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Ciência

Cristal líquido: da tela da sua TV para a prateleira da farmácia

Pesquisa desenvolveu um cristal líquido com potencial para diversas aplicações na indústria farmacêutica

08 de Outubro de 2021 às 09:37
A pesquisadora Juliana Ferreira de Souza desenvolveu um cristal líquido biomimético com potencial para diversas aplicações na indústria farmacêutica
A pesquisadora Juliana Ferreira de Souza desenvolveu um cristal líquido biomimético com potencial para diversas aplicações na indústria farmacêutica (Crédito: Paulo Ribeiro / Arquivo-Uniso)

Em que você pensa quando lê o termo “cristal líquido”? É muito provável que a primeira coisa que venha à sua mente seja um monitor de TV ou computador, os chamados LCDs — sigla para liquid crystal displays, ou, em português, telas de cristal líquido. Mas você sabe como esses monitores funcionam?

Os cristais líquidos são um tipo de material cujas propriedades físicas são fases intermediárias entre líquidos e sólidos. Eles fluem como se fossem líquidos, mas, por outro lado, são compostos de moléculas alinhadas e ordenadas, como se fossem sólidos. Uma característica importante desses materiais é a sua reatividade a estímulos (como os elétricos), o que se dá devido a ligações moleculares fracas. No caso dos monitores de TV e outros dispositivos eletrônicos, por exemplo, o cristal fica aprisionado entre duas camadas de vidro e é estimulado por eletrodos em pequenos pontos determinados, o que faz com que haja variação na opacidade do cristal, determinando em última instância a imagem que você verá em sua tela.

“O cristal líquido foi descoberto pelo botânico austríaco Friedrich Reinitzer em 1888, por meio da observação de dois pontos de fusão distintos numa amostra de benzoato de colesterila. Nas amostras sólidas, o aumento de temperatura levava inicialmente à formação de um líquido turvo, mas, se o aumento da temperatura fosse continuado, o resultado era um líquido transparente”, explica a farmacêutica Juliana Ferreira de Souza, que estudou o material em seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso).

Conforme aumenta a temperatura, a configuração molecular da emulsão muda de uma estrutura micelar para uma estrutura lamelar, que se comporta como cristais líquidos  - Divulgação
Conforme aumenta a temperatura, a configuração molecular da emulsão muda de uma estrutura micelar para uma estrutura lamelar, que se comporta como cristais líquidos (crédito: Divulgação)

— E por que alguém estaria estudando cristais líquidos num programa de Farmácia? — você poderia se perguntar. A questão é que a aplicabilidade dos cristais líquidos vai muito além do monitor de um computador ou da tela do seu celular. Há vários outros locais em que você encontraria cristais líquidos. Até mesmo dentro do seu corpo.

“Há cristais líquidos biológicos que são encontrados, por exemplo, nos ácidos nucléicos, nas proteínas, nos hidratos de carbono e nas gorduras”, lista Souza. “Eles são sensíveis a vários tipos de estímulos: a campos eletromagnéticos, ao pH, a diferentes substratos e interfaces, à temperatura, à intensidade da luz, ao ultrassom e por aí vai.” E é justamente essa sensibilidade aos estímulos que interessa à indústria farmacêutica, pois é possível copiar essas propriedades em cristais líquidos sintetizados, biomiméticos, para diversos fins.

Aplicações na indústria farmacêutica

Em sua pesquisa, Souza formulou um cristal líquido biomimético que pode ser usado para a liberação controlada de um fármaco específico, a curcumina. Ela explica que a curcumina é uma substância com propriedades antibióticas, antioxidantes, anti-inflamatórias e cicatrizantes, que está normalmente sujeita à degradação oxidativa pela exposição à luz e ao calor. Encapsular a curcumina no cristal líquido é uma forma de protegê-la, garantindo que ela se mantenha íntegra durante a estocagem e biologicamente ativa até chegar ao local do corpo humano onde suas propriedades terapêuticas deverão se manifestar. Para isso, Souza criou uma forma de cristal líquido a partir de uma emulsão de lipídios em meio aquoso.

“Emulsões são sistemas formados por líquidos imiscíveis — ou seja, líquidos que não se misturam um com o outro, como o óleo e a água —, acrescidos de uma substância que altera a tensão superficial do sistema resultante, que é chamada de surfactante. As propriedades físicas dos sistemas emulsionados dependem da escolha correta do surfactante e de sua concentração, do tamanho das gotas dispersas, da concentração das fases e da técnica empregada na sua preparação”, explica a pesquisadora.

A essas emulsões, Souza acrescentou a curcumina. Por ter solubilidade limitada na água, a curcumina se liga à fase oleosa da emulsão. Quando a temperatura aumenta (36-37ºC), em laboratório ou potencialmente em contato com o corpo humano, as moléculas se rearranjam num novo padrão (de uma estrutura micelar para uma estrutura lamelar, em camadas delgadas semelhantes às células humanas), com comportamento de cristais líquidos. Assim, a curcumina fica duplamente protegida, pela fase oleosa e pelas várias camadas que formam o cristal líquido resultante.

“Diferentes formulações e técnicas foram empregadas nesse estudo, de modo a selecionar os componentes das formulações e as melhores condições experimentais para a obtenção dos sistemas baseados em emulsões. Nos testes que fizemos, nós conseguimos obter os cristais líquidos e incorporar a curcumina, com uma taxa de liberação em torno de 30%”, diz Souza. Isso significa que, uma vez incorporada num medicamento viável, cerca de um terço da curcumina encapsulada no cristal líquido seria liberada no corpo humano. Essa taxa de liberação a partir de cristais líquidos é superior a outros produtos convencionais e novos estudos, atualmente em desenvolvimento no Laboratório de Biomateriais e Nanotecnologia da Uniso (LaBNUS), apresentam uma taxa de liberação ainda mais elevada. Dessa forma, o conjunto cristal líquido-curcumina tem todo o potencial para diversas aplicações medicamentosas: em forma de géis para aplicação tópica, sobre a pele (como no caso dos cosméticos), ou em diferentes mucosas, como as das cavidades oral, nasal e urogenital.

“Por enquanto, há pouca aplicabilidade comercial para emulsões como essas, pois elas ainda são pouco acessíveis, por serem produtos bastante caros. Mas é justamente daí que vem a importância de se pesquisar essas formulações de cristal líquido, para chegar a formulações com custo-benefício favorável a todas as classes econômicas, que possam ser usadas pela rede pública de saúde”, explica a pesquisadora, ressaltando o fato de essas pesquisas acontecerem no LaBNUS, que fica no Parque Tecnológico de Sorocaba, um espaço propício para futuras parcerias com a indústria farmacêutica e start-ups focadas em inovações tecnológicas.

Para quem deseja ler mais sobre cristais líquidos biomiméticos, Souza e a equipe do LaBNUS publicaram em 2017 o artigo “Spotlight on Biomimetic Systems Based on Lyotropic Liquid Crystal” (em inglês), no periódico internacional Molecules. O conteúdo é gratuito e está disponível para acesso livre.

Para saber mais: O que são materiais biomiméticos?

O nome, de origem grega, já diz tudo: biomimético é um material que imita algo que é vivo. “Materiais biomiméticos são produtos projetados racionalmente, que oferecem vantagens em relação aos materiais convencionais não modificados”, explica a pesquisadora. “Podem ser utilizados tanto na medicina regenerativa quanto em sistemas de liberação controlada de fármacos. São denominados biomiméticos quando são projetados para detectar e responder a estímulos fisiológicos, ou então para imitar ou se assimilar aos aspectos estruturais e funcionais de um ser vivo, seja ele vegetal ou animal, em especial o ser humano.”

Com base na dissertação “Desenvolvimento e avaliação de nanopartículas cristalinas líquidas, liotrópicas, para veiculação e liberação de curcumina”, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação do professor doutor Marco Vinicius Chaud e aprovada em 9 de fevereiro de 2017. O trabalho completo contém artigos científicos ainda não publicados. A divulgação pública se dará somente após a publicação dos resultados.

Texto: Guilherme Profeta 

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