Patrimônio de Sorocaba
Será que tem solução?
Processo de restauração do Mosteiro São Bento, cartão postal de Sorocaba, se arrasta há mais de 20 anos
Paredes sem pintura e um grande tapume em volta. Há anos, essa é a paisagem do Mosteiro de São Bento, patrimônio histórico e cultural material da cidade de Sorocaba. O cartão postal tem grande importância para o município e é tombado por dois órgãos: o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), do Estado de São Paulo, e a Prefeitura de Sorocaba. Mesmo protegido, o processo de restauração do complexo arquitetônico, que ocorre há mais de 20 anos, parece nunca ter fim. Já a casa que também faz parte do complexo, localizada ao lado da Igreja de Sant’Anna, onde já funcionou uma escola de música, está disponível para locação. Uma Ação Civil Pública sobre os fatos foi instaurada pelo Ministério Público. Segundo a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, o processo foi julgado e reconhecida a responsabilidade exclusiva do proprietário para realizar a restauração e conservação do imóvel. Entretanto, tudo permanece do mesmo jeito.
Impasse
As obras estão paralisadas desde 2020, quando foram concluídos os trabalhos na Igreja de Sant’Ana, parte do complexo. O responsável pelo Mosteiro de São Bento é a Ordem Beneditina, que não respondeu aos questionamentos do Cruzeiro do Sul sobre andamento dos trabalhos. Já a Secretaria da Cultura do Estado informou que a conservação do imóvel é dever do proprietário. A Prefeitura de Sorocaba, por sua vez, afirmou que é responsável pela fiscalização das obras.
São muitos envolvidos, mas nenhuma solução para a preservação da construção histórica que marca o início de tudo. Sorocaba cresceu no entorno do Mosteiro, única cidade da América Latina que tem essa característica, a exemplo do que ocorreu em várias localidades na Europa.
O Mosteiro foi fundado em 21 de abril de 1660, quando o bandeirante Baltazar Fernandes doou a área aos monges beneditinos. Para colaborar com a preservação, valorização e divulgação do Mosteiro de São Bento de Sorocaba, há 20 anos foi criada a Associação Amigos de São Bento, uma entidade voluntária composta por cidadãos. Segundo o advogado Lucas Gandolfe, vice-presidente da diretoria da associação, a entidade tem o objetivo de atuar em conjunto com a responsável pelo conjunto arquitetônico, a Ordem Beneditina, poder público e outras entidades que tenham o mesmo objetivo social. “A associação foi criada simultaneamente ao início das obras de restauro no Mosteiro. [...]Ela começou tendo uma mescla, do religioso e do civil. Com o tempo, ela passou a ser composta somente por diretoria civil, tanto que hoje, somente civis tocam a associação voluntariamente”.
Ainda conforme o representante da associação, a entidade mantém contato com os órgãos públicos e, com isso, já conseguiu a implementação de algumas iniciativas para o mosteiro. No entanto, hoje, o atual problema para continuar com os reparos é a falta de recurso. “Hoje não existe, pelo menos que a associação tem conhecimento, nenhuma dotação orçamentária específica para o restauro; o que não impede de ser incluído na lei orçamentária, já que há um tombamento, e, por isso, a Secretaria de Cultura e o Conselho de Patrimônio Histórico, atuarem para buscar esse recurso”, disse Gandolfe.
Em entrevista ao Cruzeiro do Sul em setembro de 2022, o monge beneditino Rocco Fraioli, responsável pelo Mosteiro em Sorocaba naquela ocasião, disse que o restauro foi dividido em partes e não foi concluído por falta de recursos financeiros. Ele declarou que, a princípio, foi realizada uma intervenção emergencial no prédio. Os telhados com vazamento foram reparados e o local passou por uma descupinização. Após essa etapa, os recursos foram concentrados na Igreja de Sant’Ana.
O templo passou por uma restauração artística que preservou as características originais da estrutura e das peças da igreja, incluindo altares laterais, arco do cruzeiro, altar mor e a douração do retábulo, como é chamada a estrutura de madeira ao fundo do altar.
Os recursos para essa restauração foram conquistados por meio da iniciativa privada através de projeto aprovado no Programa de Ação Cultural (ProAC-ICMS). O documento foi elaborado pela Associação Amigos de São Bento e a quantia de R$ 980 mil aprovada, foi patrocinada pela empresa Flex, a título de incentivo fiscal do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Naquela ocasião, o monge disse, também, que para finalizar toda a reforma faltavam alguns reparos na parte elétrica, hidráulica, além da recuperação de lugares que estavam mais danificados, porém essa parte da restauração só seria realizada quando o Mosteiro conseguisse o valor necessário naquela época, cerca de R$ 900 mil, para a recuperação da fachada do prédio, e assim, concluir todos os trabalhos.
A reportagem do Cruzeiro do Sul esteve no Mosteiro de São Bento e constatou que as obras continuam paralisadas. A equipe conversou brevemente com o dom Inácio Moisés Caciagli, responsável atualmente pelo Mosteiro. O monge informou que prefere não se manifestar, pois o local é dependente da Ordem Beneditina. Ele mencionou ainda que entrará em contato quando houver novidades sobre as obras.
O Cruzeiro do Sul questionou a Ordem Beneditina de São Paulo sobre a recuperação do complexo, patrimônio de Sorocaba, mas não teve retorno até o momento.
Parte da história
“Patrimônio é a herança que nós recebemos. É importante a preservação de toda essa questão de patrimônio, pois são referências do que a gente foi, é e pode ser, das coisas boas e das coisas que podem e devem ser melhoradas”, explicou José Rubens Incao em entrevista ao Cruzeiro do Sul. O historiador recebeu a reportagem no Gabinete de Leitura Sorocabano, outro espaço que faz parte da história.
Segundo o especialista, foi no Mosteiro de São Bento que surgiu a primeira enfermaria da cidade, afinal, os padres tinham conhecimento sobre a saúde. No espaço, também foi instalada a primeira escola do município, com, inclusive, manifestações musicais. Isso porque, Baltazar Fernandes doou as terras com uma condição: que os monges ensinassem as crianças da época a ler e escrever. Na área também havia um cemitério. Ainda conforme José Rubens, há o registro de mais de 80 pessoas sepultadas no local. “Tem as grandes figuras, como o próprio fundador. Não sabemos exatamente aonde ele está sepultado, não havia questão de lápide, mas está ali”, informou.
Outro aspecto trazido pelo historiador é a questão da apropriação. Para ele, mais que preservados, os espaços precisam ser ocupados. “Não adianta só preservar, tem que dar vida, é que nem casa da praia, se você deixa dois, três meses, fica cheio de mofo, casa tem que ter vida, então esses espaços tem que ser necessariamente ocupados”. “[...]Esse ir e vir, as pessoas também ajudam a manter, e também tem uma coisa importante, vamos imaginar o Cine São Bento aqui, se for demolido, a gente que é mais antigo, não é só um prédio antigo que se vai; vai embora parte da nossa memória, porque eu tenho referências, ‘ali eu dei o meu primeiro beijo, meu pai veio me buscar’, toda essa referência afetiva da cidade está dentro daquele prédio”.
União de forças
Para o vice-presidente da diretoria da Associação Amigos de São Bento, Lucas Gandolfe, a recuperação do Mosteiro de São Bento em Sorocaba deve ser realizada por meio de uma união de forças entre a Ordem Beneditina, associação, órgãos públicos e iniciativa privada. “Não temos nenhuma dúvida que, mediante esse diálogo entre todos, será possível obter os meios necessários para finalização do restauro”.
O advogado também explicou o que mudou a partir de 2023, com a implantação da lei municipal nº 12.802, que institui o Mosteiro de São Bento e a Igreja de Sant‘Anna como Patrimônios Culturais Materiais do município. “A partir do momento que o município reconhece, com a aprovação de uma lei pela Câmara, sancionada pelo prefeito, que o conjunto arquitetônico tem essa importância histórica, de memória e cultura para Sorocaba, ele passa a ser também responsável pela sua preservação”.
Já o historiador José Rubens relembrou que o patrimônio é tombado, inclusive, a nível estadual. Para ele, cabe também à sociedade investir recursos, afinal, preservar o local é preservar a história da cidade. “Não tem nada a ver com religião, porque é um patrimônio. É como um livro antigo, que falava: ‘olha como as mulheres trabalhavam, eram tratadas’, é importante que a gente veja o que tem de bom, que pode ser aproveitado, e o que tem de mal, não repetir, mas não apagar. A escravidão indígena houve, mas é importante porque são registros das nossas felicidades e misérias, agora a parte de restauração é muito cara, que envolve toda uma técnica”.
Mas afinal, de quem é a responsabilidade?
Questionada, a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo informou que o Condephaat é responsável por aprovar intervenções em imóveis protegidos, assegurando que as características históricas e arquitetônicas sejam mantidas. No entanto, a conservação é dever do proprietário. O órgão pode fornecer orientações técnicas por meio de sua equipe, mas não financia diretamente as obras. Para isso, a Secretaria da Cultura lançou editais específicos que alocam recursos para projetos de recuperação, restauração e manutenção de bens tombados.
A Prefeitura de Sorocaba informou que a Divisão de Patrimônio Cultural e Histórico da Secretaria de Cultura (Secult) e o Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico, Turístico e Paisagístico de Sorocaba (CMDP) são responsáveis pela fiscalização das obras, por se tratarem de imóveis tombados. “O Largo do Mosteiro é contemplado, de forma regular, com serviços de limpeza, reparos e manutenções pela Secretaria de Serviços Públicos e Obras (Serpo)”.
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) informou que a pedido do promotor de Justiça de Sorocaba Jorge Marum, o órgão instaurou uma ação civil pública sobre os fatos. Conforme a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE/SP), o processo está transitado em julgado. Com isso, foi reconhecida a responsabilidade exclusiva do proprietário para realizar a restauração e conservação do imóvel. A decisão não cabe recurso. Em nota, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo declarou que o processo foi arquivado.
Agora, falta saber o que será feito, antes que seja tarde demais, para a preservação desse importante patrimônio histórico de Sorocaba.
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