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Tráfico de mulheres: o pesadelo por trás de falsas promessas

15 de Junho de 2019 às 11:08

Tráfico de mulheres: o pesadelo por trás de falsas promessas

Meninas e mulheres são vítimas de tráfico humano - Foto: Pixabay.com

Tratadas como mercadorias, meninas e mulheres são vítimas de tráfico humano, seja por meio da exploração de sua força de trabalho, do uso de seus corpos para fins sexuais e até dos órgãos, tecidos e cabelos. A prática, no entanto, parece distante de nosso cotidiano devido às percepções ainda estereotipadas das formas como o crime ocorre. A diretora-executiva da Associação Mulheres pela Paz, Vera Vieira, explica que, além da coação física, há ainda outras formas de aliciamento, como o uso de promessas falsas de trabalho, adoção ou casamento, por exemplo. A especialista alerta que é preciso desconfiar de propostas atrativas demais. “Todo mundo busca o sonho de uma vida melhor, mas no caso do tráfico de mulheres e meninas elas vão encontrar o pesadelo”, afirma.

A Associação Mulheres pela Paz contribui para informar a população sobre o tráfico humano e outras questões relacionadas aos direitos da mulher, capacitar ativistas e ainda reunir dados sobre o tema. No última dia 8 de junho, a entidade promoveu um painel público sobre o problema no auditório da Secretaria de Igualdade e Assistência Social de Sorocaba, reunindo lideranças especializadas na temática e autoridades.

Vera aponta que o pesadelo começa quando a realidade por trás das promessas se revela. A proposta para que uma menina do interior estude com uma família na Capital, torna-se uma infância roubada para a servidão doméstica. Ou o atrativo salário oferecido em uma oportunidade única na Europa acaba se esvaindo em uma dívida impossível de quitar com o aliciador. Os autores do tráfico usam de ameaça, dívidas, apreensão de documentos e até cárcere privado para manter as vítimas em situação de exploração.

Tráfico de mulheres: o pesadelo por trás de falsas promessas

Vera Vieira é diretora-executiva da Associação Mulheres pela Paz - Foto: Erick Pinheiro

Outro fator que impede a denúncia por parte da vítima é a vergonha. Muitas acreditariam que por ter aceitado a proposta inicial não teriam como denunciar a situação. “O fato dela ter consentido não determina que deixou de ser um crime de tráfico de pessoas”, esclarece Vera. A conexão desse tipo de situação com a prostituição também inibiria a reação.

Para a especialista há a necessidade de agir na prevenção, informando a população. “As pessoas que são vítimas são as mais pobres e de baixa escolaridade, portanto muito vulneráveis”, afirma. Os aliciadores seriam muitas vezes pessoas de confiança, amigos da família ou pessoas conhecidas por meio das redes sociais.

Vítima

Durante o painel público realizado em Sorocaba, uma mulher trans relatou a própria história como vítima de tráfico humano. “Eu, enquanto uma pessoa trans de Sorocaba vivendo em uma situação de vulnerabilidade por não ter emprego e outras oportunidades, buscava segurança e uma estabilidade financeira”, recordou.

Tráfico de mulheres: o pesadelo por trás de falsas promessas

Assunto foi tema de painel público em Sorocaba - Foto: Erick Pinheiro

Foi uma amiga de uma amiga que a conectou com o aliciador na Europa e ela acabou indo para a Itália para se prostituir. “Fui ciente de que deveria pagar uma taxa, que na época era de 10 mil euros, mas que em cerca de três meses pagaria essa dívida”, disse. Os desafios enfrentados ao chegar lá, no entanto, mostraram que quitar o débito não seria tão fácil. A dificuldade para aprender o idioma, o racismo e a perseguição das autoridades castigavam as mulheres trans, que mesmo acostumadas a sobreviver na violência brasileira se viam em situações insustentáveis. “Demorei dez meses para pagar a dívida”, revela.

A motivação para aceitar a proposta costuma ser o desejo de melhorar a vida da família, sendo que muitas das aliciadas eram de regiões pobres do nordeste do Brasil. “Elas são levadas para lá com um sonho na mala, de dar uma casa para a família, ter uma vida melhor”, lamenta. A vítima relata que presenciou meninas que eram coagidas a pagar a dívida devido a ameaças de que seus familiares sofreriam consequências. “Elas falavam: por uma escolha minha não quero que minha família sofra”, relata.

Após dois anos, ela acabou voltando para o Brasil. “Eu não consegui chegar nos meus objetivos que me fizeram aceitar tudo isso, que era dar uma casa própria para minha família, pois já não aguentava mais”.

Tráfico de mulheres: o pesadelo por trás de falsas promessas

Vergonha e desconhecimento são entraves para as denúncias. Crédito da foto: Pixabay.com

Lucro

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o tráfico de pessoas é a terceira maior atividade criminosa do mundo, superada apenas pelo tráfico de armas e drogas. O lucro anual é de quase 32 bilhões de dólares. As vítimas são destinadas à prostituição forçada, comércio de órgãos, trabalho escravo (em latifúndios, na pecuária, oficinas de costura e na construção civil), adoção ilegal, servidão doméstica e casamentos forçados.

Vera Vieira explica que o Brasil é considerado país de origem, destino e circulação de tráfico humano. Ao todo seriam 241 rotas nacionais e internacionais, sendo 35 apenas no sudeste. As dimensões continentais do Brasil, tendo fronteiras com 11 países, dificultariam a fiscalização e controle.

Dados são escassos

A dificuldade para se obter dados específicos sobre o tráfico de mulheres e meninas foi constatada ao longo da confecção desta matéria, ao se questionar diferentes órgãos públicos. O problema também foi apontado durante o painel realizado na cidade. Alguns dos motivos para isso, de acordo com os especialistas, seria o fato do crime se mesclar com outras atividades criminais, a subnotificação e a dificuldade da própria vítima se reconhecer como tal.

Pesquisa

Tráfico de mulheres: o pesadelo por trás de falsas promessas

Clara Charf participou do evento - Foto: Erick Pinheiro

A Associação Mulheres pela Paz coordenou uma pesquisa de opinião pública nacional por amostragem com o tema “Percepção da sociedade sobre o tráfico de mulheres”. O trabalho foi executado pelo Datafolha Instituto de Pesquisa com 1.585 pessoas em oito capitais. A coordenação da publicação é de Vera Vieira e da presidente da associação, Clara Charf -- ativista que marcou a história política do País.

De acordo com a pesquisa, 96% das pessoas entrevistadas acreditam que existe tráfico de mulheres no Brasil e 82% avaliam que isso ocorre em sua própria cidade, mas apenas 16% das pessoas declaram conhecer, mesmo que só de ouvir falar, vítimas de tráfico de mulheres.

Denúncia

O tráfico humano é crime tipificado na Lei Nº 13.344, de 2016, que dispõe sobre o tráfico de pessoas cometido no território nacional contra vítima brasileira ou estrangeira e no exterior contra vítima brasileira. O canal telefônico Ligue 180 pode ser utilizado para denunciar o crime. A Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência é um serviço de utilidade pública gratuito e confidencial, oferecido pela Secretaria Nacional de Políticas desde 2005.

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