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Filmes da Netflix: ‘A livraria’

12 de Junho de 2020 às 00:01

A menina Christine e Florence: vítimas impotentes de uma sociedade hipócrita. Crédito da foto: Divulgação

A livraria foi dirigido pela catalã Isabel Coixet em 2017 e se baseia na novela de mesmo nome da escritora inglesa Penelope Fitzgerald.

Florence Green, viúva de um militar da Segunda Guerra Mundial, compra uma velha casa abandonada a fim de abrir a primeira livraria em Hardborough, pequena cidade da Inglaterra. Contudo, Violet Gamart, uma mulher influente, quer transformar a casa em um centro de artes e, para tanto, lança mão dos métodos mais diversos para destruir a livraria e Florence. Consegue seu intento e a viúva deixa a cidade.

Das várias questões que o filme suscita, penso que a mais interessante seja: por que Violet que se lança ferozmente, sem qualquer escrúpulo, na tarefa de destruir a simples e inofensiva Florence?

Uma razão diz respeito à personalidade dominadora de Violet. Arma um conflito movimentando paixões pessoais de orgulho, inveja, ira, desproporcionais à relevância do fato que as suscita. Arrasta consigo um grupo de seguidores, dentre eles o apalermado marido general e o conquistador amaneirado Milo North. Agrega, além da elite local, também a esmagadora maioria da população, independente de classe social. Ela é a líder com quem quase todos se alinham.

O grupo manifesta sua agressividade contida como propensão, como Freud tão bem descreveu em Psicologia de grupo e análise do ego, contra uma “estrangeira” corajosa. Do lado de Florence ficam o eremita Edmund Brundish e a menina Christine. Florence acaba por ser arrasada pela trama de Violet, porque desconhece a regra de vida que divide os seres humanos em exterminados e exterminadores, como diz Christine -- narradora do filme e a mais inteligente das personagens, porque rotula com precisão os habitantes do local.

O que parece perturbar Violet é o fato de ser contrariada por uma jovem viúva que se veste de vermelho como empregada em dia de folga, como diz o repugnante North. Essa estratificação social tem origem na própria história do grande Império Britânico, cujo poder foi esfacelado ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando o Reino Unido, combalido e endividado, perdeu a maior parte de suas colônias. Violet, em 1959 em que o filme transcorre, nutre “nostalgia imperial” nos seus modos aristocráticos e artificiais e sua repulsa aos “plebeus”.

Penso que outra razão da fúria de Violet é a do medo dos livros. No filme, vemos referências explícitas a obras do escritor norte-americano Ray Bradbury (a pequena Christine despede-se de Florence tendo à mão um livro de sua autoria). Dentre suas obras, está “Fahrenheit 451”, de 1953. Esta ficção científica, convertida para o cinema por François Truffaut em 1966, mostra uma sociedade em que os livros supostamente trazem infelicidade e devem ser incinerados.

Políticos de tendência totalitária odeiam e temem e, por isso, querem o controle da Arte de modo geral, de livros e educação de Ciências Humanas. Violet quer criar um centro de artes elitizado, com “música de câmara no verão, palestras no inverno”, obviamente censuradas por ela.

Belíssimas e impassíveis paisagens se alternam às paixões humanas em jogo, das mais elevadas às mais sórdidas

Na próxima semana escreverei sobre “12 anos de escravidão”.

https://youtu.be/sIw0hh_RJZs