Cultura
30 anos depois da queda
Foto tirada em 1989 mostra pessoas da Alemanha Oriental que cumprimentam cidadãos da Alemanha Ocidental no Portão de Brandenburgo, em Berlim. Crédito da foto: Arquivo AFP
Da euforia causada pela Queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, até as dificuldades econômicas que se seguiram, três alemães orientais contam como viveram e como tiveram suas vidas alteradas, passadas três décadas.
Thomas Wendt, 67, cresceu a algumas centenas de metros do Muro de Berlim, erguido quando ele tinha apenas 9 anos de idade. Durante os passeios em família, via seu pai “ficar com raiva” toda vez que encontravam “aquela construção intransitável”.
Na noite de 9 de novembro de 1989, foi direto para o posto fronteiriço mais próximo. “Foi uma loucura!”, lembra. Foi para o lado ocidental “apenas alguns minutos depois que os guardas da fronteira suspenderam a barreira”.
Do outro lado do muro, “caí nos braços de todos os que queriam me abraçar. Eram estranhos totais!”, conta emocionado. “Foi o momento mais importante da minha vida!”, conta este ex-jornalista de um jornal semanal na Alemanha Oriental, “não muito bem-visto” pelas autoridades.
À época, o Ocidente “era um mundo agradável e fácil, onde tudo brilhava”. Mas as complicações não demoraram a chegar. Acabou em desemprego, porque os jornais da Alemanha Oriental estavam fechando, um depois do outro e, no final, acabaram trabalhando para uma política socialdemocrata.
Hoje, aposentado, faz um balanço amargo do que aconteceu. “Três quartos dos alemães orientais perderam o emprego, ou tiveram que mudar” de profissão após a queda do Muro, algo que os alemães ocidentais “subestimaram” quando “nos disseram para parar de reclamar, não está tão ruim”.
A liberdade
Stefan Newie tinha apenas 7 anos quando o muro caiu, um evento que passou praticamente despercebido em sua casa. “Meus pais não assistiram à televisão naquela noite e perderam a Queda do Muro”, relata, sorrindo, esse editor de TV.
Ele soube do que tinha acontecido apenas no dia seguinte, na escola. “A turma estava meio vazia, e a professora perguntou: ‘Onde estão os alunos?’. Um dos meus colegas respondeu: ‘Todos foram para o Ocidente!’”.
Nesse mesmo dia, ele visitou Berlim Ocidental pela primeira vez com seus pais. Aquilo de que mais se lembra hoje são as cores da cidade. E também o que sentiu ao entrar em um supermercado cheio de coisas. “Lá dentro tinha um cheiro bom, de café que tinha acabado de ser moído. Nas lojas estatais da RDA, não estávamos acostumados a esse tipo de aroma”, comenta.
Depois disso, a família foi visitar os bisavós em uma residência ocidental. Mas, “quando meu pai bateu na porta, eles não o reconheceram. Para eles, era inconcebível que ele pudesse estar lá.”
Trinta anos depois, Stefan tira conclusões positivas da Queda do Muro. “A liberdade é o bem mais valioso. Posso dizer o que quero, viajar ao redor do mundo e estou feliz por não ter passado toda minha juventude em uma ditadura”, afirma ele.
“Não quero voltar atrás”
Helga Dreher,74, tinha cerca de 45 anos, quando o Muro de Berlim caiu. Aquele muro de concreto afetou significativamente sua vida privada por anos. Na década de 1970, essa professora teve uma filha com um francês, e a Cortina de Ferro estabeleceu contatos esporádicos e muito complicados.
Na noite de 9 de novembro, Helga acompanhou o anúncio da abertura das fronteiras ao vivo pela televisão. “Não acreditei, desliguei a TV”, lembra.
Não ficou totalmente ciente até o dia seguinte, quando o pai de sua filha ligou para ela e disse: “Você pode vir até Paris! O muro caiu!”
Helga continuou, porém, a suspeitar. “Estávamos imaginando se a RDA não fecharia as fronteiras depois de atravessarmos para o Ocidente”, explica.
Seu primeiro contato com o Ocidente, em 10 de novembro, não é uma boa lembrança. Os berlinenses ocidentais “nos jogaram bananas” como os macacos no zoológico. “Foi horrível. Voltei com minha filha para Berlim Oriental depois de meia hora”, completa.
Depois disso, as coisas melhoraram. Helga passou o final do ano em Paris, feliz por ver a filha com o pai. Além disso, conseguiu manter seu emprego após a reunificação. Nem todos tiveram essa sorte, sobretudo, as mulheres, acostumadas a trabalhar e desfrutar de um sistema de cuidado de crianças na Alemanha Oriental.
“No meu círculo de amigas, muitas perderam o emprego e poucas conseguiram seguir adiante depois disso”, lamenta. Mesmo assim, apesar dos problemas, “no nível pessoal, as mudanças são positivas.” “Não quero voltar atrás!”, afirma.
Barreira física dividiu famílias
Estudantes visitam um trecho de 700 metros do muro que foi preservado. Crédito da foto: Yacine Le Forestier / Arquivo AFP (3/11/2019)
Na Alemanha Oriental, os dirigentes comunistas decretaram em 1952 uma zona de proibição de 10 metros de largura ao longo da fronteira com a Alemanha Ocidental, com cercas de arame farpado e postos de vigilância.
Mas o dispositivo tinha uma falha: Berlim ficou dividida em duas partes -- uma sob controle soviético e outra ocidental -- entre as quais era possível circular sem grande dificuldade. Quase três milhões de pessoas encontraram refúgio na República Federal da Alemanha (RFA, Ocidental) através de Berlim Oeste entre 1952 e 1961, após a fuga da República Democrática de Alemanha (RDA, Oriental).
O regime alemão obteve a aprovação de Moscou para construir o Muro de Berlim em 1961, apresentado como uma “muralha antifascista”.
O muro, limitado ao leste por uma terra de ninguém, media 155 quilômetros (43 km dividiam Berlim em duas partes, de norte a sul, e 112 isolavam Berlim Ocidental do território da RDA). Era composto essencialmente de concreto armado e em algumas partes por cercas de metal.
Passagem arriscada
As estadias na parte Ocidental de cidadãos do leste europeu eram autorizadas sob condições rígidas. Os candidatos ao exílio corriam muitos riscos. Entre 600 e 700 pessoas, de acordo com os historiadores, morreram em tentativas de fuga do regime da Alemanha Oriental.
Apenas o Muro de Berlim provocou ao menos 136 mortes. Quase 5 mil pessoas conseguiram superar a barreira, em alguns casos usando estratégias criativas. Uma família escapou do telhado de um prédio, graças a uma tirolesa conectada a parentes que esperavam por eles do outro lado do muro. Outros fugiram a nado pelo Spree, o rio que atravessa Berlim, ou por túneis ou escondidos em veículos.
Em maio de 1989, a Hungria decidiu abrir sua fronteira com a Áustria, o que significou a primeira brecha na Cortina de Ferro. Em 19 de agosto, mais de 600 alemães do leste, de férias na Hungria, aproveitaram a abertura de um posto de fronteira com a Áustria por ocasião de um piquenique pan-europeu para fugir em direção ao Ocidente, o primeiro êxodo em massa do tipo desde 1961.
Os regimes comunistas do leste da Europa começaram a cair e a URSS, então governada por Mikhail Gorbachov, decidiu não intervir. A RDA registrou manifestações sem precedentes.
Em 9 de novembro, um alto funcionário do governo da Alemanha Oriental foi surpreendido ao ser questionado sobre a data de entrada em vigor dos novos direitos de circulação para os alemães do Leste. “Que eu saiba, imediatamente”, balbuciou diante da imprensa.
A resposta provocou o deslocamento de milhares de berlineses do Leste em direção aos postos de controle, onde os guardas, confusos, terminaram por levantar as barreiras. Durante a noite, os moradores da cidade, eufóricos, celebraram o acontecimento em cima do muro, que começou a ser destruído. Nos dois anos seguintes, a URSS entrou em colapso.
Arquivos da Stasi: quebra-cabeças
Após a queda do muro descobriu-se que a Stasi, polícia secreta da Alemanha Oriental, contava com milhares de informantes entre o povo. Crédito da foto: Arquivo AFP
Barbara Poenisch passa a maior parte do dia montando um quebra-cabeças. Ou melhor, recompondo a montanha de documentos da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, que foram destroçados durante a queda do Muro de Berlim.
A ex-encadernadora faz parte de uma equipe de dez pessoas que reconstroem minuciosamente os informes de vigilância, as cartas privadas e os documentos políticos que a Stasi acumulou e que tentou desesperadamente destruir quando o regime comunista da Alemanha Oriental foi derrubado, há 30 anos.
Quando o Muro de Berlim caiu, em 9 de novembro de 1989, a temida polícia secreta começou a triturar seus arquivos. E quando as máquinas quebraram, os membros da Stasi começaram a rasgá-los manualmente para depois transformá-los em pasta ou queimá-los.
Mas em 15 de janeiro de 1990, os “comitês de cidadãos” invadiram os escritórios da Stasi, inclusive a sede em Berlim Oriental, e confiscaram milhões de arquivos e cerca de 16.000 sacolas com documentos rasgados. Desde o começo da reconstrução manual dos documentos, em 1995, montou-se o conteúdo de 500 bolsas, o equivalente a mais de 1,5 milhão de páginas.
Trabalho de detetive
Três décadas depois, os segredos desses arquivos continuam sendo descobertos, graças a Poenisch e seus colegas. “Gosto de fazer quebra-cabeças e esta pesquisa é como se fosse um trabalho de detetive”, explica Poenisch, uma alemã oriental. “É gratificante poder juntar o que rasgaram há 30 anos, porque sei que um especialista em arquivos estudará este material e nos ajudará a enfrentar o passado”.
O ministério da Segurança do Estado, com sede em Berlim Oriental e conhecido como Stasi, foi uma das ferramentas de repressão estatal mais eficazes em seus quase 40 anos de existência.
Durante a Guerra Fria, empregou mais de 270.000 pessoas, incluindo muitos informantes entre a população, o que transformou a sociedade da Alemanha Oriental na mais vigiada do bloco oriental.
Quando o público pôde acessar os arquivos da Stasi, nos anos posteriores à reunificação alemã em 1990, milhares de espiões foram desmascarados. Muitas pessoas ficaram sabendo que amigos ou familiares eram “colaboradores não oficiais” da Stasi.
Entre os documentos pessoais que conseguiu recompor há uma carta de uma mãe que implora à Stasi que liberte seu filho. “Foi há alguns anos e me comoveu muito”, conta.
O que Poenisch descreve como sua “pequena contribuição ao confronto com o passado” é na realidade um trabalho hercúleo com um impacto na vida de milhares de pessoas.
Poenisch afirma que a chave de seu trabalho não é só a paciência, mas sobretudo sua “enorme responsabilidade”, explica enquanto junta e cola pedaços de papel. (Da Redação, com informações de Yannick Pasquet e Yacine Le Forestier - AFP)
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