Educação
Educar com Alma: histórias de quem ousa sonhar a escola
Professores da RMS buscam alternativas para reinventar a sala de aula
Quando Fabiana Cristina Rufino de Mello, de 47 anos, levanta as mãos para reger, trinta e quatro vozes se calam. Não é medo é espera! O que vem a seguir não está no currículo de história ou geografia: é ‘Cálix Bento‘, um samba que ensina mais sobre Brasil do que qualquer livro didático. Na sala ao lado, cartas de filósofos se espalham sobre a mesa enquanto adolescentes debatem se Nietzsche derrotaria Kant em uma discussão sobre moral.
Três escolas, três professores, uma mesma convicção: a sala de aula tradicional morreu. E eles estão inventando o que vem depois. Todos são docentes de escolas públicas, dois em instituições estaduais e um em uma escola municipal.
As telas, companheiras onipresentes do cotidiano atual, também transformaram a forma como os jovens se relacionam com o conhecimento. Segundo pesquisa do Instituto Pró-livro e do Ministério da Cultura, em 2024, pela primeira vez desde que a pesquisa é feita, o número de não leitores superou o de leitores, sendo 53% da população brasileira não leitora, segundo a estimativa.
Na escola, esse desequilíbrio se reflete em dificuldades de concentração, interpretação e até na disposição para o diálogo. Diante disso, os educadores se veem diante de um novo desafio: disputar atenção em um mundo que vibra, notifica e distrai o tempo todo.
As salas de aula tradicionais nem sempre funcionam: faltam interesse, atenção e repertório. Alguns professores da Região Metropolitana de Sorocaba (RMS) decidiram enfrentar os desafios do novo tempo com novas ferramentas. Independente da estratégia escolhida, o objetivo é sempre o mesmo: oportunizar, desanuviar o futuro e tornar o aprendizado interessante e significativo.
É assim que a educação funciona quando ninguém está olhando, feita de pequenas teimosias, de professores que pagam impressões do próprio bolso, de diretores que convencem pais desconfiados, de alunos que descobrem que filosofia não é coisa de gente morta quando Nietzsche vira personagem de um jogo. Nas três escolas da RMS, a revolução na educação não veio de cima. Veio das mãos sujas de chocolate.
Cada educador encontrou seu próprio caminho para despertar a curiosidade dos alunos. Para alguns, a música é a ponte que conecta história e emoção; para outros, jogos e tecnologias transformam conceitos complexos em experiências vivas; e há ainda os que repensam espaços e metodologias, mostrando que a escola pode ser também um lugar de criação.
O que une essas técnicas é a intenção de atravessar os muros da escola. Mais do que transmitir conteúdo, esses professores buscam despertar interesse, confiança e pertencimento. Suas salas se tornam laboratórios de vida, onde aprender é também se descobrir e se relacionar com o mundo de forma plena.
Para cantar o meu caminho
Trinta e quatro vozes se dividem em três grupos na sala de aula da Escola Estadual Mirinha Tonello, na cidade de Salto. Quando a professora Fabiana, levanta as mãos para reger, o que se ouve não é apenas música: é um Brasil que se conta pelo som. Entre ritmos e melodias, nascem vínculos, memórias e formas de compreender o mundo. Esse foi o modo que a professora de história e geografia encontrou para se aproximar dos seus alunos.
Fabiana escolheu a carreira tarde, após uma transição; apenas em 2017 ela começou sua trajetória nas salas de aula. Logo percebeu que as crianças tinham dificuldade para se interessar pelos conteúdos de geografia e história. Conteúdos que, por definição, são densos e, muitas vezes, de difícil contextualização.
Sua ligação com a música vinha de berço. Intérprete em escola de samba há mais de 20 anos, ela percebeu que muitas músicas podiam ajudar a explicar momentos históricos, especialmente brasileiros. Até que, em 2023, passou a oferecer a eletiva de Coral para alunos de 13 a 15 anos que estavam em escolas integrais.
Os resultados não demoraram para aparecer. Os alunos, mesmo os mais indisciplinados, passaram a se acalmar e encontrar no canto uma forma de regulação emocional. Os mais tímidos começaram a se soltar e se relacionar melhor. Uma de suas alunas teve bons resultados até na luta contra crises de ansiedade, que eram constantes e graves. Após o coral, as crises foram estabilizadas.
Por ser uma docente da categoria “O”, Fabiana convive com transferências de escolas recorrentes. Desde 2023, passou por uma escola a cada ano. Atualmente, na Escola Estadual Mirinha Tonello, são 34 os alunos que participam do coral. Ao todo, desde que Fabiana começou com essas aulas, já foram mais de 100 alunos beneficiados.
No coral, a professora separa as vozes em três grupos: os meninos costumam ocupar um espaço para vozes mais graves, e as meninas são divididas entre contraltos (voz feminina mais grave) e sopranos (voz feminina mais aguda). O repertório, quase sempre, se debruça sobre a Música Popular Brasileira; músicas como “Cálix Bento” e “Estrada e o Violeiro” já foram apresentadas, por exemplo.
Este ano, ela conseguiu implementar um novo projeto: a fanfarra. São cerca de 60 alunos que participam atualmente da banda. A fanfarra conta com o apoio da Escola de Samba Mocidade Independente de Salto, que cede os instrumentos para os alunos, e o presidente da agremiação, Marcelo Mello, é o instrutor das crianças.
Fabiana afirma que a música oferece repertório, não apenas social, como histórico também. “Aluno só na sala não é o caminho; a música e a arte precisam estar na escola; falta liberdade para o aluno ser!”. Segundo a professora, é necessário oferecer espaço e oportunidades, deixar que cada um encontre seu lugar no mundo e desenvolva suas potencialidades.
Além do desenvolvimento dos alunos, as iniciativas do coral e da fanfarra também aproximaram a comunidade da escola. Para comprar roupas para as apresentações, os alunos conseguiram vender mais de 2.000 brigadeiros. A próxima apresentação do grupo será no dia 28 de novembro, na Parada de Natal.
Entre sambas e fanfarras, Fabiana encontra no repertório do coral o retrato de um Brasil que educa pelo som, um país de fé e festa. Nas vozes dos alunos, as músicas se transformam em lições vivas de história e sensibilidade. Entre versos e melodias, a professora e seus alunos seguem aprendendo a cantar e a construir o próprio caminho.
Educar a mente sem educar o coração não é educação
Se fosse possível colocar filósofos das mais variadas linhas de pensamento e dos mais variados tempos para conviver e interagir em uma grande biblioteca, quais seriam os debates que surgiriam?
Essa é a premissa do jogo “Mentis”, criado pelo professor Ricardo Cirino Vaz, de 44 anos, para as aulas do Ensino Médio da Escola Estadual Professor Jefferson Soares de Souza. Ele propôs o jogo como forma de criar mais proximidade entre os alunos do primeiro e do terceiro ano do ensino médio e os filósofos, suas ideias e livros.
Ricardo afirma que o jogo tem a intenção de aumentar o repertório dos alunos e oferecer contato inicial com os filósofos, para aprender seus nomes, características e ideias básicas.
Antes de ser professor, Ricardo, que é natural de Cerquilho, foi padre por quase uma década, entre os anos de 2009 e 2018, na cidade de Sorocaba. Depois de se formar em teologia, com reconhecimento pontifício de Roma, e filosofia pela Universidade de Sorocaba (Uniso), sobre seu período no sacerdócio, ele afirma ter sido muito feliz, mas encontrou dentro de si um desejo que nunca se apagou: o de ter uma família.
Professor há cinco anos, ele encontrou no “Mentis” uma forma de criar vínculo com seus alunos. Ele afirma estar muito feliz com a boa repercussão do jogo; alguns alunos chegam a pedir para jogar durante intervalos e momentos de pausas nas aulas.
Agora está produzindo um livro ilustrado que explica melhor cada parte do jogo e pretende criar uma versão digital do Mentis, além de desenvolver outros jogos parecidos, de outras disciplinas, como, por exemplo, sociologia.
O jogo Mentis foi desenvolvido ao longo de aproximadamente seis meses e conta com cerca de 100 cartas, divididas em cinco categorias: filósofos, livros, citações, símbolos e eventos, além de três ciclos de tabuleiro nos quais ocorrem os debates.
A cada partida (participação de duas a seis pessoas), os alunos constroem suas “bibliotecas filosóficas” e disputam não com sorte, mas com argumentação: vence quem conseguir manter mais filósofos em sua biblioteca.
O jogo, que pode ser comparado com um Role-Playing Game (RPG), um tipo de jogo que propõe aos participantes a interpretação de papéis, propõe a ideia de que os filósofos, já tendo suas características básicas, podem ficar ainda mais fortes utilizando livros, citações, símbolos e podendo passar por eventos.
A dinâmica permite combinações especiais entre os filósofos também, aqueles que, de alguma forma, interagiram na vida real. Como a “trindade clássica”, que pede a combinação de Sócrates, Platão e Aristóteles. O jogo foi impresso com recursos do próprio professor, que planeja fazer mais algumas unidades para permitir que mais alunos joguem ao mesmo tempo.
Na música de Fabiana e no jogo de Ricardo pulsa uma mesma intenção: tornar o aprendizado uma experiência viva. Enquanto ela transforma a sala em coral e ensina história pelo ritmo do samba, ele faz da filosofia um tabuleiro de debates, onde ideias ganham corpo e movimento. Ambos desafiam o modelo tradicional, mostrando que o conhecimento não nasce apenas do quadro e do caderno, mas do envolvimento, da emoção e da troca. Ambos mostram o poder da comunidade.
Essas experiências, que misturam arte, jogo e educação, compõem um retrato de professores que reinventam a escola a partir do que têm: voz, imaginação e desejo de ver seus alunos florescerem. Em comum, carregam o gesto de ensinar com o coração. E, talvez, essa seja a grande lição: a de uma escola que aprende com seus mestres a ser, também ela, um espaço de criação, afeto e descoberta.
Loucura ou Sonho?
É com a frase de Monteiro Lobato que Alex Sandro Lucas dos Santos resume sua atuação enquanto diretor e professor: “Loucura? Sonho? Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira, mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.” Desde 2021, ele é o diretor da Escola Municipal Duljara Fernandes de Oliveira e, nesse período, tem ousado sonhar e conseguido realizar boa parte.
Nascido na cidade de Jacarezinho, no Paraná, ele afirma ter sido uma criança cuja realidade foi transformada pela educação. Por bons professores. E, por isso, decidiu fazer a diferença na vida de outras pessoas, escolheu a carreira de professor. Com mais de 15 anos de experiência em sala de aula, percebeu que a forma antiga de se educar, com carteiras enfileiradas e conteúdos densos, não gerava conexão com os alunos. Por isso resolveu aplicar novas metodologias de ensino, como a metodologia ativa e a pedagogia por projetos, na qual os professores analisam os interesses de cada turma e aplicam projetos que abarcam todas as disciplinas. A escola também tem um grande projeto para todas as turmas.
Alex afirma que é necessário repensar os espaços da escola e criar ambientes que acolham e instiguem os alunos. Na escola Duljara há a sala Criarte, por exemplo, na qual existem armários com materiais de artesanato, microscópios, lousa digital, entre outros. Algumas fantasias e até cortinas para salas já foram feitas no local.
Há também a sala maker, a primeira de Sorocaba, que possui kits de robótica, impressora 3D e máquinas de corte a laser, tudo para oferecer aos alunos a oportunidade de ter contato com diferentes experiências. Há ainda sala de leitura, de cinema, e o espaço metaverso, no qual os alunos têm experiências com um jogo de matemática que complementa o ensino em sala de aula.
Mas a ação de Alex está muito acima das oportunidades tecnológicas e experienciais. Alex reafirma o antigo ditado africano: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”; ele ensina o valor da comunidade para construir uma escola. A aproximação com os pais e a explicação para estes sobre a metodologia utilizada é fundamental para que o trabalho dê certo. Entre 2022 e 2023, a escola promoveu a “Escola de Pais”, que oferecia palestras e outros conteúdos para que pais aprendessem a “ser pais”.
A cada ano, Alex e sua equipe escolhem um nome para o período. Em 2022 foi “Sonhos”: crianças, funcionários, pais, comunidade e professores foram convidados a colocar em uma grande árvore seus sonhos, mas não para suas vidas pessoais, e sim para o futuro da escola. Em 2023, foi o ano do “Protagonismo”; 2024 veio a “Empatia”; e este ano: “Educação para o futuro”.
Nem só de alunos vive uma escola. Alex também presta atenção em seus colegas, os professores. Há uma preocupação em entender as virtudes de cada um e usar isso a favor do ensino.
Além de diretor, Alex também é professor da Faculdade de Tecnologia de Sorocaba (Fatec), e mesmo no ambiente da educação superior também trabalha com metodologias ativas e com projetos. Ele propõe para seus alunos experiências que estimulem a comunicação, como a gravação de podcasts e até de juris simulados.
Alex, com os olhos brilhando, declara: “Eu tenho o privilégio de trabalhar com o que eu acredito”. E com isso se dedica a tornar não apenas as aulas melhores, mas criar uma base cultural para seus alunos. Para o futuro, ele pretende adicionar aulas de inglês e de ciências na escola, além de trocar o mobiliário escolar e, por fim, de uma vez por todas, as carteiras em fila nas salas de aula, tornando o mundo de seus alunos redondo.
Reverberação
Fabiana, Ricardo e Alex compartilham mais do que território geográfico ou desafios semelhantes. Compartilham a coragem de não aceitar que a educação seja apenas repetição, controle ou transmissão fria de conteúdos. Cada um, à sua maneira, compreendeu que educar é um ato de generosidade: exige doar-se, reinventar-se e acreditar que cada aluno traz consigo um mundo inteiro esperando para ser descoberto.
Suas trajetórias revelam que a transformação da escola não depende apenas de grandes reformas ou investimentos vultosos. Ela nasce do gesto cotidiano de quem enxerga além do currículo: a professora que rege um coral onde vozes tímidas encontram força; o professor que transforma filósofos em personagens vivos de um jogo; o diretor que substitui filas de carteiras por círculos de diálogo e troca a lousa por laboratórios de experimentação.
Mais do que métodos, o que essas histórias ensinam é sobre presença. Presença afetiva, intelectual e criativa. Elas nos lembram que a escola é, antes de tudo, um lugar de encontro entre gerações, saberes, sonhos e possibilidades. E que, quando professores se permitem sonhar junto com seus alunos, a educação deixa de ser um peso para se tornar asas.
A loucura de Monteiro Lobato, citada por Alex, talvez seja a mesma que move Fabiana e Ricardo: a loucura de acreditar. Acreditar que uma canção pode curar a ansiedade, que um jogo pode despertar a filosofia, que uma escola pode ser um lugar onde crianças não apenas aprendem, mas que se tornem quem podem ser. Que os vizinhos deixam de ser observadores e se tornam comunidade. Porque é dessa loucura que nascem as transformações reais, aquelas que não mudam apenas notas, mas mudam vidas.
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