Arte brasileira
100 anos de Clarice Lispector
Clarice nasceu na Ucrânia e veio para o Brasil aos 12 anos de idade. Crédito da foto: Divulgação
Amores, paixões, afetos... quem poderia, com exatidão, definir sentimentos com verbos, adjetivos ou substantivos? “Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras”, disse a narradora no livro Água Viva (1973), obra consagrada de Clarice Lispector. A autora, que nasceu na Ucrânia há 100 anos, e chegou ao Brasil com 12 anos. Clarice foi (e ainda é) tema de muitos estudos. “Algo marcante na obra da autora é como a linguagem que ela emprega diz e não diz. Como a linguagem falta e falha. Isso aparece em toda obra de Clarice Lispector. O grande tema dela é a palavra”, afirmou a professora de literatura Regina Pontieri, da Universidade de São Paulo (USP). Ela se dedica a pesquisar a autora há mais de três décadas. “A gente pode dizer que as grandes obras da literatura têm em comum a densidade. São obras com múltiplas camadas de sentido. Cada leitor vê de um jeito. Cada época revisita o autor e adequa às suas necessidades e à leitura de mundo feita naquele momento. A partir das expectativas dos leitores, é possível encontrar outras ressonâncias”, explica.
É considerada uma escritora intimista e psicológica, mas sua produção acaba por se envolver também em outros universos, sua obra é também social, filosófica e existencial. Em 1977 Clarice Lispector escreveu Hora da Estrela, sua última obra publicada em vida, onde conta a história de Macabea, uma moça do interior em busca de sobreviver na cidade grande. Clarice Lispector faleceu no Rio de Janeiro, no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário.
Regina Pontieri destaca que, após Clarice Lispector publicar “Perto do coração selvagem” (1943), primeiro trabalho dela, críticos ficaram surpresos com a escrita daquela autora até então desconhecida. Em janeiro de 1944, Sérgio Milliet escreveu que a obra era surpreendente, sóbria e penetrante. “Raramente tem o crítico a alegria da descoberta. Por desta feita fiz uma que me enche de satisfação”, escreveu o crítico à época.
Álvaro Lins estranhou a linguagem e a organização, mas ressaltou qualidades no trabalho. “Não tenho receio de afirmar, todavia que o livro da Sra. Clarice Lispector é a primeira experiência definida que se faz no Brasil do moderno romance lírico, do romance que se acha dentro da tradição de um Joyce ou de uma Virgínia Woolf”. Antonio Candido também viu semelhança com os autores estrangeiros e elogiou a novidade. “Em relação a ‘Perto do coração selvagem’, permanece o fato de que, dentro de nossa literatura, é uma performance da melhor qualidade. A autora -- ao que parece uma jovem estreante -- colocou seriamente o problema do estilo e da expressão”, publicou Candido em julho de 1944.
Os críticos explicavam que a técnica não determina a originalidade de uma obra. “Há alguns pontos de contato com James Joyce [escritor irlandês nascido em 1882 e falecido em 1941] e com Virgínia Woolf [britânica, que também viveu entre 1882 e 1941]. Mas bastou a crítica ter uma visão maior para perecer que Clarice não era uma versão brasileira desses autores. Inclusive, seria uma relação de subalternidade pensar assim”, argumenta Regina Pontieri. A fama de uma escritora hermética e difícil percorreu a carreira de Clarice. E, como toda escritora referência na literatura mundial, suas obras causam incômodo.
Estátua de bronze da escritora e seu cachorro, no Rio de Janeiro. Crédito da foto: Divulgação
“Ela é apaixonante e difícil. Algumas obras da Clarice são mais lidas. Há uma série de obras que colocam dificuldades para os leitores. Na minha pesquisa, me dediquei a uma das obras mais difíceis, A cidade sitiada (1949). É um tipo de dificuldade extremamente apaixonante. Acho que a Clarice causa realmente isso. É o oposto da indiferença”. O resultado desta pesquisa de Regina é o livro “Uma poética do olhar”.
A professora explica que o olhar empregado por Clarice não é o de sobrevoo, de um sujeito que vê o mundo de longe. “Clarice constrói um olhar demorado, agudo, insistente. Olhar tão fixo que ela come com os olhos. O que a Clarice faz é comer com os olhos. Ela olha com a boca. Assim ela opera a integração entre sujeito e objeto, entre corpo e espírito‘.
Estranhamento?
Uma característica na narração de Clarice é o de estranhamento diante de acontecimentos do mundo. “Os grandes escritores têm dificuldades de encontrar leitores em sua época. O que faz a originalidade é reconstruir de uma forma nova. As pessoas têm resistência com o que é novo. O estranhamento é o que faz uma obra. Ela está apresentando um novo modo de olhar o mundo. Alguns leitores vão ficar instigados. Outros não”. Isso explicaria, portanto, o fato de que, com o passar do tempo, algumas obras, que eram consideradas muito difíceis, passam a ter maior inteligibilidade.
Para Regina Pontieri, não existem bandeiras evidentes na obra de Clarice. “De fato, os temas femininos e as várias situações de mulheres, as dificuldades vividas se encontram muito presentes desde o primeiro romance. Ela encena situações que são da vida de mulheres, em alguns casos, que experimentam uma vida como cidadã de segunda categoria”. Para além do fato de tratar de temas femininos, a pesquisadora explica que há uma dimensão metafísica que aborda temas integradamente.
“Tempo de morangos”
As obras da autora despertam paixão especial, no entender de Regina Pontieri, porque trata de questões existenciais. “Ela envolve a escrita com paixão. Os leitores quase afundam na cadeira a tal ponto que ela cativa. O leitor se sente Clarice Lispector”. Para quem quer começar a esmiuçar a obra da autora, a sugestão é começar pelos contos, como em Laços de Família. “Clarice é eterna como todos os grandes escritores. Sempre nos desperta. Este é um momento que a gente deveria reler. Não só ficar na internet. A literatura nos desafia. Quando a gente se pergunta, é porque estamos vivos”. A autora desafia a viver, respirar, pensar, aproveitar cada instante. Ou, em outras palavras possíveis, o encerramento de “A hora da estrela” é um exemplo da lembrança para viver o dia, o tempo, a estação: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim”.
Historiador mergulhou na obra da autora
Benjamin Moser estudou e traduziu textos de Clarice. Crédito da foto: Divulgação
Clarice inspirou um historiador norte-americano a encontrar palavras para escrever sobre sua vida, movido por um sentimento imediato, da vastidão do que parecia indefinível. “Clarice é um amor de minha vida”, afirma Benjamin Moser, hoje com 44 anos, que vive em Paris (França), de onde conversou, por telefone, com a reportagem.
Ele explica que se deparou com a obra de Clarice quando ainda estava na faculdade, nos Estados Unidos, e aventurou-se em uma aula de português. Apaixonou-se pela obra “A hora da estrela”, que ele traduziria depois para The hour of star. “Não temos Macabéas apenas no Brasil. Elas estão em todos os lugares”. Foram cinco anos de investigação sobre a história da escritora e família, fugidos da guerra na Ucrânia, para publicar, em 2009, a biografia “Why this world - a biography of Clarice Lispector” (com o título em português “Clarice, uma biografia”).
Desde a publicação do livro, Moser foi premiado, divulgou a obra em toda a Europa e América do Norte, e constatou que a escritora era pouco conhecida fora do país em que viveu. Até mesmo no Brasil, avaliou que sua obra era mais apreciada por intelectuais. O amor avassalador pela personagem real que descobriu, de olhar e expressões enigmáticas, descortinou um desejo de levar Clarice pelo mundo, a tiracolo, na busca pela justiça do dizer sobre a autora, que morreu em 1977. “O Brasil deve ter muito orgulho de ter uma escritora como ela. Autoras como ela não há no mundo inteiro”.
De Clarice, Benjamin Moser já traduziu oito obras, coletânea de contos e até livros infantis. No final de novembro, publicou os textos da autora voltados para as crianças em holandês. Outra empreitada de Moser foi contar a história da escritora e pesquisadora Susan Sontag. O trabalho lhe rendeu o cobiçado prêmio norte-americano Pulitzer neste ano de 2020, na categoria de biografia. (Luiz Claudio Ferreira - Agência Brasil)
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