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O direito de voltar a sorrir

30 de Novembro de 2019 às 06:30

O direito de voltar a sorrir

"Só fiquei com quatro dentes na frente, tinha muita vergonha disso", conta Ana Cláudia, que exibe hoje uma dentição resplandecente. É como "um sonho que mudou a minha vida", diz. Crédito da foto AFP

Desfigurada por muito tempo pelos golpes de seus companheiros, Ana Cláudia Rocha Ferreira não ousou mais sair. “Só fiquei com quatro dentes na frente, tinha muita vergonha disso”, conta. Ela é uma entre as milhões de mulheres vítimas da violência conjugal no Brasil.

Em quase todos os casos, os homens visam à boca e os dentes em seu desejo de destruir a feminilidade daquelas que ficam trancadas em suas casas, como Ana Cláudia.

Um fenômeno que se tornou tão comum que uma rede beneficente de dentistas decidiu reconstruir a dentição -- e a vida -- destas mulheres.

No consultório do dentista Armando Piva, membro de uma ONG que devolve o sorriso a mulheres carentes, a carioca Ana Cláudia exibe hoje uma dentição resplandescente e a boca realçada com batom vermelho. É como “um sonho que mudou a sua vida”, diz ela.

“Minha primeira agressão foi quando tinha 15 anos e estava grávida da minha filha mais velha”, conta a jovem negra, quatro vezes avó aos 39 anos, e funcionária de uma gráfica.

“Ele me deu socos. Eu me separei dele e depois conheci o pai da minha segunda filha, que também começou a me agredir. E os meus dentes foram caindo”.

Ana Cláudia mora em uma favela em São Cristóvão, na zona norte do Rio, e, “na comunidade, os homens dizem que gostam de bater em suas mulheres para que os outros caras não as queiram. Batem no rosto para deixar marcas”.

“Dos meus 18 anos até praticamente agora eu não sorria”, conta Ana Cláudia, que tinha a “autoestima lá embaixo, e vergonha o tempo todo”.

Ela não foi capaz de deixar o lar por falta de dinheiro, nem podia voltar para a casa de sua mãe, que a havia abandonado muito jovem após dar a ela o “exemplo”: “ela foi espancada toda a sua vida e não tinha mais um único dente”, lembra Ana Cláudia.

Um dia, a jovem entrou em contato por meio do Instagram com uma atriz de novela, que “admirava”: não lhe pediu dinheiro, mas ajuda, para ter um sorriso tão belo quanto o dela. A atriz a direcionou para o grupo de dentistas voluntários.

O tratamento durou quase um ano, na clínica ultramoderna do dr. Piva, na Barra da Tijuca, o oposto do triste cenário da favela onde Ana Cláudia vive.

Ele colocou implantes dentários, que devolveram a confiança a ela. Hoje, quando sorri, Ana Cláudia se diz “mais segura, não aceito mais agressão”.

Negras são as principais vítimas

O balanço da violência contra as mulheres no Brasil é triste: 16 milhões de mulheres brasileiras com 16 anos ou mais sofreram algum tipo de violência ao longo de 2018, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). As mulheres negras são as principais vítimas.

De modo geral, o País também aparece entre os mais violentos do mundo, com 57 mil homicídios no ano passado em um contexto de crise econômica, com 12 milhões de desempregados e grande precariedade para muitos, um terreno fértil para casos de violência contra a mulher.

“Vimos que o número de mulheres que sofrem de violência é gigantesco”, afirma Armando Piva, o jovem cirurgião-dentista que Ana Cláudia chama de seu “anjo”.

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Armando Piva devolve o sorriso a mulheres carentes. Crédito da foto: AFP

Foi em 2012, por ocasião do aniversário de 10 anos do projeto Turma do Bem, criado pelo dentista de São Paulo Fabio Bibancos, para adolescentes desfavorecidos, que a ONG fundou Apolônias do Bem, para também ajudar as mulheres. O programa foi batizado assim em homenagem à Apolônia de Alexandria, patrona dos dentistas e mártir cristã que teve os dentes arrancados. Desde então, foram tratadas mais de mil mulheres, conforme seu sócio, o dr. Piva.

Atualmente, uma rede de 1.700 dentistas no Brasil, em 12 outros países da América Latina e em Portugal, devolvem o sorriso a mulheres vítimas de violência e pobres. Com a condição de que não voltem a viver com seu agressor.

No Brasil, onde se pratica uma odontologia avançada, geralmente são cinco ou seis implantes colocados em cada mulher, num tratamento de cerca de R$ 30 mil, financiado por doações de indivíduos, empresas e pelos próprios dentistas. Sem qualquer subsídio público. “No Brasil, essas mulheres têm direito a um apoio psicológico e jurídico, mas não a um apoio odontológico”, revela o dr. Piva. “Na maioria dos casos, se não em 100%, a agressão física começa pela boca: são chutes, socos, paneladas, cotoveladas”, diz. “A vontade do agressor é tirar o sorriso das mulheres. E a gente vê que a maioria perdeu mais de 50% dos dentes da arcada superior”, afirma Piva.

Essas mutilações atrapalham inclusive o acesso ao mercado de trabalho. “Ninguém contrata uma doméstica sem os dentes da frente, ninguém contrata uma babá para ficar com seus filhos sem os dentes da frente. Nenhuma loja no shopping contrata uma vendedora sem os dentes”, explica o dentista, apontando que “existem entrevistas em que o pessoal do RH nem faz quando a pessoa chega sem dentes”.

Incapazes de trabalhar e de sorrir, essas mulheres encontram dificuldades para beijar ou até mesmo para se alimentar corretamente.

‘Foi incrível comer uma maçã’

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Thais de Azevedo recebeu implantes graças à abertura, há dois anos, do projeto às pessoas trans. Crédito da foto: AFP

“Você não tem ideia de como é viver sem dentes”, afirma Thais de Azevedo, entrevistada em São Paulo. “Quando recuperei os dentes, foi incrível comer uma maçã”, comentou a transexual negra de 68 anos, que recebeu implantes graças à abertura, há dois anos, da Apolônia às pessoas trans. “Sou vítima de violência desde que me afirmei como uma pessoa trans, abandonada pela minha família, pela sociedade e condenada à marginalidade”, disse ela.

No Brasil, a expectativa de vida das pessoas transexuais é de apenas 35 anos, duas vezes menor do que a média de 75 anos para a população brasileira em geral.

Thais se limita a dizer que perdeu os dentes “em sua luta pela vida”. Ela modelava os dentes com chiclete e se tornou “especialista”. “O que eles (dentistas) me trouxeram é muito mais profundo e grandioso do que eu poderia imaginar.”

Campanha mundial quer o fim da violência contra as mulheres

Uma em cada cinco mulheres, em todo o mundo, relataram violência física ou sexual por parte de seus companheiros nos últimos 12 meses, conforme o relatório “O progresso das mulheres no mundo 2019-2020: Famílias em um mundo em mudança”, divulgado pela ONU Mulheres. No Brasil, a cada quatro minutos, uma mulher é agredida e uma é morta a cada oito horas, de acordo com o Ministério da Saúde. Os números, que já são assustadores, não refletem todos os casos, afinal muitas mulheres que sofrem agressão deixam de registrar Boletim de Ocorrência e as mortes, nem todas são computadas nas estatísticas. Para acabar com a violência de gênero, 150 países estão em campanha desde segunda-feira passada, Dia Internacional de Não Violência Contra as Mulheres, até 10 de dezembro, quando é comemorado o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Sorocaba também participa, por meio de ações promovidas pelo Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (CMDM), da campanha “16 dias de ativismo pelo Fim da Violência Contra as Mulheres”.

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No Brasil, a cada quatro minutos, uma mulher é agredida e uma é morta a cada oito horas, de acordo com o Ministério da Saúde. Crédito da foto: Tumisu / Pixabay

Ao longo da semana já ocorreram algumas atividades. A próxima será na quinta-feira (5), quando acontece a roda de conversa “Violência contra a mulher e a rede de proteção”, a partir das 19h, na subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (avenida Três de Março, 495, Alto da Boa Vista).

No sábado (7), será realizada a 5.ª Conferência Intermunicipal da Região Metropolitana de Sorocaba de Políticas para as Mulheres, das 8h às 17h, no auditório do Senac (avenida Coronel Nogueira Padilha, 2.392, Vila Hortência).

A programação e o formulário de inscrição estão disponíveis no site cidadania.sorocaba.sp.gov.br. Organizada pelas Prefeituras de Sorocaba, Votorantim, Salto e Araçariguama e pelo CMDM, a conferência segue as diretrizes das etapas das Conferências Estadual e Nacional, estabelecidas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

No momento da inscrição para a Conferência, a participante poderá optar em atuar como observadora ou se candidatar à delegada das etapas Estadual e Nacional, além de optar por participar de um dos três eixos temáticos de trabalho: “Políticas públicas nacionais para as mulheres: debatendo acerca dos avanços e desafios e o papel do Estado na gestão das políticas para as mulheres”; “O sistema nacional de políticas para as mulheres: propostas de estrutura, inter-relações, instrumentos de gestão, recursos, política nacional de formação, estratégias de institucionalização, regulamentação e implementação do sistema”; e “Políticas públicas temáticas para as mulheres: avanços e desafios e enfrentamento às violências, saúde integral, trabalho, autonomia econômica, participação nos espaços de poder e decisão, educação para a igualdade e diversidade”.

Ao término dos debates, cada grupo apresentará suas propostas que, caso aprovadas por todas as participantes, integrará uma carta de propostas, que será encaminhada às Conferências Estadual e Nacional. Mais informações sobre a Conferência Intermunicipal podem ser obtidas pelo telefone (15) 3238-2236.

O encerramento da campanha acontece no dia 10 dezembro, às 19h, com a palestra “Os direitos das mulheres e os direitos humanos: instrumentos de combate à opressão”, na Faculdade de Direito de Sorocaba (rua Ursulina Lopes Torres, 123, Vergueiro). A programação conta com apoio da Secretaria da Cidadania e Participação Popular (Secid). (Da Redação, com informações da AFP)

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