Sorocaba
Atendimentos de violência doméstica na Casa Abrigo aumentam 296%
Segundo a Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Sorocaba os dados mostram crescimento de 10% no número de boletins de ocorrência e aumento de 27% de medidas protetivas solicitadas em 2023, em relação ao ano anterior
No início, os sinais são sutis. Primeiro, ele questiona a cor do batom e a roupa. Depois, ocorrem questionamentos sobre a necessidade de trabalhar. Cuidar da casa ou filhos deve ser a preferência. Em pouco tempo, a mulher não é vista por amigos e, em alguns casos, nem mesmo a família pode visita-la. Até que um certo dia, ao se olhar no espelho, a mulher percebe que perdeu sua essência, o amor-próprio e a liberdade por um homem que transforma gestos de abuso em justificativa de amor. Esses são os primeiros sinais que um homem que pratica violência doméstica pode demonstrar dentro de um relacionamento. Muitas vezes, a violência psicológica é a primeira a aparecer, para então, em seguida, chegar à violência física ou ao feminicídio.
Os dados divulgados pela Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Sorocaba apontam um crescimento de 10% no número de boletins de ocorrência registrados em 2023, se comparado a 2022, e um aumento de 27% de medidas protetivas solicitadas no mesmo período. Na Casa Abrigo Valquíria Rocha, mantida pela organização Centro de Integração da Mulher (CIM-Mulher), que trabalha no resgate e acolhimento de mulheres e respectivos filhos, vítimas de violência doméstica, o número de atendimentos em 2023 registrou um aumento de 296%, segundo a fundadora e diretora Cintia de Almeida. Em 2022, foram atendidas em torno de 1.010 mulheres. Já em 2023, mais de 4 mil mulheres foram atendidas.
Os sinais de violência doméstica mencionados anteriormente foram vividos por uma mulher, de 37 anos, que prefere não se identificar. Ela foi acolhida pela Casa Abrigo Valquíria Rocha, mantida pela organização Centro de Integração da Mulher (CIM-Mulher). No início foi difícil reconhecer o abuso. “Ele mexia com o meu psicológico. Falava que eu não precisava me arrumar, pois já era bonita sem maquiagem ou batom. Falava que eu não precisava usar determinada roupa, pois estava usando para chamar a atenção na rua e que eu não precisava estudar, pois já estava velha. Um dia, ele me falou ‘Você não tem alma, eu que estou te colocando alma’”, recorda.
A situação piorou quando ela iniciou um curso e voltou a trabalhar, com objetivo de retomar a vida que tinha antes da maternidade. Foram inúmeras frases de depreciação feitas pelo ex-marido, até o dia que ele partiu para a violência física: durante uma briga jogou uma garrafa de vidro em sua direção, em frente aos dois filhos. Aquela, foi para ela, a primeira e última vez. Naquele momento, após quatro anos de violência psicológica, ela saiu de casa e procurou ajuda da Casa Abrigo.
“Fora de casa, para outras pessoas, ele era uma pessoa maravilhosa. Mas dentro de casa, era outra pessoa. Ele não aceitou a separação e me persegue até hoje, por isso vim para a Casa Abrigo. Ele já chegou a ir até o local do meu curso, me esperou no ponto de ônibus, com arma na mão e me ameaçou. Ele ia me matar. O motorista do ônibus me ajudou me levando até outro lugar onde a polícia foi acionada e eu registrei o boletim de ocorrência. De início, rejeitei a ajuda. Pensei que eu conseguiria sozinha; mas quando você se acha super poderosa, que não precisa de ajuda, você começa a entrar em colapso. Até entender que não consegue fazer nada sozinha, demora um tempo”, comenta. Ela confessa que percebeu que havia dois caminhos na luta contra a violência que vivia: ir embora, superar aquilo e seguir em frente sem olhar para trás ou continuar vítima a vida toda. “A agressão física todo mundo consegue ver, mas e a psicológica? Tem muitas mulheres que estão nessa situação e que não conseguem enxergar a luz, mas tem luz. Eu decidi que não quero ser vítima a vida toda e não vou ser”. Em seu último dia na Casa Abrigo, ela confessa, aliviada, que agora consegue respirar. “Você sabe o que é viver sem respirar? Aqui, eu me senti respirando. Estou saindo daqui outra mulher. Eu renasci,” afirma.
18 anos de sofrimento
Outra vítima de violência doméstica acolhida anos atrás pela Casa Abrigo ainda lembra detalhes do passou. Hoje, a mulher, que também terá a identidade preservada, tem 44 anos. Aos 14 anos,ela conheceu seu ex-marido e pai de seus três filhos.
Aos 17, ela engravidou de sua primeira filha - hoje com 28 anos de idade. Foi quando a violência física começou. “Ele me enforcava e puxava meu cabelo. Durante a gravidez, foram muitos os episódios de violência. A primeira vez que fui me defender, eu estava segurando a minha filha e ele me deu um soco na costela,” lembra.
A mulher chegou a fugir e ficar oito meses na casa de uma amiga. “Ele me procurava em todos os lugares. Ele caçava mesmo, me segurava e me levava embora. Devido a minha dependência financeira, acabava voltando”. O ex-marido também tornou-se dependente de cocaína e os episódios de violência ficaram cada dia pior. “Tinha muito medo quando anoitecia, porque sabia que quando ele chegasse, seria uma noite de terror”, diz.
Ela passou a perceber que poderia ter um apoio quando em 1997 descobriu por meio de uma reportagem a existência da primeira casa de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica em Sorocaba. A partir daí, ela se planejou e fugiu de casa. Por três meses, ela ficou na Casa Abrigo e, depois, foi para uma kitnet e começou a trabalhar.
Após cinco meses longe, o ex-marido voltou a procura-la, afirmando que havia mudado e que procuraria um psiquiatra. “Eu voltei. Fui morar com ele e com as nossas duas filhas. Nesta época, foi uma opção minha voltar. Eu já estava trabalhando, voltei porque eu tinha sentimento por ele e porque tinha fé na família, de que daria certo, de que as minhas filhas poderiam ser criadas junto do pai e da mãe. Mas, claro, as coisas foram ficando cada vez piores. Nessa época, ele se drogou, me agrediu e quebrou meu nariz. Era agressão por qualquer coisa. Ele perdia a paciência e me jogava no chão. Me agredia de diversas formas e meus filhos sempre viam. Nas vezes que procurei a delegacia, ele gritou que não me deixaria em paz”, relata e conclui que a lei, naquele momento, também era diferente.
Os episódios de violência fizeram com que ela ficasse doente, com crises de pânico e dificuldade para dormir.Em seguida, ele foi preso, porém, por outro crime. Ela então, conseguiu novamente viver sozinha, se mudou para um apartamento e voltou a trabalhar. Enquanto estava preso, o ex-marido chegou a enviar cartas de ameaça a ela. Mesmo com uma ordem judicial para não se aproximar, quando o homem saiu da prisão, passou a persegui-la. Foi quando ela decidiu ir embora da cidade. “Meus filhos viram tudo. Viram ele andar armado dentro de casa, drogado, e com a arma cheia de munição. Eu não tinha vida, eu não tinha poder de escolher nada, eu não era nada. É muito triste alguém ser dono da sua vida, mandar, te violentar de todas as formas e você não ter como sair. Eu tinha medo que ele matasse a minha família, eu não tinha condições financeiras de sair com três crianças para longe”, relembra chateada.
“Fui três vezes para a Casa Abrigo e foi muito importante para mim. Hoje, as coisas estão diferentes. Agora tem esse botão que a mulher pode acionar, que oferece uma proteção. E quem é que tem uma coisa escrita no rosto dizendo que é um assassino e que vai matar alguém? Muitos deles não tem nem ficha criminal. Tem que tomar muito cuidado, se um homem é violento e está batendo, ele é capaz de matar”, finaliza.
Hoje, comemora. Redescobriu a vida, a liberdade e voltou a sonhar. “Eu nasci faz 10 anos. Estou começando a minha vida agora. Eu saio, viajo, trabalho e enfrento a vida como todo mundo enfrenta. Nossa vida mudou da água pro vinho. Nós quatro, eu e meus filhos, renascemos em um outro ambiente, em uma outra vida. Fico feliz que ainda existe esse projeto da Casa Abrigo e espero que isso possa salvar muitas mulheres e muitas vidas”, diz agradecida.
Lesões e ameaças dominam registros na DDM
Em relação ao aumento de boletins de ocorrências e medidas protetivas solicitadas em 2023, a delegada titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Sorocaba, Alessandra Silveira, explica que os dados envolvem boletins de ocorrência não só registrados na DDM, mas também os registrados no plantão e na delegacia eletrônica. Os registros de boletins de ocorrência não envolvem somente a violência física, mas todos os tipos de violência que possuem uma tipificação no código penal e que são considerados crimes, como ameaça, injúria, crimes sexuais e perseguição - que embora seja um clima relativamente novo, acontece muito. No entanto, os mais frequentes, de acordo com a delegada, são as lesões e ameaças.
“O aumento ocorreu devido a maior divulgação das delegacias; a delegacia aberta 24 horas; o maior esclarecimento para a vítima de como ela deve proceder e a abertura da delegacia eletrônica. Foram todos esses fatores, aliados às campanhas de conscientização que também aumentaram. Hoje, a mulher tem mais consciência e se sente mais segura para estar denunciando. Muitas vezes não são agressões que se iniciaram agora. A vítima vem fazer o registro, mas ela já sofre a violência há muitos anos e agora que ela vem encorajada pelo conhecimento de toda a rede de proteção, de todo o procedimento”, explica a delegada.
A delegada orienta que as mulheres vítimas de violência procurem a delegacia, seja ela física ou virtual, e registre os fatos. “Não tenha medo, nem vergonha de falar o que está acontecendo, porque a violência é gradual e vai aumentando. As vezes, começa em uma ofensa, parte para uma ameaça, depois violência física, podendo chegar até ao feminicídio. Então, quanto antes a vítima procurar uma ajuda para romper esse ciclo de violência, maior é a chance dela não ser vítima de um crime mais sério. A imprensa contribui muito para o aumento, que na verdade não é um aumento do registro, mas sim um aumento das vítimas procurando ajuda.
A delegacia está sempre à disposição, aberta 24 horas para possamos atender essas mulheres e ajudar elas a sair desse ciclo de violência, encaminhando para a rede de apoio, que em Sorocaba, é bem articulada, funciona muito bem e é muito eficiente”, afirma.
Violência física é o atendimento mais frequente na Casa Abrigo
Em 1979, após ser agredida pelo ex-marido durante a gravidez, aos 22 anos, a advogada Cintia de Almeida colocou como meta fazer com que todas as ações como advogada fossem gratuitas para as famílias em situação de violência. Ela passou então a ir para associações de bairro, postos de saúde, escolas e universidades, onde falava sobre violência doméstica.
“Ele me agrediu brutalmente e eu quase perdi o bebê, há 45 anos atrás. Em meu segundo casamento, sofri violência doméstica de novo. Advoguei mais de 30 anos gratuitamente e quando me aposentei, criei a organização Centro de Integração da Mulher, mantenedora da Casa Abrigo Valquíria Rocha”, conta.
De acordo com ela, a maioria dos casos que estão aparecendo na Casa Abrigo são de violência física. Mas ela cita, também, a violência patrimonial e a psicológica. “Eles falam ‘Quem vai te querer?’, ‘Você não presta para nada’. E então essas mulheres nos procuram, buscamos a rede de apoio e conseguimos resgatar a autoestima da mulher. Nós recebemos muitos casos aqui de mulheres que não tem apoio da família, que não tem para onde ir”, explica.
Na Casa Abrigo, todos os filhos de 0 a 17 anos são acolhidos. Mães e filhos recebem cinco refeições por dia, atendimento social, psicólogo, inclusive infantil, pedagoga, e cursos, que não são obrigatórios a participação, mas ajudam a mulher a sair da Casa Abrigo com capacitação para trabalhar como, por exemplo, manicure, cabelereira, artesã, entre outras funções.
Algumas pessoas chegam a ficar na Casa Abrigo por 180 dias. A Casa Abrigo atende mulheres de toda a Região Metropolitana de Sorocaba. “O poder público poderia melhorar e olhar com outros olhos. A iniciativa privada também poderia se envolver mais com as instituições que apoiam as famílias em situação de violência doméstica. O poder público não oferece verba suficiente para manutenção desses serviços e as empresas poderiam receber muitos benefícios se deixassem seus impostos de renda voltados para as instituições do terceiro setor da nossa cidade”, afirma a fundadora e diretora do projeto.