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Ciência

Uniso: 100% orientada para o ensino por competências

A Uniso vem buscando identificar quais são as melhores práticas educacionais e as principais tendências na educação em todo o planeta

13 de Outubro de 2021 às 07:48
As metodologias ativas e o ensino por competências têm sido estratégias recorrentes
em países diversos
As metodologias ativas e o ensino por competências têm sido estratégias recorrentes em países diversos (Crédito: Parilov/ Adobe Stock)

Ter amplo acesso à informação não significa necessariamente ter conhecimento sobre determinado assunto, ou as habilidades necessárias para desenvolver algo de modo eficaz. Um bom exemplo disso é a feitura de um clássico da confeitaria francesa, o bolo ópera (no original, gâteau opéra), reconhecidamente um dos bolos mais difíceis de fazer. Composto por diversas camadas de pão de ló embebidas em xarope de café, ganache de chocolate e creme de manteiga, o bolo ópera perfeito costuma ser uma meta a se alcançar para os estudiosos da confeitaria.

“Alguns estudantes, quando chegam às aulas de confeitaria na universidade, logo perguntam se vão fazer o ópera”, conta o coordenador do curso de graduação em Gastronomia da Universidade de Sorocaba (Uniso), o professor mestre Carlos Aberto Martins, que leciona o componente. “Nesse tipo de cozinha clássica, as receitas costumam ser longas, englobando uma série de técnicas que precisam ser dominadas para que o prato pronto seja satisfatório. Em Confeitaria, os nossos estudantes normalmente desenvolvem cada uma dessas técnicas semana a semana, na prática. Nas duas últimas aulas, cada equipe de estudantes recebe uma fotografia de uma sobremesa que chamamos de ‘sobremesas de vitrine’. São pratos clássicos, a exemplo do ópera, que demandam várias técnicas. Então, eles têm de fazer uma leitura da foto, tentando elencar todas as técnicas necessárias para a sua produção. Na sequência, eles vão à cozinha e têm de executar o prato, mas sem ter a receita em mãos.”

A coragem para tomar decisões e apostar em uma ou outra técnica, sem ter a certeza de que ela é aquela que realmente foi empregada na receita original (bem como a assunção de riscos que essa decisão implica), a perseverança para testar técnicas alternativas quando a primeira opção não funciona como o esperado, além da sensibilidade para trocar um ingrediente regional ou sazonal por um que não esteja disponível, por exemplo, são atitudes primordiais para quem cozinha, e a inclusão dessa situação-problema — não ter a receita — permite desenvolvê-las. O professor conta que sempre se surpreende nessa atividade: “Nesse momento, os próprios estudantes se avaliam e percebem quais habilidades conseguiram desenvolver e quais não.”

Logo depois, é a vez de fazer o ópera, finalmente. O bolo demanda técnicas que são variações de tudo aquilo que foi trabalhado em aula, as quais podem ser aplicadas em outros pratos diversos, o que exige a articulação dos conhecimentos, das habilidades e das atitudes desenvolvidas ao longo do curso. Como ressalta Martins, ainda que a receita do bolo ópera esteja amplamente disponível na internet, a mera lista de ingredientes não garante o resultado final; ainda que as informações sobre o prato estejam amplamente disponíveis, sua execução depende de mais do que o mero acesso a elas.

O bolo ópera, clássico da confeitaria francesa, demanda técnicas variadas, o que o torna um dos mais difíceis de fazer - Tatyana Nazatin/ Adobe Stock
O bolo ópera, clássico da confeitaria francesa, demanda técnicas variadas, o que o torna um dos mais difíceis de fazer (crédito: Tatyana Nazatin/ Adobe Stock)

O exemplo da Gastronomia é bastante específico, mas a analogia serve para inúmeras outras áreas da experiência humana: informação não é igual a conhecimento, conhecimento não é igual a habilidade e habilidade não é igual a atitude. O simples reconhecimento dessa premissa pode ter implicações profundas para a educação de forma geral, além de, mais especificamente, para a maneira com que os currículos são concebidos e oferecidos aos estudantes de cursos de graduação, no Brasil e no mundo.

Orientação institucional

Mais do que uma preocupação isolada de cada colegiado, essa é uma preocupação institucional em muitas escolas e universidades, como destaca o professor doutor Rogério Augusto Profeta, Reitor da Uniso: “Durante os últimos anos, muitas de nossas missões técnicas (as viagens que fazemos em busca de benchmarking) vêm buscando identificar quais são as melhores práticas educacionais e as principais tendências na educação em todo o planeta. As metodologias ativas e o ensino por competências — de forma simplificada, aquele que integra teoria e prática, sem a tradicional separação entre os dois momentos — têm sido estratégias recorrentes em países tão diversos quanto o Canadá, os Estados Unidos, o México, o Chile, Portugal e a Austrália, apenas para citar alguns dos quais visitamos. Nesses lugares, a implantação desse tipo de ensino tem possibilitado que os estudantes sejam orientados a desenvolver melhor suas potencialidades. Via de regra, espera-se que essa modalidade pedagógica lhes permita antever e solucionar melhor os problemas inerentes à vida contemporânea, por meio do emprego da criatividade, da inovação, do trabalho em equipe e de uma visão sistêmica, preparando-os para a vida em sociedade como profissionais mais maduros e mais preparados. A lógica é simples.”

Colocar essa lógica em prática, contudo, pode ser mais complicado do que parece, demandando integração entre a gestão da universidade e toda a comunidade acadêmica. Na Uniso, a previsão é que, até 2022, todo o currículo, em todos os cursos, tenha sido adaptado para um currículo baseado em competências.

Do conteúdo à competência

“Muitas vezes nós ainda vivenciamos um currículo tradicional na Educação Superior, que costuma ser baseado na transmissão de informações e centrado no ensino do professor. Em geral, esse currículo é estruturado em disciplinas, as quais, por sua vez, estão organizadas em semestres e direcionadas por ementas. E é certo dizer que esse currículo já contribuiu para formar profissionais que se tornaram competentes ao longo de suas práticas, mas a sociedade mudou, passando a exigir, entre outras demandas, novos perfis profissionais. Nesse contexto, os currículos inovadores — entre os quais está incluído o currículo por competências — são tentativas educacionais de responder aos novos desafios da sociedade do conhecimento.”

Quem faz essa afirmação é a professora doutora Cecilia Gaeta, pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que acumula ampla experiência na implantação de currículos inovadores e, em fevereiro de 2021, participou de um seminário na Uniso como parte das atividades que marcam a transição dos cursos da universidade para a nova configuração curricular.

Ela explica que existem divergências entre a interpretação americana e a europeia quando o assunto é competência: a primeira foca em ter competências, enquanto a segunda foca em ser competente. “A diferença é sutil, mas existe”, diz a pesquisadora. “Eu prefiro a segunda. Eu entendo que agir com competência é um processo que, resumidamente, pode ser descrito da seguinte maneira: diante de uma situação a ser enfrentada, o sujeito identifica, seleciona, combina e mobiliza de forma eficiente os recursos que desenvolveu ao longo da vida (conhecimentos, habilidades, atitudes e experiências), para compreender o contexto, analisar a situação específica, estabelecer prioridades e elaborar um plano de intervenção, visando uma ação eficaz”.

Na prática, o desenvolvimento de competências tem foco na proposição de situações concretas, pragmáticas, a serem resolvidas pelos próprios estudantes por meio de conhecimentos técnicos, habilidades (know-how) e determinados comportamentos adequados a essas situações — em vez do ensino de um conjunto de determinados conteúdos (divididos em “compartimentos”), previamente selecionados por serem considerados pertinentes a cada disciplina.

“O exemplo do bolo ópera é muito bom”, diz o professor doutor Paulo Roberto Teixeira Júnior, docente do curso de Psicologia da Uniso, que acompanhou Gaeta no mesmo seminário. “Todo o conhecimento sobre ingredientes, misturas, temperatura, fermentação etc. se materializa em algo concreto. Se o tal bolo com tais características determinadas não acontecer, a competência não foi desenvolvida. Ou seja, ter me apropriado de toda a literatura sobre o bolo não me torna competente; no máximo vai me tornar informado. Do mesmo modo, ter apenas o treino para fazer um bom bolo ópera, sem conhecer, por meio do estudo, seus processos, no máximo vai me tornar hábil, mas não propriamente competente. Ter apenas a habilidade (o treino) para fazer algo é um tanto limitado e limitante. A competência se dá quando conhecimento e prática se fundem.”

Trata-se assim, como completa Gaeta, de uma inversão de prioridades, que redireciona aquele enfoque que normalmente é atribuído ao ensino para o aprender fazendo, ao resultado final que se deseja obter. “Se pretendemos que um currículo desenvolva um profissional competente, todo o currículo deve estar voltado à ação final. Não adianta se limitar ao desenvolvimento de conhecimentos, ou habilidades, ou atitudes isoladamente; é preciso agregar a tudo isso situações reais e completas de ensino-aprendizagem profissional, ao longo de todo o curso. Faz-se necessário criar oportunidades de fazer, de experimentar, de agir competentemente. Nesse contexto, o papel do conteúdo é outro: enquanto no currículo tradicional o conteúdo é a base, no currículo por competências a base é o fazer crítico (já que só fazer por fazer é habilidade, não é competência). O conteúdo é só um dos elementos dos quais o estudante precisa.”

Origens controversas e resistências

Há muitos e muitos séculos, no Império Romano, o termo competência era utilizado para descrever os bons soldados. Na Idade Média, no campo do Direito, foi empregado para descrever aqueles que detinham a condição para julgar determinadas questões. E, mais recentemente, o termo foi utilizado ainda em referência àqueles indivíduos considerados aptos a executar determinado trabalho. Segundo a pesquisadora Cristiane Bevilaqua Mota, que defendeu em 2021 uma dissertação de Mestrado sobre o tema no programa de pós-graduação em Educação da Uniso, existem muitas divergências acerca do termo “competência”, especialmente entre os educadores, sendo que não existe um consenso sobre a sua definição, a qual depende de uma série de questões — da área do conhecimento que o emprega, de qual termo original em língua estrangeira a palavra deriva (antes de ser traduzido para o português) etc. Tudo isso pode ser terreno fecundo para gerar resistências diversas.

“Há poucas definições de competência publicadas pelas áreas da Educação e da Psicologia nas décadas de 1960 e 1970”, ressalta a pesquisadora. Essa foi uma constatação que ocorreu a despeito do fato de existirem publicações consideravelmente mais antigas, que já tratavam do tema no âmbito da Educação, embora não tenham definido o termo em si. “Na área da Administração, o interesse pelo conceito de competência teve início a partir de 1980 e auge na década de 1990. E foi a partir dessa década que começaram a ser encontrados resultados voltados à definição de competência também na área da Educação, a qual retomou o interesse pela definição do conceito. Na Educação, especificamente, o conceito chegou ao Brasil com a obra do sociólogo suíço Philippe Perrenoud (1999), a partir de referências de autores da área da Administração.”

É daí que costumam vir as críticas ao conceito, que fazem referência principalmente à subordinação ao mercado de trabalho e à supervalorização do pragmatismo e do mecanicismo, em detrimento de uma formação mais ampla e humanista. “É possível observar, por exemplo, que essa definição confere ao conceito de competência o foco no trabalho, que não existe na sua origem. A hipótese de minha pesquisa é que, ao ser referenciado pela área da Administração, o termo acabou sendo associado às empresas, ao mercado de trabalho e ao capitalismo, de modo que o que vem dele passou a ser visto, por boa parte dos educadores, como algo danoso”, destaca Mota.

No entanto, o que sua pesquisa apontou é que o conceito de competência pode ter origem justamente na Educação, a partir de Johann Pestalozzi (1797), um educador suíço que exerceu influência sobre a construção do conceito de competência com as suas “chaves de aprendizagem” (referindo-se ao termo “cabeça” para falar sobre conceitos, a “mãos” para falar sobre habilidades e a “coração” para falar sobre atitudes). Outros pesquisadores da Educação vieram depois, apoiando-se sobre os conceitos de Pestallozzi. Posteriormente, o conceito aglutinou a ideia de aprendizagem por experiência (a integração dos conhecimentos à experiência prática, muito presente nas atuais metodologias ativas).

Outro ponto que tem potencial para causar resistência é o entendimento do conceito de atitude, que integra a tríade normalmente usada para definir competência, junto a conhecimento e habilidades. “Esse conceito demanda que se eduque a partir de valores, o que, especialmente no Brasil, costuma ser associado a moralismo, gerando resistência. Mas atitude também é associada à proatividade, à vontade de fazer. Esse é um exemplo de entendimentos que comprometem o que poderia ser uma educação libertadora (por promover competência), o que tenderia a diminuir várias mazelas sociais”, diz a orientadora do estudo, a professora doutora Maria Alzira de Almeida Pimenta.

“Competência, afinal, é a capacidade de mobilizar recursos — os conhecimentos, as habilidades e as atitudes — para resolver um problema. Isso vale para a vida em geral, seja para questões práticas, pessoais, sociais ou profissionais. Ao trabalharmos com esse conceito nas escolas, teremos pessoas, cidadãos, profissionais mais preparados para resolver diversos problemas, melhorando condições de vida e de trabalho, e implicando em melhorias sociais e econômicas para todos”, conclui Pimenta.

Com base nos seguintes materiais de referência: (1) seminário “Currículo por competência: por onde começar, por onde avançar?”, um evento do comitê gestor do projeto de inovação curricular da Uniso, realizado em 24 de fevereiro de 2021; (2) dissertação “O conceito de competência: origem e aplicações na Educação”, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação da professora doutora Maria Alzira de Almeida Pimenta, aprovada em 9 de fevereiro de 2021.

Texto: Guilherme Profeta

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