Fluxo reverso permite reciclar até 95% de um automóvel
Cerca de 500 veículos são abandonados nas ruas todos os anos e, nos pátios do Denatran, eles já somam mais de 100 mil
Hoje, um terço da frota de automóveis de todo o Brasil está no estado de São Paulo. Segundo dados de janeiro de 2019 do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), a atual frota paulista corresponde a mais de 18 milhões de carros, um para cada 2,5 habitantes. De fato, entre os anos de 2004 e 2014, o aumento da frota foi proporcionalmente maior do que o aumento da própria população, de modo que se esperava que até 2018 essa razão caísse para menos de 2 habitantes por automóvel. Isso só não aconteceu devido à crise econômica.
Para o pesquisador Milton Augusto Barbosa, “o tamanho dessa frota torna premente a reflexão sobre duas perspectivas em conflito, uma que é favorável ao aumento da quantidade de automóveis e outra que advoga em prol da sustentabilidade.” Em sua dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Processos Tecnológicos e Ambientais da Universidade de Sorocaba (Uniso), ele abordou essa tensão entre desenvolvimento e meio ambiente, tentando responder uma pergunta básica: o que fazer com todos esses carros, quando é chegada a hora de descartá-los?
“O problema se agrava a cada dia, porque a idade média da frota vem diminuindo e nem todo ferro-velho é fiscalizado ou licenciado”, diz o pesquisador. Hoje, cerca de 500 veículos são abandonados nas ruas todos os anos e, nos pátios do Denatran, eles já somam mais de 100 mil. Além das questões ambientais, há também as sociais, já que esses depósitos, geralmente localizados em áreas urbanas periféricas e de baixa renda, se transformam em criadouros de animais como ratos e mosquitos, representando riscos à saúde pública.
Segundo Barbosa, há muitos estudos que discutem o processamento e a destinação de produtos cujos ciclos de vida chegaram ao fim, mas poucos de fato propõem sistemas de gestão para dar conta deles. Foi esse objetivo, então, que guiou a sua pesquisa, dividida em três etapas: em primeiro lugar, ele analisou como ocorre a gestão dos automóveis em fim de vida (os chamados AFVs) em Portugal, que segue as regras da comunidade europeia; depois, para entender as demandas da realidade brasileira, ele conduziu entrevistas com dez empresas de reciclagem que atuam no mercado paulista, cujos processos poderiam englobar, numa situação ideal, a reciclagem de até 95% dos componentes dos AFVs; por fim, com base nos dados obtidos, ele propôs um novo sistema de gestão para os veículos no estado de São Paulo, visando melhorar a cadeia automotiva no quesito sustentabilidade.
“O modelo de gestão de AFVs de Portugal foi o escolhido por representar a legislação da comunidade europeia, que determina, desde 2015, que apenas 5% dos componentes de automóveis podem ir para aterros, ou seja, 95% devem ser reciclados ou reutilizados”, explica o pesquisador, destacando que o estado de São Paulo não conta com uma legislação tão rigorosa. “Nós temos a Lei Estadual 15.276, de 2 de janeiro de 2014, que regulamenta os desmanches de automóveis, mas não contempla um sistema de gestão e indicadores para tomada de decisão. Além dessa lei, existe uma Política Nacional de Resíduos Sólidos, que representa um forte avanço, mas não inclui todos os itens que compõem um automóvel, somente pneus, baterias, lâmpadas fluorescentes, eletroeletrônicos e óleos lubrificantes.” Para o pesquisador, o ideal seria uma nova política nacional, que tornasse obrigatório o tratamento de todos os componentes.
Em termos tecnológicos, isso é possível. Ao menos foi o que mostraram as entrevistas conduzidas na segunda etapa da pesquisa:
“O grande problema não é a tecnologia para reciclar, é o fato de esses carros ficarem parados nos pátios sem ser desmontados. Partes deles são reutilizadas, mas outras partes são prensadas e mandadas sem separação para as usinas de aço. Ou seja, o aço prossegue contaminado com plástico, borracha e outros materiais. A raiz do problema é a ausência desse sistema de gestão, que contemple a desmontagem. As montadoras, o poder público e até mesmo o usuário final devem estar interligados para fazer esse sistema funcionar.”
Sua proposta para resolver o problema é um sistema de gestão amparado por uma nova política de resíduos, que funcione num modelo de condomínio industrial de fluxo reverso, algo como uma linha de montagem de veículos, mas ao contrário. “Normalmente você tem as linhas de montagem nesses condomínios, ao redor dos quais estão as empresas de componentes. O que eu proponho é a mesma coisa, mas, em vez de montar, para desmontar. As empresas de reciclagem estariam ao redor da linha para poder cuidar do processamento, podendo inclusive gerar retorno financeiro, além dos ganhos socioambientais”, explica o pesquisador.
O novo modelo, ele defende, é uma necessidade urgente. Por aumentar a reciclagem e a reutilização, ele pode contribuir não só para diminuir a quantidade de resíduos nos aterros, mas também a necessidade de exploração de novos recursos naturais finitos. E Barbosa não para por aí: “Uma vez implementado, o sistema não precisa se limitar aos automóveis; ele pode e deve ser expandido para todo tipo de produto”, conclui.
Com base na dissertação “Gestão de automóveis final de vida no estado de São Paulo: um modelo de reciclagem, reuso e destinação sustentável”, do Programa de Pós-Graduação em Processos Tecnológicos e Ambientais da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação da professora doutora Débora Zumkeller Sabonaro e aprovada em 9 de dezembro de 2015. Acesse: https://bityli.com/HtH69
Texto: Guilherme Profeta
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