Defesa da Mulher
Violência psicológica é o primeiro alerta de que o relacionamento vai mal
Ameaças e agressões são os últimos estágios, mas tudo começa com ofensas, que podem parecer inofensivas
Ofensas disfarçadas de piada ou eufemismo, aparentemente inofensivas, são os primeiros sinais de violência doméstica, no entanto, os últimos a serem percebidos. Muito se dá pela visão da sociedade sobre a violência que, de acordo com a psicóloga Caroline Holanda, especialista em relacionamentos, é muito agressiva. As vítimas apenas enxergam o ataque quando se torna mais severo, como ameaças e violência física.
“A violência física é concreta, mas a psicológica tem muitos níveis”, explica a terapeuta. “Críticas e xingamentos são mais evidentes, diferente da diminuição e de insultos velados, como por exemplo, ser chamada de burrinha. Muitas vezes as mulheres tentam justificar esses sinais justamente porque é algo muito difícil, afinal, existe uma carga afetiva grande”.
No entanto, quanto mais os insultos são tolerados, mais graves eles se tornam. Caroline, portanto, alerta para os sentimentos que prosseguem à violência psicológica, o principal é a confusão. “Por querer que a relação funcione, a mulher assume a culpa e passa a enxergar defeitos em si. Pouco a pouco ela se anula”, relata.
Em três anos à frente da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Sorocaba, a ex-delegada Veraly de Fátima Bramante Ferraz também afirma que a violência psicológica existe antes de qualquer outra. “É aquela mais difícil de identificar, em que acontece a manipulação”, aponta. “Depois disso, como o companheiro já conseguiu manipular, a violência parte para um empurrão, um xingamento mais forte, bater na mesa, jogar objetos no chão, até chegar na violência física e, infelizmente, no feminicídio”.
De acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP) de São Paulo, via plataforma SP Vida, neste ano, de janeiro a maio, foram registrados 18 casos de feminicídio na Região Metropolitana de Sorocaba (RMS). As solicitações de medidas protetivas à Justiça, por sua vez, alcançaram 1.030 no mesmo período. “É uma sensação de poder que os homens sentem sobre as mulheres, querem que obedeçam e sejam submissas. Portanto, quando eles não conseguem isso, usam a violência”, esclarece Veraly.
Segundo ela, o álcool e substâncias químicas são elementos que contribuem para a violência doméstica, ao intensificarem os sentidos e a diminuírem o nível de tolerância. “Qualquer fala ou comportamento se torna um mundo diante de um grão de areia. Portanto, tudo se torna motivo para briga”, afirma.
O papel do autoconhecimento
Se fosse para elencar ações necessárias para remediar a violência doméstica, Carolina Holanda colocaria o autoconhecimento em primeiro lugar. Para a psicóloga, somente é possível identificar os ciclos da violência se conhecer os seus limites e critérios.
“Quais são os meus valores? Quais os meus limites em uma relação? O que eu tolero e o que eu não tolero? O que eu espero desse relacionamento? É importante saber essas respostas”, aponta a terapeuta. “O autoconhecimento é a maior arma da mulher”.
As perguntas, inclusive, devem ser feitas durante a relação. De acordo com Caroline, uma das funções do relacionamento é a evolução de ambos. “Claro, isso não significa que será perfeito, mas os desafios devem amadurecer o casal. Portanto, é fundamental refletir como era a sua vida antes e como está sendo depois desta união. Você se tornou uma pessoa melhor? Sua carreira cresceu? Como estão suas amizades? Expandiu ou restringiu?”, questiona. “O relacionamento deve agregar, não limitar”.
O papel da educação
Veraly, por sua vez, com base na sua experiência profissional, enxerga que a educação é uma ferramenta para mitigar a violência doméstica. Apesar da influência em casa não ser uma regra, a ex-delegada acredita que a família, independente do formato, é a base de tudo.
“Se a criança vive em um ambiente de violência, seja de qual tipo for, entende que é um comportamento normal, afinal, não conhece outro estilo. Dessa forma, a criança perpetua o comportamento violento conforme for crescendo”, explica Veraly. “No entanto, se a criança é educada com amor e carinho, ela vai transmitir isso”.
A ex-titular da DDM ainda ressalta que a educação deve ser fundamental desde cedo, uma vez que a criança aprende a seguir regras impostas para viver bem em sociedade.
É possível restaurar uma relação abusiva?
A pergunta acima pode ser chocante e até mesmo polêmica, no entanto, após 10 anos trabalhando como terapeuta de casal, Caroline enxerga que é possível, desde que existam alguns parâmetros.
“Depende da situação, cada episódio tem o seu contexto e a sua dor. No caso da violência psicológica, existem homens que não sabem que estão sendo machistas em suas falas e comportamentos, pois por muitos anos algumas atitudes foram naturalizadas por meio do machismo estrutural”, explica a especialista. “Quando ele percebe e quer mudar, eu acredito que seja possível, caso faça acompanhamento psicológico individual ou em casal”.
Outra situação seria em que acontece o término devido à violência psicológica, quando a mulher não tolera mais o comportamento do parceiro. “Nessa circunstância, também é possível restaurar a relação. Contudo, a mulher deve permanecer firme na decisão do término caso a violência volte a ocorrer”, ressalta.
Independentemente do cenário, a mudança é desafiadora, uma vez que exigem novos comportamentos e novas crenças. O primeiro passo, segundo Caroline, é reconhecer a atitude e querer mudar. Apenas em episódios que envolvem violências física e sexual, a terapeuta é firme ao dizer que não acredita que seja possível restaurar o relacionamento.