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Pesquisa aponta os desafios no combate à resistência bacteriana

Andrade Júnior analisou dados referentes ao consumo de antibióticos no CHS durante os anos de 2013 a 2016

08 de Maio de 2020 às 15:45
"O uso mais consciente dos antibióticos depende da conscientização de toda a população", afirma o pesquisador. (Crédito: Paulo Ribeiro)

É possível que já tenha acontecido com você: depois de se sentir mal por alguns dias, você vai ao médico e sai do consultório com uma receita de antibiótico. A suspeita é de uma infecção bacteriana. Você toma o medicamento regularmente, conforme as indicações e, mesmo assim, a infecção não cede, obrigando o médico a aumentar a dose ou prescrever outro antibiótico. Pode não parecer, mas essa situação configura um problema gravíssimo de saúde pública, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Nos hospitais, em que os pacientes estão mais suscetíveis a infecções, a questão é ainda mais problemática.

“A resistência bacteriana aos antibióticos tem se tornado um desafio crescente, à medida que as opções terapêuticas para o tratamento de algumas infecções estão cada vez mais restritas. Em hospitais estadunidenses, por exemplo, a constatação de que cerca de 70% dos patógenos isolados são resistentes a pelo menos um antibiótico confirma a preocupação com esse panorama.”

A afirmação é do professor Isaltino Pereira de Andrade Junior, do curso de graduação em Biomedicina da Universidade de Sorocaba (Uniso), que estudou o assunto durante sua pesquisa de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade.

O estudo foi conduzido num grande hospital público na cidade de Sorocaba, o CHS (Conjunto Hospitalar de Sorocaba), no qual Andrade Júnior vem atuando já há mais de 20 anos. Seu objetivo foi verificar, a partir de uma base de dados, como funciona na prática a prescrição de antibióticos controlados, um dos grandes fatores causadores do fenômeno ao qual se dá o nome de resistência bacteriana.

Compreendendo a resistência bacteriana

Para entender o que existe por trás do fenômeno, é preciso considerar um processo que os cientistas chamam de seleção natural: comece imaginando uma bactéria, e agora imagine que essa bactéria se reproduziu, gerando uma descendente. Considere, também, que essa segunda geração nasceu com uma pequena alteração que a torna mais adaptada para viver num determinado ambiente. Essa é uma vantagem adaptativa, que dá à nova bactéria mais chances de sobreviver até a hora de se reproduzir, passando adiante os genes responsáveis pela alteração que ela sofreu.

Agora imagine a mesma situação, mas acrescentando os antibióticos na história: um determinado tipo de bactéria vive num ambiente em que há uma quantidade moderada de antibióticos, até que, de repente, a concentração de antibióticos aumenta. O ambiente mudou e muitas bactérias morrem por isso, mas então surge uma superbactéria, que é capaz de sobreviver à nova concentração de antibióticos. Rapidamente, conforme as menos adaptadas competem com a nova geração, toda a população de bactérias é substituída pelas descendentes mais fortes e, então, aquela quantidade moderada de antibióticos, que no passado era capaz de controlar a população, já não dá mais conta. E isso está acontecendo o tempo todo, em todo o mundo. Como as bactérias têm um ciclo reprodutivo muito mais rápido do que outras criaturas, esse processo de mutações sucessivas pode até mesmo ser observado em tempo real.

O professor doutor Fernando de Sá Del Fiol, orientador da pesquisa, explica que aumentar a quantidade de antibióticos em uso pela população é o mesmo que criar um ambiente mais competitivo para as bactérias, o que força a seleção de superindivíduos mais resistentes. “Ainda que esse processo não possa ser chamado de seleção natural, já que não se trata de algo verdadeiramente ‘natural’, ele funciona exatamente da mesma forma: uma quantidade monstruosa de bactérias é exposta ao antibiótico e basta apenas uma que detenha algum mecanismo de defesa para que, em 20 minutos, ela se torne duas, e depois quatro, oito, dezesseis, crescendo em progressão geométrica, de forma que em algumas horas existe toda uma população com a mesma característica fenotípica da bactéria zero, ou seja, a resistência a um determinado antibiótico”, ele explica. A única forma de barrar essa situação é motivando a criação de um ambiente em que haja menos antibióticos circulando e sendo utilizados.

Resultados e recomendações

Em sua pesquisa, Andrade Júnior analisou dados referentes ao consumo de antibióticos no CHS durante os anos de 2013 a 2016, totalizando 45 meses. Nesse período, foram 26.612 requisições de 22 tipos diferentes de antibióticos de uso controlado. Todos os dados foram armazenados num sistema informatizado, também implementado pela Uniso, que registrou se os pedidos foram liberados, com ou sem restrições, ou se foram negados.

O pesquisador explica que, na grande maioria dos casos (95%) houve a liberação dos antibióticos sem qualquer tipo de restrição. “Apenas 0,52% dos pedidos foram negados completamente; os outros 4,48% equivalem a requisições aceitas com ajustes de dose”, ele detalha. “O número de solicitações não autorizadas é muito pequeno, evidenciando que praticamente não houve restrições. Esse é, portanto, um modelo que se mostra insuficiente para controlar o uso de antibióticos e combater a resistência bacteriana.”

Como, então, mudar esse cenário — que está longe de ser um caso isolado, já que dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) mostram que mais de 50% de todos os medicamentos são receitados, dispensados e vendidos de forma inadequada? Para o pesquisador, há dois caminhos: a restrição e a educação.

“Quando existe a necessidade de intervenção com antimicrobianos, recomenda-se que seja evitado, nos casos mais leves, o uso de antibióticos de amplo espectro, para que seja minimizada a possibilidade de indução da resistência bacteriana”, ele diz. Essa é uma decisão que cabe ao médico responsável e, no Brasil, é amparada por uma resolução do Ministério da Saúde (RDC Nº 44, de 26 de outubro de 2010), que proíbe a venda de antibióticos sem prescrição médica. Aos médicos cabe distinguir os casos que devem ser tratados com antibióticos ou de outras formas — o que nem sempre funciona na prática.

“Esse é um método restritivo, mas existem também os educacionais, que, de modo geral, tendem a gerar menos conflitos e são utilizados em programas de racionalização da terapia com antibióticos”, continua o pesquisador. Esses dependem da conscientização de toda a população, por um uso mais consciente dessa classe de medicamentos.

“É preciso lembrar”, conclui Del Fiol, “que nós estamos seguindo por uma estrada que tem um fim. Quanto mais antibióticos nós usamos, mais rápido dirigimos por essa estrada. O uso racional de antibióticos objetiva usar o arsenal que temos à disposição da melhor maneira possível, porque um dia ele certamente vai se esgotar e então não teremos alternativas para combater alguns microrganismos.”

Para saber mais: Observando a evolução das bactérias em tempo real

Foi isso que fez um grupo de pesquisadores da Harvard Medical School, a faculdade de Medicina de Harvard, num experimento bastante ilustrativo que está disponível no canal da instituição no YouTube. Os pesquisadores posicionaram uma cultura inicial de Escherichia coli — uma bactéria bastante comum e grande causadora de infecções urinárias em humanos — numa grande plataforma coberta de ágar e, depois, cobriram os segmentos seguintes dessa plataforma com quantidades crescentes de antibióticos: primeiramente uma quantidade moderada, depois dez vezes essa quantidade, depois cem e, finalmente, mil vezes a quantidade inicial. Então, o que eles fizeram foi contar quanto tempo levou para que surgissem mutações suficientes da E. coli, de modo a possibilitar que as bactérias avançassem por todos os segmentos, da área livre de antibióticos até o lado em que a concentração era muito maior. O resultado? Apenas onze dias.

Com base na dissertação “Avaliação da utilização de antibióticos de uso restrito em um grande hospital público brasileiro”, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação do professor doutor Fernando de Sá Del Fiol e aprovada em 26 de fevereiro de 2018. Acesse clicando aqui.

Texto: Guilherme Profeta