Saúde
Setembro Verde: mais de 80 mil vidas à espera de um transplante no Brasil
Iniciativa nacional, celebrada no dia 27 deste mês, chama atenção para a urgência da doação de órgãos
Setembro Verde é o mês da esperança. É quando a vida e a solidariedade ganham destaque, e a mensagem é clara em vários lugares: doar é um ato de amor. No Brasil, mais de 80 mil pessoas aguardam na lista por um transplante — de órgãos e córneas, segundo dados recentes do Ministério da Saúde (MS). Cada decisão de uma família, portanto, vai muito além de um gesto de generosidade: pode representar um verdadeiro recomeço para quem recebe o órgão ou o tecido.
É o que aconteceu com Claudia Aparecida Oliveira Cortez. Em julho de 2024, a tão sonhada ligação, depois de alguns meses de ter recebido a notícia de que seria necessário um transplante de fígado ao ser diagnosticada com cirrose hepática, veio acompanhada de lágrimas, medo, mas também de alívio por saber que as dificuldades do dia a dia chegariam ao fim. “Não tenho mais limitações. É outra vida. E eu agradeço todos os dias à família que disse ‘sim’, porque ela me devolveu a chance de viver”, reflete a enfermeira de 55 anos.
Mas, infelizmente, nem todos puderam experimentar a mesma sensação da profissional da saúde. Dos mais de 80 mil pacientes à espera de um transplante, 43 mil aguardam por um rim. O órgão, do subgrupo chamado de sólidos, é o primeiro da lista do MS, tanto para espera quanto para procedimentos realizados de janeiro a setembro deste ano.
“A doença renal crônica é muito comum e, geralmente, esses pacientes são mantidos nos centros de hemodiálise e acabam tendo essa possibilidade ou condição de chegar até uma lista de transplante”, explica Renato Hidalgo, médico cirurgião e referência em cirurgia de fígado, pâncreas e transplantes de órgãos abdominais do Hospital Unimed Sorocaba.
O fígado é o segundo órgão que mais recebe solicitações e transplantes de sólidos. Conforme o especialista, o fígado tem uma característica particular que facilita a doação: pode ser utilizado mesmo por doadores idosos, ao contrário do coração ou dos pulmões, que muitas vezes não têm condições adequadas para transplante em faixas etárias mais avançadas.
No subgrupo dos sólidos, além do fígado e do rim, estão o pâncreas, o coração, os pulmões e o intestino. Por sua vez, os que fazem parte da classificação de tecidos são: córnea, medula óssea, pele e ossos.
Tanto o rim quanto o fígado estão entre os poucos órgãos que podem ser doados em vida, ainda sob autorização direta do paciente. Os demais dependem da decisão da família do ente querido, tornando ainda mais importante falar sobre o tema. Por isso, no dia 27 de setembro (amanhã), é celebrado o Dia Nacional da Doação de Órgãos. Em 2024, um levantamento do governo federal apontou que 45% das solicitações de doações de órgãos foram recusadas.
“A doação de órgãos é a única forma de você deixar seu legado aqui na Terra. É renascer em outra pessoa. Por isso, é fundamental que as pessoas conversem com familiares e amigos. Esse é o único jeito de aumentarmos o número de doadores e salvarmos mais vidas”, explica Renato Hidalgo, que complementa: “Não há documento legal que substitua a autorização deles no momento da sua morte”. Contudo, uma plataforma digital prevê auxiliar nesse processo. A autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (Aedo) é uma maneira de deixar registrado em cartório o desejo de ser doador e, no momento oportuno, o documento pode ser consultado.
“Só quem está na fila percebe a importância de as famílias se conscientizarem da doação e não só de órgãos, mas também de sangue. Você está salvando a vida de alguém que nem conhece, mas o receptor é extremamente grato e, independentemente de onde ela (a doadora) estiver, vai receber nosso amor. É amar de maneira incondicional o desconhecido”, comenta Claudia.
Como enfermeira e também transplantada, a profissional de 55 anos ainda ressalta que, sem doadores, os cirurgiões não podem atuar e que, em consequência, muitas pessoas continuam sofrendo e precisando desesperadamente de um transplante. Consciente da dificuldade enfrentada por muitos, Claudia tem apenas um desejo: “Para todos que estão na fila, que seu dia chegue logo e tenho certeza de que vai dar tudo certo. Como deu para mim, vai dar para vocês também.”
Como funciona
Segundo o cirurgião, o transplante é indicado quando um órgão deixa de funcionar de forma adequada, colocando a vida do paciente em risco. “Nós retiramos um órgão que não funciona mais e colocamos outro que vem com o funcionamento normalizado”, detalha. Isso pode ser feito a partir de órgãos de doadores falecidos ou, em casos específicos, de doadores vivos.
A doação, conforme Hidalgo, ocorre quando alguém apresenta morte encefálica — o cérebro para de funcionar devido a um AVC, tumor cerebral, acidente grave etc. — enquanto os outros órgãos são mantidos por aparelhos. Com a confirmação da morte encefálica, após exames e protocolos exigidos pelas leis vigentes, a família é informada sobre a possibilidade de doar os órgãos.
Em caso de consentimento, exames são realizados em seguida para identificar o tipo sanguíneo e avaliar a viabilidade dos órgãos. Em seguida, é feita a retirada dos órgãos. Uma dúvida de muitos é como o corpo é devolvido para a família e se há possibilidade da realização de um velório. A resposta é sim. O cirurgião conta que o corpo é devolvido integralmente, sem nenhum sinal visível da doação.
Agilidade
Cada órgão tem um tempo máximo em que consegue continuar funcionando fora do corpo humano. Os que resistem menos são o coração e os pulmões, que permanecem viáveis de 4 a 6 horas. Por isso, durante um transplante, as equipes de saúde são mobilizadas imediatamente, em regime de urgência. Outros órgãos também são acionados para agilizar o procedimento. Quando o doador e o receptor estão distantes, helicópteros da Força Aérea Brasileira (FAB) e o Águia, da Polícia Militar, podem ser utilizados para transportar os órgãos com rapidez.
Depois do coração e dos pulmões, vem o intestino, que mantém suas funções de 6 a 8 horas. Em seguida, o fígado e o pâncreas, que duram entre 12 e 24 horas. Por fim, o rim é o órgão que pode continuar funcionando até dois dias após a retirada, permitindo mais tempo para o transplante.
Lista e critérios de prioridade
Um dos temas que mais gera dúvidas na população é como funciona a lista de transplantes. Hidalgo explica que cada tipo de órgão tem critérios específicos. “No caso do rim, o principal critério é o tempo de espera. Já no fígado e no coração, por exemplo, o que conta é a gravidade da doença. Se o paciente entrou hoje na fila, mas está muito grave, ele passa à frente de outros menos graves. O objetivo é sempre salvar quem tem menos tempo de vida”, detalha.
O médico também lembra que existem situações de prioridade especial. “Quando um paciente já passou por um transplante e teve falência de outro órgão como consequência, ele é priorizado na lista. É uma forma de justiça: aumentar as chances de salvar quem está em maior risco.”
Segundo Hidalgo, todo esse cuidado visa não apenas salvar vidas, mas também promover justiça, garantindo que quem mais precisa receba o tratamento no momento certo.
Mitos
Além de esclarecer o mito de que não é possível haver velório após a retirada de órgãos ou tecidos, o cirurgião lembra que não há idade mínima ou máxima para doar, nem restrição de sexo. Homens e mulheres podem ser doadores, e a visibilidade dos órgãos é sempre avaliada individualmente pela equipe médica.
Ele também explica que ter doenças preexistentes não impede, necessariamente, a doação de todos os órgãos. “Às vezes o paciente é doente de alguma coisa, por exemplo, ele tinha hipertensão arterial. Talvez ele não possa ser doador de coração, mas ele pode ser doador de fígado, talvez de rim, de pâncreas, de pulmão. Ele é um paciente muitas vezes diabético e já tem um rim que não funciona tão bem, mas o fígado pode ser doado, muitas vezes o pulmão, portanto não existe limitação por doença. Volto a dizer: o importante é doar.”
Números
A lista de espera por transplantes é gerenciada pelo Ministério da Saúde e é única, sendo válida tanto para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto para os da rede privada. No sistema disponibilizado para consulta pública, que considera dados de janeiro a setembro de 2025, são 47 mil pessoas aguardando transplantes: rim (43.834), fígado (2.300), coração (450), pâncreas e rim juntos (390), pulmão (236), somente pâncreas (31) e multivisceral (7), que permite a substituição simultânea de até cinco órgãos de um mesmo doador. Destes, a maioria é do sexo masculino, com mais de 27,7 mil pacientes no aguardo. Fazendo um recorte estadual, o Estado de São Paulo lidera com 22.613 solicitações, seguido por Minas Gerais, Paraná, Bahia e Rio de Janeiro.
No transplante de tecidos, a córnea lidera a espera, com 33 mil pessoas na lista. Nesse tipo de procedimento, as mulheres são maioria: 18.513. A faixa etária predominante é a de idosos com 65 anos ou mais. O Estado de São Paulo novamente fica à frente, com 6.862 pessoas na lista.
Já em relação ao número de transplantes de órgãos realizados, foram 7.064 procedimentos neste ano. Os de córnea, por sua vez, ultrapassam os 12,6 mil.
Sintomas foram sinais de alerta
Os primeiros sintomas foram discretos, mas persistentes: cansaço extremo, inchaço e episódios frequentes de vômito. Foi esse conjunto de sinais que acendeu o alerta na vida da enfermeira Claudia Aparecida Oliveira Cortez. Acostumada a uma rotina ativa e intensa, ela percebeu que algo não estava bem quando passou a não ter forças sequer para sair de casa. “Eu era muito ativa. De repente, só queria ficar sentada, sem ânimo para nada”, relembra.
A confirmação veio após uma série de exames: cirrose hepática, com indicação imediata para transplante de fígado. O diagnóstico foi um choque. “Eu saí do consultório chorando. Não é uma notícia para a qual você está preparada”, conta Cláudia. A partir dali, sua vida passou a ser marcada por procedimentos médicos, internações e uma espera angustiante por um órgão compatível.
Durante os meses na fila, a enfermeira enfrentou várias intercorrências, como acúmulo de líquidos no corpo e crises frequentes de fraqueza. Por vergonha do preconceito associado à doença, preferiu guardar o diagnóstico para si. “Quem ouve que alguém tem cirrose logo pensa em álcool, e esse não foi o meu caso”, afirma. A espera pelo transplante exigia vigilância constante: a mala estava sempre pronta, e a orientação médica era ficar próxima ao hospital.
O chamado para a cirurgia veio quando Claudia já estava bastante debilitada, apresentando inclusive encefalopatia hepática, uma complicação grave que afeta o cérebro. Apesar do medo, ela confiou na equipe médica e se entregou ao processo. A cirurgia foi bem-sucedida, mas a recuperação exigiu dedicação, com sessões de fisioterapia para recuperar a força muscular e respiratória. “É um processo lento, mas vale a pena. Depois disso é só melhora.” (T.M.)
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