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Justiça restaurativa: tendência no Direito e tema de trabalho de conclusão de curso na Uniso

Conjunto de técnicas de resolução de conflitos evitam o encaminhamento de novos processos judiciais

03 de Agosto de 2021 às 14:35
Priscila de Miranda Nascimento, advogada
Priscila de Miranda Nascimento, advogada (Crédito: Arquivo pessoal)

O conceito de justiça é, sem dúvidas, um pilar fundamental para as sociedades democráticas. Porém, o significado atribuído ao termo — que é uma construção social, e não um conceito imutável — varia de acordo com o local, a época e a perspectiva: pode significar, por exemplo, a “virtude de dar a cada um aquilo que é seu”, ou a “faculdade de julgar segundo o direito e melhor consciência”. Segundo o professor doutor Vidal Dias da Mota Junior, que leciona Filosofia ao curso de Direito da Universidade de Sorocaba (Uniso), vários são os conceitos de justiça, sendo que a acepção encontrada em Aristóteles — de que justiça é dar aos indivíduos aquilo que lhes é devido — é análoga aos significados que podem ser encontrados em dicionários contemporâneos da língua portuguesa (como o Aurélio, de onde vêm os trechos selecionados neste parágrafo). Mas, se justiça é dar aos indivíduos aquilo que cada um merece, como julgar, de fato, o que é devido a cada um em cada caso específico, garantindo o melhor resultado possível para os envolvidos e para toda a sociedade? Diferentes sociedades, afinal, podem ter respostas diferentes para essa pergunta.

Tome-se o caso do Brasil: a professora mestra Vanessa Gurgel Gonzales Correa, que leciona História do Direito na Uniso, explica que o sistema legal brasileiro tem como base o direito romano, enraizado na noção (positivista) de que a lei, pronta e independentemente da situação, deve ser aplicada da mesma forma para todos os indivíduos. “Em outros países, contudo”, ela comenta, “o tratamento é diferente. É o caso da Inglaterra. Não dá para dizer que a cultura é igual em todo lugar, então existem diferenças, também, nos sistemas legais.”

Essas foram questões que motivaram a advogada Priscila de Miranda Nascimento, na época ainda estudante de Direito na Uniso, a se aprofundar numa abordagem alternativa para o padrão brasileiro de justiça, a justiça restaurativa. O artigo resultante foi apresentado como seu trabalho de conclusão de curso, defendido em 2019 sob o título “Justiça Restaurativa no Brasil: Novos caminhos para a resolução de conflitos e a desjudicialização”. Na pesquisa, ela reuniu informações sobre a chamada justiça restaurativa, um conjunto de técnicas de resolução de conflitos que evitam o encaminhamento de novos processos judiciais. Em outras palavras, a justiça restaurativa é uma maneira diferente de compreender, viver e aplicar o direito penal, de modo a mediar uma solução entre ofensor e vítima sem precisar passar por todo o processo judicial (por vezes demorado e oneroso). Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), esse processo se dá a partir do diálogo mediado entre ofensores e vítimas, que deve ser conduzido com criatividade e sensibilidade.

O termo começou a ser utilizado no Brasil em 2002. Atualmente, inclusive, ele já está compreendido na grade curricular do curso de Direito da Uniso. Por se tratar de algo relativamente novo, que muita gente ainda desconhece, o assunto despertou o interesse em Nascimento. “Penso que devemos estudar outras formas de resolução de conflitos”, opina ela.

“Devemos ter a mente aberta para quebrar paradigmas e propor novas soluções para os problemas da sociedade.”

Ela defende, também, que inserir um infrator no sistema carcerário não é sempre a melhor forma de garantir os melhores resultados para a sociedade em longo prazo.

A justiça restaurativa na prática

Quando um delito acontece (geralmente delitos de menor potencial ofensivo), a abertura de um processo judicial é substituída por um círculo de conversa entre as pessoas envolvidas, que têm a oportunidade de compartilhar como se sentem e, no caso dos ofensores, o porquê de terem cometido o ato. Procura-se, assim, uma forma de resolver o problema satisfazendo todos os envolvidos. “Às vezes é possível resolver a situação dialogando e colocando as pessoas frente a frente para que um entenda a razão do outro”, diz Nascimento. O círculo é mediado por alguém que já tenha feito o curso de aplicação da justiça restaurativa, que, segundo a advogada, compreende um amplo leque de profissionais da área, incluindo, por exemplo, funcionários do conselho tutelar, do fórum e das polícias civil e militar.

Um exemplo emblemático da justiça restaurativa funcionando na prática é um caso ocorrido em Caxias do Sul (RS) e apresentado na TV Justiça em fevereiro de 2014, que Nascimento cita em seu artigo: nessa ocasião, quatro pessoas, incluindo adolescentes, assaltaram um restaurante para roubar um malote de R$ 15.000. Dois envolvidos eram funcionários do estabelecimento, que só foram presos alguns meses após o crime. Durante esse tempo, o valor roubado foi gasto em roupas e calçados de grife, correntes de ouro e festas. O juiz regional da Infância e da Juventude de Caxias do Sul, Leoberto Brancher, que cuidou do caso na época, convidou todos os envolvidos para uma experiência baseada na justiça restaurativa: ele reuniu os adolescentes, seus pais e a vítima para uma conversa sobre o crime, com a presença de uma facilitadora. Os jovens se mostraram dispostos a devolver o dinheiro e o juiz então lhes concedeu a liberdade assistida, combinando a devolução do valor roubado de forma parcelada. O magistrado também exigiu que o pagamento fosse feito mensalmente no local do assalto. Após esse acordo, sabe-se que um dos jovens envolvidos no assalto começou a trabalhar.

No estado de São Paulo — que compreende a Região Metropolitana de Sorocaba — foi desenvolvida a metodologia dos polos irradiadores, as instâncias que recebem as propostas locais de resolução de conflitos. Hoje, muitos desses polos têm parcerias para que os processos circulares possam ocorrer em colégios da rede pública, de modo a solucionar casos de intrigas, lesões corporais, ofensas e danos patrimoniais que por ventura venham a acontecer nas premissas. Um exemplo igualmente emblemático aconteceu no município de Tatuí, em 2014, num desses polos, quando jovens que haviam sido flagrados pichando muros de forma ilegal foram convidados a contribuir para o planejamento do desenvolvimento artístico da cidade. Conforme narra Nascimento, com a participação da comunidade, os jovens que concordaram em participar desse processo puderam compreender seus erros e, ao mesmo tempo, a partir de seus relatos, foi possível constatar a escassez de espaços disponíveis para que os munícipes se expressassem por meio do grafite como arte. Assim, o Conselho Municipal da Cultura, auxiliado pelos jovens infratores, pôs em prática um projeto para identificar pontos adequados à prática artística no município.

No Brasil, os métodos da justiça restaurativa vêm sendo adotados desde 2005, seguindo os moldes das Nações Unidas e, atualmente, há sedes que implementam esse sistema espalhadas por todo o país. No estado do Ceará, por exemplo, segundo o site da Defensoria Pública, o Centro de Justiça Restaurativa (CJR) do estado intermediou acordos em 83% dos casos entre abril e dezembro de 2018, estimando que, em comparação a outras práticas, a justiça restaurativa reduziu o nível de reincidência em 14%. Segundo Nascimento, apesar de no país esse método ainda ser aplicado apenas em crimes de menor potencial ofensivo (como brigas de vizinhos e danos ao patrimônio), existe a possibilidade de os mesmos métodos serem aplicados em casos mais graves, a exemplo do que acontece em outros países.

“Nos últimos anos, como uma alternativa para a pacificação social e para a redução dos litígios distribuídos perante o Poder Judiciário, o CNJ vem incentivando a utilização de mecanismos consensuais para a solução de conflitos (tais como a conciliação, a mediação e a arbitragem). Infelizmente, contudo, a justiça restaurativa é uma modalidade de solução de conflitos ainda pouco utilizada no Brasil, quando comparada às outras formas, mas esse tipo de iniciativa tem se multiplicado, de modo que o seu crescimento é uma tendência”, conclui o professor doutor Fernando Silveira Melo Plentz de Miranda, orientador da pesquisa de Nascimento e coordenador do curso de Direito da Uniso.

Para saber mais: A justiça restaurativa ao redor do mundo

Segundo o professor doutor Mark Umbreit, docente na Universidade de Minnesota e autoridade no assunto, numa entrevista publicada em 2019 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), a justiça restaurativa está presente em mais de 60 países em todo o mundo. A forma mais conhecida é a mediação entre vítima e ofensor, muito utilizada na Europa e na América do Norte para resolver conflitos menores, como em escolas e outras comunidades. Em Taiwan, por exemplo, a justiça restaurativa está totalmente integrada ao sistema criminal; Roberto Bacellar, ex-presidente da Escola Nacional da Magistratura (ENM), menciona num texto publicado pela Associação dos Magistrados Brasileiros que, naquele país, a vítima pode inclusive escolher qual será a pena do acusado, ou até mesmo perdoá-lo, se assim desejar, caso o ofensor seja réu-primário. Correa conta que, em outros países, como a Nova Zelândia e o Canadá, a justiça restaurativa chega a incluir outras pessoas no processo de mediação, como familiares, amigos, diretores de escolas, professores e colegas de trabalho. Na Inglaterra, dados de 2012 disponíveis no portal ConJur apontam que 85% das vítimas que passaram pelo processo de justiça restaurativa saíram satisfeitas; inclusive, em 2013, foram destinadas £29 milhões (o que hoje seria equivalente a mais de R$200 milhões) à justiça restaurativa pelo Ministério da Justiça do país, sendo que o montante veio justamente das multas pagas pelos próprios ofensores.

Texto: Kallyohana Momesso, Giovana Becegato, Giovanna Abbate, Nicole Annunciato, Rodrigo Andrade e Talissa Medeiros (FOCS, Agência Experimental de Jornalismo da Uniso)