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CELULAR ONIPRESENTE

Tela em excesso ameaça desenvolvimento infantil

Uso de aparelhos conectados à internet por crianças é cada vez mais comum e causa exposição a riscos

23 de Agosto de 2025 às 21:05
Cruzeiro do Sul [email protected]
Solução para o dia a dia pode 
ter consequência futura
Solução para o dia a dia pode ter consequência futura (Crédito: DIVULGAÇÃO)

É cada vez mais comum: enquanto preparam o almoço, respondem e-mails ou enfrentam uma reunião remota, pais e mães entregam o celular ou o tablet nas mãos dos filhos pequenos. Em poucos segundos, o silêncio reina. A criança se hipnotiza com as luzes e os sons das telas, e os adultos ganham um raro momento de paz. Mas o que parece uma solução prática para o cotidiano corrido esconde riscos profundos para o desenvolvimento infantil.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) tem sido clara e enfática: crianças com menos de dois anos não devem ter contato com telas, e entre dois e cinco anos, esse uso deve ser extremamente limitado, com mediação ativa e supervisão constante. Essas recomendações estão longe de ser alarmismo. Elas refletem uma série de evidências científicas que mostram que a exposição precoce e excessiva às telas digitais pode prejudicar o desenvolvimento cognitivo, motor e socioemocional das crianças, com impactos que podem se estender por toda a vida.

Pesquisas nacionais e internacionais apontam que o uso prolongado de celulares, tablets e TVs está associado a uma série de prejuízos no desenvolvimento infantil. Um dos primeiros sinais costuma ser o atraso na fala. A comunicação infantil depende de interação real, troca de olhares, escuta ativa e respostas afetivas, processos que são reduzidos ou completamente ausentes nas interações com telas. A criança ouve, mas não é ouvida. Observa, mas não é observada.

Além da linguagem, surgem também problemas de atenção, dificuldades cognitivas e desafios comportamentais. Estímulos rápidos e constantes oferecidos por vídeos e jogos afetam a capacidade da criança de sustentar o foco em situações mais lentas, como ouvir uma história ou realizar uma atividade escolar. A consequência é um aumento na impulsividade e dificuldade de concentração.

Outro ponto crítico é o sono. A luz azul emitida pelas telas inibe a produção de melatonina, o hormônio responsável por regular o ciclo do sono, dificultando que a criança adormeça e afetando a qualidade do descanso. A privação de sono, por sua vez, impacta diretamente o humor, a memória e o aprendizado.

Do ponto de vista emocional, a exposição constante a telas pode afetar a regulação emocional. Muitas crianças perdem a habilidade de lidar com frustrações, se irritam com facilidade ou se mostram agressivas quando têm o aparelho retirado.

Experiências

Os dois primeiros anos de vida são o período mais intenso e sensível do desenvolvimento cerebral. É quando o cérebro cria trilhões de conexões neurais com base nas experiências sensoriais e afetivas que a criança vivencia.

Para a psicopedagoga e terapeuta emocional Daniela Mendes, especialista em neuropsicopedagogia clínica e mestre em psicologia da educação pela PUC-SP, um dos fatores mais preocupantes é o uso da tecnologia como substituto do vínculo afetivo. “Infelizmente, é muito mais fácil deixar a criança com o tablet do que dar atenção. E isso não é um julgamento — é uma realidade que muitas famílias enfrentam, entre o trabalho, a casa, o cansaço”, afirma. “Mas o que observamos na clínica é que esse abandono afetivo tem consequências diretas no comportamento e na aprendizagem”.

Daniela conta que muitas das crianças que chegam até ela com dificuldades escolares, especialmente no processo de alfabetização, não apresentam exatamente um problema cognitivo, mas sim questões emocionais não resolvidas, muitas vezes relacionadas à dependência de telas e à falta de interação afetiva no ambiente familiar.

“Percebi, ao longo dos atendimentos, que boa parte dos casos classificados como ‘dificuldade de aprendizagem’ eram, na verdade, reflexos de um emocional abalado. Por isso, além da psicopedagogia, busquei me especializar em neuropsicopedagogia e também me formei como terapeuta emocional, usando uma abordagem chamada TRG. Era preciso olhar além da cognição e entender como o emocional da criança estava interferindo diretamente no seu aprendizado”, relata.

Segundo a psicóloga, o impacto do uso precoce de telas pode ser dividido em três frentes principais do desenvolvimento infantil: cognitiva, motora e socioemocional. No aspecto cognitivo, as telas reduzem as oportunidades de aprendizado ativo, limitam o vocabulário e empobrecem o raciocínio simbólico e criativo.

No campo motor, o sedentarismo é um dos efeitos mais visíveis. A criança deixa de correr, pular, escalar e se movimentar. Ao mesmo tempo, atividades como desenhar, recortar, montar e manipular objetos são substituídas por gestos repetitivos no celular. No aspecto socioemocional, a ausência de contato humano reduz a capacidade da criança de reconhecer expressões faciais, nomear emoções e se colocar no lugar do outro.

O menino que mudou

Um dos casos mais marcantes foi o de um menino de sete anos que apresentava agressividade, dificuldades na escola e comportamento desafiador com figuras de autoridade. Após uma avaliação psicopedagógica, ficou evidente que ele passava longos períodos em frente ao tablet enquanto acompanhava a mãe no trabalho. “(Os pais) cortaram o uso excessivo da tela e passaram a seguir um cronograma com mais atividades presenciais e interações reais. Ele literalmente se transformou”, diz Daniela.

A partir dos dois anos, a SBP admite que as telas podem ser introduzidas com muita cautela, sempre com acompanhamento e mediação de um adulto. Isso significa escolher bem os conteúdos, assistir junto com a criança e conversar sobre o que foi visto, promovendo interação e reflexão.

Daniela Mendes reforça que mediação não é apenas limitar o tempo, mas ensinar a criança a consumir conteúdo de forma consciente. “Tecnologia não precisa ser inimiga, desde que usada como ferramenta e não como substituta da relação”, afirma.

João Frizo - programa de estágio

 

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