O universo machista nos livros infantis sobre futebol
A pesquisa, realizada no Mestrado em Comunicação e Cultura, surgiu do trabalho desenvolvido pela autora em projetos sociais
“O futebol não é uma questão de vida ou morte. É muito mais importante que isso”, disse certa vez o jogador Bill Shankly, da Escócia. Para os brasileiros, então, esta frase é ainda mais verdadeira. Afinal, vivemos no “país do futebol” - um esporte que faz parte da nossa identidade cultural, promotor de integração social e disseminador de paixões, que nascem ainda na infância. Mas como é construída a imagem do futebol no universo infantil?
A pesquisadora Mariana Harumi Segatto Fugikauva, da Universidade de Sorocaba (Uniso), investigou o tema por meio dos livros infantis. “A imagem do jogador de futebol nos livros que pesquisei mostra a figura do herói, investido de sentimento de brasilidade. Mas é eivada de estereótipos, entre os quais o universo machista desponta e se sobrepõe", resume Fugikauva.
O trabalho, feito para a dissertação no Mestrado em Comunicação e Cultura da Uniso, utilizou várias searas do conhecimento para verificar a construção do futebol nos livros infantis, entre elas a comunicação, semiótica, cultura, história, mitologia e psicologia.
O interesse da pesquisadora pela representação do futebol dirigida a crianças surgiu do trabalho que ela desenvolveu, como psicóloga, em projetos sociais. “Fiz um trabalho com crianças numa comunidade de grande vulnerabilidade social em Angatuba (região de Sorocaba), entre 2006 e 2014. No primeiro ano, 90% do nosso público era feminino. Para atrair os meninos, criamos um projeto de futebol, com jogos, campeonatos, debates sobre os jogadores, livros sobre o tema... Foi por essa via que tivemos acesso aos meninos”, conta a pesquisadora.
Ao longo do projeto, Fugikauva percebeu o sonho dos garotos de serem jogador de futebol e o quanto eles cultuavam alguns jogadores como verdadeiros heróis. “Esse fato despertou minha vontade de compreender o que levava esses meninos a nutrirem esse sonho. Começou daí minha busca por esse estudo, que focou nos livros infantis com a temática do futebol, sobretudo os que podem ser encontrados nas escolas e bibliotecas municipais. Também demos preferência aos que eram adotados em escolas como paradidáticos”, explica Fugikauva, que concluiu a pesquisa e o mestrado em 2017, com a orientação da professora doutora Luciana Coutinho Pagliarini de Souza. A dissertação recebeu como título “A Produção de Sentidos de Representações Verbovisuais do Futebol em Livros para Crianças”.
Os livros selecionados para a pesquisa foram: “Ora Bolas” (de Paulo Tatit e Edith Derdyk, com ilustração de Andres Sandoval); “Gabriel e a Copa do Mundo de 2014” (de Ilan Brenman, com ilustrações de Silvana Rando); “Pelegrino e Petrônio” (do autor e ilustrador Ziraldo); e “O Presente” (um livro só de ilustrações de Odilon Moraes).
Ídolos e heróis num universo masculino
A pesquisa de Fugikauva constatou que o jogador de futebol está sempre em destaque e de forma positiva nesses livros, no papel do herói: ele é esforçado, cumpre trajetos, luta pela vitória e, mesmo quando perde, ele não desiste, ao contrário: deixa certo que lutará pela vitória.
“Com relação ao gênero, concluímos que os livros não incluem o feminino no futebol, as meninas aparecem sempre como expectadoras ou acompanhantes dos meninos/jogadores. Com relação aos meninos, os livros passam a informação de ser mais adequado a eles o futebol em detrimento de outro esporte", explica a pesquisadora.
No livro “Ora Bolas”, por exemplo, a paixão do protagonista pelo futebol reforça o senso comum de que todo garoto brasileiro gosta de futebol. “Nas páginas de ‘Ora Bolas’, os meninos estão sempre em movimento de jogo e as meninas aparecem como expectadoras, num estereótipo de que as meninas não gostam ou não são aceitas nessa seara, o que não é verdade. A bola nesse livro aparece como uma espécie de passaporte para galgar outros mundos, propícios para realizar os sonhos de muitos meninos brasileiros e, nessa trajetória, deparamo-nos com a forte metáfora da jornada do herói”, analisa a pesquisadora.
No livro “Gabriel e a Copa do Mundo de 2014” também se verifica o estereótipo futebol/Brasil/gênero masculino, pois a menina é sempre acompanhante do menino que joga. “Gabriel é loiro, branco do cabelo impecável, sempre arrumadinho e acompanhado de sua família, aparentemente, burguesa. Em momento algum temos um personagem que se diferencia do padrão estético de Gabriel, todos são brancos”, explica.
O livro “O presente” é outro que trabalha com os signos da brasilidade e com o preconceito de gênero: novamente as meninas não entram em campo. Também o herói desse livro cumpre a jornada do início ao fim; o menino conhece a derrota, mas segue em frente e vence.
Por fim, o livro “Pelegrino e Petrônio” cria a novidade dos personagens serem dois pés. Ainda compondo o inusitado deste livro, há o conflito de ideais de cada um deles: um sonhava em ser jogador de futebol e o outro, em ser bailarino. Contrastes como força/leveza; corridas/passos suaves; a chuteira/a sapatilha; a masculinidade/a feminilidade foram aglutinados numa só pessoa ou num só herói: o Rei Pelé, símbolo do futebol-arte brasileiro. “Assim, se apagaram as diferenças”, destaca Fugikauva.
A pesquisa conclui que o universo do futebol se mostrou representado como um universo lúdico, tecido com cores, formas, símbolos de brasilidade, com a presença forte do jogador/herói como símbolo identitário da cultura brasileira. “Mas a imagem desse herói se revela estereotipada. Trata-se de um jogador de futebol branco, 'arrumadinho’, habitante de um universo eminentemente machista, contradizendo o que observamos na contemporaneidade brasileira em que a grande jogadora, premiada várias vezes como a melhor do mundo, é uma mulher, a Marta. Apenas o livro do Ziraldo rompe com a estereotipia e é o único que consegue dissipar o ranço do lugar-comum”, afirma Fugikauva.
Com base na dissertação “A produção de sentidos de representações verbovisuais do futebol em livros para crianças”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso, elaborada sob orientação da professora doutora Luciana Coutinho Pagliarini de Souza e aprovada em 27 de agosto de 2017. A dissertação pode ser encontrada e baixada no site http://comunicacaoecultura.uniso.br/producao-discente/2017/pdf/mariana-fugikauva.pdf
Texto: Marcel Stefano