobre representatividade negra ganhavam ampla cobertura na mídia internacional. Em fevereiro de 2018, foi lançado o filme Pantera Negra (Black Panther, no original), produzido pelos estúdios da Marvel já sob o controle da Disney, a indisputada gigante do entretenimento. Aclamado tanto pelo público quanto pela crítica, o filme arrecadou mais de US$ 1 bilhão ao reimaginar a África por meio de um reino fictício, Wakanda, isolado do restante do mundo e detentor de tecnologias ultra-avançadas, superiores às de qualquer uma das chamadas nações de primeiro mundo. Considerando-se a forma como as pessoas normalmente pensam sobre a África, profundamente marcada pelo colonialismo do passado, Wakanda mostrou-se uma alternativa no imaginário contemporâneo.

“Pantera Negra foi justamente um dos pontos de partida para que eu me interessasse mais pelas discussões da negritude”, Santos continua. “O filme envolve muitas questões relacionadas ao empoderamento e à autoestima. Em relação ao cabelo, por exemplo, nós temos no filme as tranças usadas por algumas personagens, que me ajudaram no processo de transição de um cabelo artificialmente liso a um cabelo crespo natural. As tranças são um forte símbolo de negritude; por mais que estejam ligadas à beleza, elas são muito mais do que isso, para nós elas significam resistência. Então, eu mudei a forma de me ver enquanto mulher negra. Até o lançamento do filme, eu nunca tinha visto algo que me transmitisse tanta representatividade, e foi a partir dele que eu comecei a me aprofundar em outras questões, como o genocídio da população negra e o feminismo negro. Acredito que é assim que um filme como Pantera Negra nos inspira, mostrando a nós mesmos quem nós somos.”

Da sala de aula para a passarela

A professora mestra Aymê Okasaki, docente no curso de Moda da Uniso desde 2017, está envolvida com a moda de inspiração africana desde o período em que ainda era uma estudante de graduação, entre 2009 e 2012. Atualmente, como parte de sua pesquisa de doutorado, desenvolvida no Programa de História Social da Universidade de São Paulo (USP), ela estuda a indumentária do candomblé — uma religião brasileira que data mais intensamente do século XIX, a qual cultua divindades africanas dos panteões iorubá, bantu e jeje, além de integrar elementos do catolicismo e também das culturas indígenas brasileiras. Em sua prática didática, e a partir de suas próprias pesquisas, Okasaki vem tentando incluir a moda de inspiração africana tanto quanto possível nas salas de aula da Uniso. Dois de seus artigos mais recentes são relacionados a essa temática, resgatando a história de tecidos tradicionais africanos.

“Além de professora, sou pesquisadora e sou aluna, e percebo que os debates relacionados à negritude e à cultura afro-brasileira aparecem em momentos muito pontuais na universidade, especialmente em novembro — quando é comemorado o Dia da Consciência Negra no Brasil — ou quando um caso de racismo extremo aparece nas mídias. Infelizmente, existe uma taxa desigual de alunos negros em nosso curso. O número de docentes negros também é pequeno nos cursos universitários de Moda no país. Então, acredito que é importante que esses alunos se sintam representados de alguma maneira na academia”, defende Okasaki.

Foi nesse contexto que surgiu no colegiado de Moda da Uniso a ideia de organizar um desfile com inspiração africana, a partir do filme Pantera Negra, que na época, no início de 2019, ainda estava gerando muitos debates, especialmente devido às sete indicações ao Oscar, das quais o filme venceu três, incluindo o de melhor figurino. “Em todas as nossas atividades de recepção nós buscamos oferecer aos estudantes temáticas de discussão a partir das quais eles possam se inspirar para criar, mas também refletir criticamente. Na época, esse filme teve muita visibilidade, por conta da representatividade negra no cinema e pelo figurino, assinado por Ruth E. Carter. Esse figurino incluía chapéus de casamento zulu, colares das mulheres ndebele, mantos de Lesotho, os famosos símbolos adinkra, os tecidos kente, as saias de ráfia dos dogon, entre tantas outras referências, mescladas com tecnologias futuristas. Essa é uma característica do afrofuturismo”, diz a professora.

Santos — que prefere ser chamada de Tami Dagnes —, a influenciadora digital sobre beleza negra do curso de Jornalismo, foi uma das estudantes que participou do desfile como modelo, na época vestindo um look assinado por uma equipe de sete estudantes (Túlio Freitas, Keila Lima, Larissa Branco, Júlia Machado, Mariana Silva Pereira, Lais Morais e Letícia Giovana). Do curso de Moda, foram cerca de 40 estudantes de etapas distintas que participaram da atividade, criando peças exclusivas inspiradas pelo filme, mas concebidas num contexto brasileiro — em que cerca de metade da população se identifica como preta ou parda, como é importante ressaltar. “Uma equipe, por exemplo, incluiu numa das peças a figura da baiana, evocando uma brasilidade que está imbricada nas potências criativas e na cultura negra no Brasil”, exemplifica Okasaki.

Alguns dos looks que fizeram parte da coleção original de Jesus, inspirada em movimentos negros periféricos e na religião umbanda (modelos: Mariana Beatriz Aparecida Camargo de Assis, Heitor Fabio Cardoso, Maria Mar de Ubuntu Marciano). Trabalho de Conclusão de Curso do estudante Marcel Marques de Jesus (Moda/Uniso) - Divulgação
Alguns dos looks que fizeram parte da coleção original de Jesus, inspirada em movimentos negros periféricos e na religião umbanda (modelos: Mariana Beatriz Aparecida Camargo de Assis, Heitor Fabio Cardoso, Maria Mar de Ubuntu Marciano). Trabalho de Conclusão de Curso do estudante Marcel Marques de Jesus (Moda/Uniso) (crédito: Divulgação)

“Essa atividade foi uma loucura!”, relembra Marcel Marques de Jesus, um dos estudantes do curso de Moda que também esteve envolvido. “Foi uma delícia, porque houve muita troca. Havia algumas meninas que já entendiam muito de costura, algo que na época eu ainda não dominava, e, com a soma do que nós sabíamos, nós criamos as peças e foi muito emocionante, além de ter sido muito importante levantar essa questão racial. Depois dessa atividade, nós tivemos a nossa Semana de Moda, que contou com a participação de profissionais e pesquisadores negros maravilhosos como a Hanayrá Negreiros e o Isaac Silva. Tudo isso começou com o desfile inspirado pelo Pantera Negra.”

Para Jesus, que não se identifica como negro, mas vem de uma família bastante miscigenada (incluindo uma avó negra), a inspiração africana não se resumiu ao desfile. Posteriormente, em 2020, ele defendeu o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), orientado por Okasaki e inspirado tanto em movimentos negros periféricos do Brasil quanto por outra religião sincrética de origem africana, a umbanda, que nasceu no início do século XX, no Rio de Janeiro. “Durante a minha graduação em Moda — que na verdade é a minha segunda faculdade (a primeira foi em Jornalismo, também na Uniso) —, tive um despertar para as questões sociais brasileiras. A motivação para o meu trabalho foi muito simples: foi este racismo estrutural que a gente experimenta diariamente no Brasil. O que mais me motivou foi o fato de eu experimentar esse apagamento da cultura de origem africana na minha vida, na minha própria criação. Este foi o momento de eu olhar para tudo isso e falar ‘Esta é a minha cultura’, porque o Brasil também é África, já que a nossa cultura bebeu muito da cultura africana desde a época colonial”, ele explica. Além da pesquisa bibliográfica, seu TCC incluiu uma coleção original de oito peças, totalizando cinco looks completos.

A cultura pop e a educação

Pantera Negra é um produto da chamada cultura pop, mas o fato de não ser um livro ou mesmo um documentário — produtos tradicionalmente mais associados a materiais didáticos — não significa que ele não seja válido para uso em sala de aula, a exemplo da atividade desenvolvida no curso de Moda da Uniso. Para o professor doutor Marcos Reigota, pesquisador da pedagogia freireana e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uniso há mais de duas décadas, a ressignificação de uma população historicamente marginalizada, por meio da cultura pop — em que se incluem as histórias em quadrinhos, os super-heróis e o cinema de produção “industrial” —, tem um componente político, cultural e pedagógico que ele define como extraordinário.

“O filme Pantera Negra, pela sua pertinente ousadia estética e contemporaneidade, bem como pelos aspectos políticos envolvidos, encontrou terreno fértil não só entre os ativistas dos grupos marginalizados, mas também entre grupos solidários e antirracistas. Tudo isso era previsível, considerando o histórico de luta por direitos civis, não só nos Estados Unidos, mas em várias partes do mundo. Mas o mais importante foi o fato de o filme ter chegado aos jovens que não vivenciaram esse histórico, ou que a ele estavam alheios”, defende Reigota.

Assim, a cultura pop pode ser compreendida como uma espécie de rota de acesso para introduzir temáticas mais complexas à pauta de discussão cotidiana, além de possibilitar que tais discussões migrem para as salas de aula, de forma orgânica, onde os docentes podem se valer das representações sociais — neste caso, sobre afrofuturismo e tensões raciais — que os próprios estudantes (mas também os professores) já trazem consigo. Essa é uma perspectiva alinhada ao que se chama de pedagogia freireana, que considera o estudante como um agente ativo na construção do próprio conhecimento (leia mais sobre isso na página 9 da edição de número 6 da revista Uniso Ciência, de dez./2020).

“Quando nós, professores ou professoras, adentramos uma sala de aula, nós a adentramos não só com nosso conhecimento e nossas competências técnicas, nossas habilidades e a legitimação institucional (via estudos e diplomas); nós a adentramos carregando nossos posicionamentos e nossas questões pessoais, indagações, dúvidas, experiências etc. — eu, por exemplo, como pesquisador e professor, devo muito ao que nos anos 1960 e 1970 se chamava de contracultura. Tudo isso nos caracteriza como sujeitos, como pessoas, como cidadãos. Da mesma forma o fazem nossos estudantes. Assim, todos nós, professores e professoras das Humanidades, bem como estudantes, temos enormes possibilidades de nos utilizarmos de produtos culturais diversos para incluir discussões em sala de aula, de forma sutil e criativa”, conclui Reigota.

Para saber mais: Ruth E. Carter e afrofuturismo

Em toda a história do Oscar, o principal prêmio do cinema mundial, Ruth E. Carter foi a primeira mulher negra a levar o prêmio de melhor figurino. Contatada pela revista Uniso Ciência e posicionando-se por meio de sua assessoria, Carter explica a sua concepção de afrofuturismo, a estética que direcionou o projeto do filme Pantera Negra, pelo qual ela ganhou o prêmio: “O afrofuturismo é um entrelaçamento da cultura e da diáspora africana com tecnologia, imaginação, autoexpressão e espírito empreendedor. É uma filosofia para que os afrodescendentes, os africanos e os indígenas acreditem e criem sem os construtos limitadores da escravidão e do colonialismo. O afrofuturismo se manifesta numa estética cultural que mescla o tradicional e o moderno. Todo o meu trabalho tem sido uma expressão do afrofuturismo, usando imaginação e tecnologia para criar figurinos que contam histórias sobre a nossa cultura e fortalecem a crença dos espectadores em si mesmos. Porque eles podem se ver de fato representados na tela. Essa é uma jornada tanto individual quanto coletiva.”

Para saber mais: O que é cultura pop?

“O autor Anthony Giddens, em seu livro Modernidade e Identidade, define a cultura pop como o entretenimento criado para grandes audiências, como os filmes populares, os shows, as músicas, os vídeos e os programas de TV. Como o autor observa, muitas vezes a cultura pop é comparada à alta cultura, o que sugere que diferentes classes sociais desenvolvem diferentes identidades baseadas em experiências culturais distintas”, explica a professora mestra Graziella Malagó, que leciona em vários dos cursos de graduação na área de Ciências Sociais Aplicadas da Uniso desde 2014 e atualmente está desenvolvendo uma tese de doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade, justamente sobre o processo de construção social da negrura via representações visuais nas mídias. Para ela, o trunfo da cultura pop é a sua inserção em massa, propagando-se sem escolher identidades.

Texto: Guilherme Profeta

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