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Uma entrevista com o prof. Aldo Vannucchi

Universidades comunitárias: passado, presente e futuro

19 de Outubro de 2021 às 12:41
Professor Aldo Vannucchi, idealizador da Uniso, uma Universidade Comunitária
Professor Aldo Vannucchi, idealizador da Uniso, uma Universidade Comunitária (Crédito: Paulo Ribeiro (Arquivo/Uniso))

A criação de universidades no Brasil é um fenômeno razoavelmente novo. Enquanto no continente europeu há instituições que — sem exageros — chegam perto dos mil anos de idade, as primeiras universidades brasileiras datam do início do século passado, sendo que, durante as primeiras quatro décadas, apenas sete foram criadas, exclusivamente nas principais capitais do país. As primeiras universidades confessionais (aquelas diretamente vinculadas ao clero ou a uma ordem religiosa) começaram a surgir na mesma década, a partir de 1944, por iniciativa da Igreja Católica, mas, ainda assim, o acesso a elas era particularmente difícil para os brasileiros que não viviam nos arredores dos grandes centros.

Quanto aos colégios de Ensino Fundamental e Médio, a situação não era muito diferente, mas, nesses casos, existia uma alternativa. Especialmente no Sul do Brasil, havia comunidades de imigrantes, principalmente da Itália e da Alemanha, que, desassistidos pelo Estado, uniam-se para implantar e manter escolas comunitárias. Logo, essas mesmas comunidades se deram conta de que somente esses níveis de ensino não seriam suficientes para dar conta do desenvolvimento regional.

“Assim, se a universidade estatal estava ausente e muito distante, ou se revelava-se insuficiente e inacessível e se a universidade confessional também não reunia ainda condições para se instalar fora das capitais, a sociedade civil, pela força e pelo trabalho de lideranças locais e regionais, iniciou um movimento de criação, aqui e ali, de cursos superiores isolados, que viriam, um dia, abrir não apenas mais oportunidades de emprego e o caminho direto para a ascensão social de muitas gerações, como também formar novas mentalidades, capazes de gerar o desenvolvimento de pesquisas e tecnologias para resolver carências regionais específicas.”

Professor Aldo Vannucchi, idealizador da Uniso, uma Universidade Comunitária - Paulo Ribeiro (Arquivo/Uniso)
Professor Aldo Vannucchi, idealizador da Uniso, uma Universidade Comunitária (crédito: Paulo Ribeiro (Arquivo/Uniso))

Foram esses cursos isolados que deram origem às universidades comunitárias. As primeiras surgiram na década de 1960, mas elas ainda não levavam esse nome (o termo só veio mais tarde, em 1980). Atualmente, das 205 universidades existentes no Brasil, 46 são comunitárias.

Quem conta essa história, e quem assina a citação acima, é o professor Aldo Vannucchi, em seu livro “A universidade comunitária: O que é, como se faz”, publicado em 2004 — mas não menos atual depois de 17 anos. Educador, ex-membro do Conselho Nacional de Educação e autor de diversos livros, ele foi um dos fundadores da Universidade de Sorocaba (Uniso), uma universidade orgulhosamente comunitária. É o seu nome, inclusive, que foi escolhido para batizar o principal câmpus da instituição. Nesta entrevista, a primeira publicada neste formato na revista Uniso Ciência, ele comenta sobre o presente e o futuro da universidade comunitária, bem como sobre a reinvenção do espaço pedagógico durante a pandemia, entre outras questões.

Uniso Ciência: Qual é o futuro das universidades comunitárias, no contexto atual da educação brasileira?

Aldo Vannucchi: Essa pergunta, feita assim de chofre a mim — que caminho, se Deus quiser, para os cem anos de idade —, me faz lembrar o começo daquela canção da dupla Milionário e Zé Rico: “Nesta longa estrada da vida, vou correndo e não posso parar...”

Nestes muitos anos de vida vi, sim, muitas transformações, particularmente aqui em Sorocaba: mudanças de ordem cultural, social e política. E reputo como a principal delas a criação da Uniso. Cidades menores, como Bragança, Marília e Taubaté, já tinham sua universidade e Sorocaba ia terminando o século sem nada.

Como cantaram Milionário e Zé Rico, não podíamos ficar parados. Surgiu então a nossa universidade e, o que foi melhor, uma Universidade Comunitária. Universidade da comunidade regional, não do governo nem vinculada a um poder privado, empresarial, que visa a lucro. Houve quem reclamasse. Queriam universidade pública, mas o que fizeram para consegui-la?

A Sorocaba de hoje deve muito do seu notável desenvolvimento à criação da Uniso. Basta lembrar que foi dentro dela que aconteceram os primeiros passos para transformar a cidade em metrópole regional. E, depois dela, deu-se à luz o campo aberto para outras universidades e não poucas novas faculdades.

Colho desse exemplo a boa certeza do melhor futuro das universidades comunitárias no país. Hoje, elas são cerca de 50 e nelas estão 25% das matrículas universitárias do país. Sem as comunitárias não será possível cumprir uma das metas mais ambiciosas do Plano Nacional de Educação, que prevê a inclusão de, pelo menos, 33% dos jovens brasileiros no Ensino Superior até 2024.

Acredito que o contexto atual da educação brasileira representa o kairós, a ocasião favorável para as universidades comunitárias se desenvolverem. E não estou falando de quantidade, ou seja, de mais universidades desse tipo; penso em qualidade, em comunitárias que, nesta hora trágica da pandemia, saibam se adequar didática e tecnologicamente ao cumprimento de sua missão e, no pós-epidemia, continuem ainda mais importantes pelo seu perfil humanista. Dá para pressentir isso ao ouvir, hoje, gente entendida dizendo que as indústrias passarão a contratar filósofos, para trabalhar na programação de decisões não mecânicas, por exemplo.

As comunitárias continuarão necessárias, porque possuem raízes profundas nas comunidades urbanas e rurais, de onde surgiram e conhecem melhor os problemas e os recursos do seu entorno sociopolítico, reconhecendo o seu compromisso moral e social com essa realidade. Por outro lado, elas se mostram mais ágeis e flexíveis na inclusão respeitosa e estimulante de todo eventual aluno, de qualquer classe social.

U. C.: O sr. diz, em seu livro, que o aluno “só se sente feliz no seu curso quando se vê participante e criador, na medida em que os componentes curriculares têm algo a ver com ele e com os problemas sociais detectados pela pesquisa e enfocados na extensão.” Essa é uma afirmação que não poderia ser mais contemporânea, estando totalmente alinhada à orientação da universidade para o ensino por competências. Quais são os desafios de trabalhar a tríade da universidade (ensino, pesquisa e extensão) direcionando esse movimento para solucionar carências regionais específicas?

A. V.: Quando eu falo em inclusão universitária, estou pensando em professores, alunos e funcionários comprometidos com um ensino transformador, um ensino com professores ligados à realidade dos alunos, com alunos sentindo valorizadas as suas experiências pessoais e sociais e com funcionários competentes, respeitados em qualquer setor.

Esse realismo didático-pedagógico-social evita tanto o enciclopedismo como o conteudismo, porque se pratica uma aprendizagem vinculada à experiência, aos problemas do dia a dia do mundo em que estamos vivendo. Não existe aluno-zero de conhecimento. Todo aluno traz consigo saberes, informações, vivências. Isso tem que ser valorizado. É a força motriz do gosto pelo curso que está fazendo.

Quando o professor atua como o único detentor de conhecimentos, a classe parece feita não de discentes, mas de pacientes. Vêm daí a decepção com o curso, o desinteresse, a reprovação, a evasão. A sala de aula pode ter 40 matriculados, mas quantos realmente estão aprendendo?

Nesse quadro de ensino passivo, quem é que vai sair bem formado, com senso crítico, proativo, criador, capaz de analisar situações-problema, integrar equipes, trabalhar produtivamente em redes?

A boa universidade, feita para o desenvolvimento pessoal, profissional, acadêmico e em comunidade, não se baseia nem controla o seu ensino só por provas mensais ou bimestrais. Sabe substituí-las por projetos de pesquisa individual ou em grupo, por atividades de extensão monitoradas e avaliadas e por participação em iniciativas de promoção social.

Fico imaginando quantas mudanças podem ser empreendidas em Sorocaba e região por alunos assim engajados em questões fundamentais, como saúde, educação, mobilidade social, segurança, meio ambiente, coleta seletiva...

U. C.: Nesse contexto de orientação para o ensino por competências, em que situações concretas (da “vida real”, como dizemos) são aquilo que motiva o desenvolvimento de conhecimento, habilidades e atitudes (valores inclusive), o enfoque atribuído à extensão deve mudar, potencialmente crescer?

A. V.: Concordo plenamente. O papel atribuído à extensão universitária precisa ser seriamente considerado. Infelizmente, é muito comum professores e a própria instituição colocarem a extensão em terceiro lugar: primeiro, ensino e mais ensino; depois, pesquisa, pelos mais dotados (de capacidade ou de verba); por fim, extensão, apenas por quem tiver jeito, gosto ou tempo. E, nessa visão, sai muito prejudicado o alunado, porque prevalece o ensino teórico e as pesquisas acabam ficando em documento engavetado. Sem a prática da extensão, perde-se, no trato com uma disciplina, o contato duro e desafiante da realidade social. A universidade vira um jardim fechado e estéril. Felizmente, a Uniso tem uma história marcante na linha extensionista, com projetos e programas em várias áreas, como educação, saúde e administração.

Quero acrescentar também que a extensão representa a contrapartida da universidade ao que a sociedade lhe dá de verba, respeito ou prestígio. Ou seja, é pela extensão que a universidade se justifica socialmente, sobretudo neste Brasil tão desigual e injusto, onde o ensino superior gratuito constitui privilégio de uma minoria.

Mas é preciso sempre insistir que, para a Universidade Comunitária, extensão é pratica de mão dupla: a universidade oferece seus conhecimentos à sociedade e esta lhe apresenta o que ela sabe por experiências sofridas e todos os seus valores de

sobrevivência. Nos dois lados há protagonismo. Por isso mesmo, extensão não pode ser mero assistencialismo, em detrimento de uma ação de efetiva promoção humana, nem um espúrio colonialismo acadêmico, com traços de pura invasão cultural.

U. C.: A universidade comunitária deve estar voltada ao desenvolvimento da comunidade e, normalmente, quando se fala em desenvolvimento, é ao desenvolvimento econômico que as pessoas pensam em primeiro lugar. Mas existem desenvolvimentos outros: social, cultural, ambiental. Às vezes eles caminham de mãos dadas, noutras vezes não. Nesse sentido, o desenvolvimento ao qual a universidade comunitária está comprometida é o mesmo das universidades particulares, ou das públicas?

A. V.: Evidentemente, tanto o desenvolvimento das comunitárias como o das estatais e das privadas acontece no quadro institucional do ensino, da pesquisa e da extensão, mas o que nos diferencia é uma espetacular motivação. Não buscamos apenas o desenvolvimento econômico, não buscamos o lucro e não dependemos de verbas do governo. O que nos motiva a todos, das comunitárias gaúchas às do nordeste, das reitorias aos serviçais, é captar os anseios da sociedade e incrementar seu processo de crescimento humano, cultural e tecnológico.

O que a população brasileira quer e precisa receber de uma universidade não são teses e teorias. Ela quer pão, casa, emprego, escola, liberdade, justiça, paz. Claro, não somos capazes nem vocacionados a resolver todos os seus problemas e carências, mas temos a missão e a obrigação de ensinar, pesquisar e estender conhecimentos tanto de ordem intelectual como de ordem técnica, conhecimentos que podem tirar muita gente da miséria, do analfabetismo, da doença, do desemprego.

As universidades comunitárias estão conscientes dessa responsabilidade, porque nasceram para isso. E, neste dramático momento atual de um Brasil sem rumo, mergulhado em terrível urgência sanitária, elas estão vivas e atuantes, enfrentando esse teste de estresse nacional. Ao invés de fechar cursos, estão indo às residências, aos escritórios, às empresas dos seus alunos, professores e funcionários, com seus recursos tecnológicos e, sobretudo, com sabedoria.

U. C.: O sr. diz, também, que “o conceito de sala de aula como espaço físico delimitado extinguiu-se. O que se quer é a universidade toda como uma grande sala de aula, um espaço pedagógico privilegiado. Por isso, na universidade comunitária nem tudo é docência, mas tudo tem de ser educação.” Essa frase foi publicada em 2004, e possivelmente escrita antes disso, mas ela nunca fez mais sentido do que em 2020 e 2021, anos em que o “espaço pedagógico” foi totalmente ressignificado. Como o sr. entende o espaço pedagógico em tempos de pandemia e, especialmente, no pós-pandemia?

A. V.: Hoje, mais do que nunca, é inadmissível a educação emparedada. Recomenda-se, de vez em quando, uma palestra, uma conferência, um debate, mas aula mesmo só se aguenta se embebida de realidades. Muitas vezes, um bom jornal ou a internet dão mais inspiração ao professor do que Newton, Hegel, Rousseau ou Pasteur. Aliás, sempre faz bem lembrar que o Mestre dos mestres, Jesus Cristo, nunca deu aulas para formar discípulos. Ensinava caminhando, com lições e exemplos, a partir do que via: gente trabalhando no campo, festejando casamentos, pagando impostos, passando fome e, de outro lado, a hipocrisia dos líderes e o autoritarismo dos poderosos.

O perfil e a razão de ser de uma Universidade Comunitária exigem essa visão ampla e abrangente da vida universitária, mais ainda neste nosso momento histórico enfartado de tanta dor e perplexidade, de muita alta tecnologia junto com a inaceitável carência de recursos básicos de sobrevivência de milhões de brasileiros.

É verdade que o distanciamento físico (acho errado falar em distanciamento social), o mascaramento e todos os necessários cuidados que a hora exige impõem muitas reservas à convivência universitária. O campus do qual alunos, professores e funcionários desfrutavam agora parece virar saudade, com aulas e encontros online. Mas a vivência universitária abrange a universalidade dos conhecimentos e dos relacionamentos. Ela se sobrepõe à convivência, porque nasce e brota dentro de cada um de nós, do ideal de ensinar, de aprender, de formar e se formar. A pandemia ensina coisas básicas que a pré-pandemia deslembrava, como fazer a lição de casa, valorizar o ambiente familiar, cuidar do próprio espaço residencial, ler mais, explorar inteligentemente o espaço virtual e, se possível, fazer algum curso rápido, para dar um “up” na carreira e, quem sabe, desenvolver novas habilidades.

Quando a gente sair desse tsunami com cara de UTI de massa, muita coisa será diferente. As universidades têm séculos de sobrevivência a pestes, a guerras, a terremotos, a terrorismos e a ditaduras, e estão aí, no mundo todo, cicatrizadas, mas vivas e vivificantes.

As comunitárias brasileiras e, particularmente, a nossa Uniso, estarão mais sábias. Sofreram o amargo sabor de um vírus arrasador e, com isso, aprenderam o nexo indissolúvel entre sabor e saber. A gente só sabe de fato alguma coisa depois que a saboreou, interessou-se por ela, deu duro para dominá-la. Hoje, tudo é mais difícil. Amanhã, não será mais fácil. Será mais ponderado, com mais ciência, mais tecnologia, sem dúvida, mas com mais sabedoria também. Da universidade não sairá nenhum “homo deus”, mas ela se mostrará mais viva ainda, para continuar a “ser uma Universidade Comunitária que, por meio da integração do ensino, da pesquisa e da extensão, produza conhecimentos e forme profissionais, em Sorocaba, e região, para serem agentes de mudanças sociais, à luz de princípios cristãos”.

Para saber mais: O que são universidades comunitárias?

No contexto brasileiro, a categoria “universidade comunitária” aparece na Constituição de 1988. Basicamente, as universidades comunitárias são universidades particulares, de caráter não-empresarial, que têm a mesma finalidade de uma universidade pública, de modo que oferecem apoio ao Estado na missão de prover educação, mas são organizadas pela sociedade civil (por uma determinada comunidade). As universidades comunitárias não recebem dinheiro do Estado e também não geram lucro — os rendimentos das mensalidades são empregados na própria instituição. Seu único “dono” é a própria comunidade, que participa da gestão por meio de representantes da sociedade com assentos reservados nos conselhos para a tomada de decisões, junto à reitoria.

Texto: Guilherme Profeta

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