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Livre do Talibã, família afegã celebra vida nova em Sorocaba

Sabor e sobrevivência: Como a 'Cozinha da Zakia' se tornou fonte de renda e cultura para a Família Samim

18 de Novembro de 2023 às 22:01
Wilma Antunes [email protected]
Mesmo longe do seu país, Zakia e Sohrab Samim -- com os três filhos pequenos -- mantêm a tradição de receber visitantes com pratos típicos sobre um autêntico tapete persa
Mesmo longe do seu país, Zakia e Sohrab Samim -- com os três filhos pequenos -- mantêm a tradição de receber visitantes com pratos típicos sobre um autêntico tapete persa (Crédito: FÁBIO ROGÉRIO (24/10/2023))

Na simplicidade de uma sala modesta, o destino costura sua trama, onde os fios da hospitalidade, gentileza e resiliência se entrelaçam na jornada da família Samim. Sohrab, 33 anos, Zakia, 35, e seus três filhos trouxeram do Afeganistão uma história de coragem, que agora desdobram sobre o tapete persa estendido no chão de uma casa na zona norte de Sorocaba.

Existe um provérbio que diz que nossa casa é nosso templo. A família Samim leva esse ditado a sério. Antes de atravessar a soleira da porta, é costume retirar os sapatos, abandonar quaisquer preconceitos e vestir o manto do respeito. A equipe de reportagem do Cruzeiro do Sul foi convidada a se acomodar no tapete persa, que, naquele momento, não era apenas uma peça de decoração, mas um elo entre culturas distantes.

Observando a casa atentamente, nenhuma incerteza pairava no ar: aquele era, inquestionavelmente, o lar de uma família afegã. As cortinas da janela se desdobravam em três cores: preto, vermelho e verde, as mesmas cores que dançavam na bandeira do Afeganistão, cuidadosamente estendida sobre a mesa da sala.

Uma música animada persa eco­ava de um aparelho de som, conectado a um notebook. Sohrab, também jornalista, irradiava entusiasmo e parecia ter se preparado com antecedência para receber os visitantes. “Olá, amigos! Sejam bem-vindos”, declarou com um sorriso acolhedor.

Um chá perfumado com as especiarias de sua terra natal foi servido por Zakia, a esposa de Sohrab. Foi nesse momento em que fomos envolvidos na narrativa da família. Sohrab, prontamente, compartilhou fotografias, certificados, diplomas e registros profissionais que contavam a história de sua vida.

Entre esse caleidoscópio de memórias, emergiu o retrato multifacetado de Sohrab. Ele já foi apresentador de um programa de televisão em seu país e, curiosamente, uma figura tietada nas ruas. Suas experiências também se estendem às páginas dos jornais impressos, assim como este que você está lendo.

Apontando para o crachá da repórter, ele traçou uma conexão instantânea: “Newspaper, like (como) você”, indicando que, de alguma maneira, seus caminhos se entrelaçaram no vasto mundo do jornalismo. Mesmo que o domínio do português ainda não seja completo, Sohrab tece as palavras com habilidade, recorrendo ao Google Tradutor e, ocasionalmente, ao inglês.

O passado de Sohrab, porém, não se limitava às manchetes e às notícias. Suas raízes se estendiam até a farda policial, onde ele atuou no departamento antiterrorista, uma vocação inspirada por seu pai.

Foi também porta-voz da Unidade de Polícia de Ordem Pública do Afeganistão durante oito anos, até que a sombra do Talibã envolvesse sua nação em 2021. Zakia, ao lado de Sohrab, completa essa trama de vidas extraordinárias.

Uma educadora premiada, cujas conquistas tinham sido celebradas com o título de Educadora do Ano, antes da chegada do Talibã.

 

Livre do Talibã, família afegã celebra vida nova em Sorocaba - Cortesia
Livre do Talibã, família afegã celebra vida nova em Sorocaba (crédito: Cortesia)

A ruína

Tudo começou a desmoronar em 2021, após a retirada das tropas norte-americanas, quando o Talibã retomou o poder no Afeganistão. Suas políticas conservadoras e práticas rigorosas lançaram uma sombra sobre a nação, marcando o início de tempos difíceis.

Restrições severas às liberdades individuais, especialmente para as mulheres, foram impostas, incluindo códigos de vestimenta estritos e a proibição de trabalhar fora de casa ou frequentar a escola. Punições públicas cruéis tornaram-se comuns, ameaçando a vida de muitos.

O sistema educacional também foi fortemente limitado, com escolas para meninas sendo fechadas e escolas para meninos focadas estritamente em ensinamentos religiosos.

A história da família Samim é uma das muitas que ilustram o drama vivido pelo povo afegão sob o regime dessa nova ordem. O pai de Sohrab, que sempre fora sua fonte de inspiração, morreu em um ataque brutal do grupo terrorista.

Ele estava em um carro que foi alvo de uma explosão, vitimando também outras três pessoas. O sofrimento se estendeu à família de Zakia, com seu irmão permanecendo prisioneiro do grupo até hoje.

O momento decisivo havia chegado, eles precisavam sair do país. Com a ajuda de um amigo, deram início a uma arriscada jornada até o Irã, atravessando a fronteira terrestre.

Para se ocultarem de membros do Talibã, Sohrab e sua família adotaram disfarces, modificando suas aparências com cortes de cabelo e roupas largas. O sossego durou pouco, se é que um dia houve.

Após três meses de estadia, seus vistos expiraram, empurrando-os para uma vida clandestina e ilegal, que perdurou até o ano de 2022. Os dias eram permeados pelo constante medo de serem deportados de volta ao Afeganistão, um destino que, para eles, representaria uma sentença nas mãos do Talibã.

 

Livre do Talibã, família afegã celebra vida nova em Sorocaba - Cortesia
Livre do Talibã, família afegã celebra vida nova em Sorocaba (crédito: Cortesia)

Boa notícia

No auge do sofrimento, quando o peso da angústia e o esgotamento mental ameaçavam dominá-los, um novo anúncio trouxe esperança à família Samim.

A Embaixada do Brasil em Teerã, a capital do Irã, proclamou a concessão de vistos humanitários destinados a jornalistas, ativistas e outros que compartilhavam experiências semelhantes.

A família enviou um e-mail às autoridades brasileiras, sem grandes expectativas. Entretanto, um mês depois, o telefone tocou, trazendo uma mensagem da embaixada. A voz do outro lado da linha parabenizou a família e os convocou para uma entrevista, durante a qual deveriam apresentar documentos.

Com as emoções à flor da pele e lágrimas de gratidão escorrendo pelos olhos, Sohrab finalmente podia sentir esperança em um futuro melhor. “Foi um momento de alívio. Somos profundamente gratos ao governo brasileiro por esta oportunidade de recomeço”, declarou o refugiado, enquanto suspirava ao lembrar do momento.

Apesar da esperança trazida pelas boas notícias, o caminho em direção ao Brasil não se desenrolou sem seus próprios obstáculos. A família teve que enfrentar uma multa de 5 mil dólares, imposta pelo governo iraniano devido ao vencimento de seus vistos. Este fardo financeiro abalou o orçamento da família, que já havia vendido tudo para garantir a sobrevivência em terras estrangeiras.

Com grande esforço, as coisas começaram a se ajeitar. Após superar esse problema, a família Samim finalmente aterrissou em solo brasileiro em dezembro de 2022, alguns dias antes do novo ano. O avião pousou no Aeroporto de Guarulhos, onde o caloroso abraço da hospitalidade brasileira já os aguardava.

Logo na chegada, várias pessoas, movidas pela empatia humanitária, estenderam as mãos em auxílio à família. Durante os primeiros três meses, eles se instalaram em Salto de Pirapora e, nos seis meses seguintes, encontraram um lar em Sorocaba.


A adaptação a essa nova vida não demorou a render frutos. No primeiro trimestre de sua residência no Brasil, a família já havia providenciado documentos essenciais, incluindo o Registro Nacional Migratório (RNM) e o Cadastro de Pessoa Física (CPF).

Mas o que verdadeiramente marcou na memória da família foi o acolhimento do povo brasileiro. “Fomos recebidos de braços abertos por esse povo maravilhoso. Às sextas-feiras, alguns amigos reservam um tempo para nos ensinar português gratuitamente”, destacou Sohrab.

Além dos costumes, a bagagem cultural da família também inclui os sabores da culinária afegã. Enquanto ainda moravam em Salto de Pirapora, eles tiveram a oportunidade de se envolver em feiras gastronômicas.

Com a ajuda de amigos, Zakia começou a preparar banquetes repletos de iguarias afegãs. Essa generosidade não visava ganhos financeiros, como afirmou Sohrab, era algo “espiritual”, uma demonstração sincera de compaixão que transcendia o dinheiro.

Inspirados por essa experiência, Sohrab e um amigo afegão, que não está mais no Brasil, tiveram a ideia de criar um espaço para compartilhar a culinária afegã com amigos e entusiastas.

Para realizar esse sonho, Sohrab buscou um empréstimo no Afeganistão e garantiu o aluguel de uma casa no Brasil. Hoje, esse imóvel abriga a “Cozinha da Zakia”, onde a refugiada prepara autênticos pratos afegãos. O estabelecimento funciona somente com delivery, sem atendimento presencial.

 

O bebê do recomeço

No seio da casa da família Samim, os três filhos desempenham papéis vitais na complexa trama de adaptação. Musa, o primogênito, de 12 anos, é um estudante dedicado, que se empenha em aprender o português enquanto guarda com carinho as memórias de sua terra natal.

Yaqoob, o filho do meio, de 10 anos, é o mais agitado, sempre seguindo os passos do irmão mais velho. Enquanto isso, Shahzad, com seus 6 anos, contagia a todos com sua alegria, abraçando essa nova vida com a curiosidade que só a infância é capaz de oferecer.

Essa história agora se transforma com a chegada de um novo membro à família. Zakia, grávida de quatro meses, carrega em seu ventre uma promessa de recomeço no Brasil, onde a família afegã encontrou apoio e compaixão em sua jornada de superação.

Para a família, o bebê representa mais do que apenas um novo início; é a celebração do amor e da união que moldaram esse novo lar. “Ele é brasileiro”, apontou Sohrab, com um gesto amoroso, para a barriga da esposa. A família agora luta para que seus parentes também consigam vir para o Brasil e fazer parte desse recomeço.  

 

Que tal experimentar um cardápio típico da Ásia Central

Os brasileiros são conhecidos pela hospitalidade, mas a simpatia do povo afegão não fica atrás. A reportagem foi convidada para um brunch, uma refeição que se encaixa entre o café da manhã e o almoço, repleta de pratos do cardápio da “Cozinha da Zakia”. A sala, adornada com o tapete persa, ganhou ainda mais cores e vida com a presença dessas iguarias.

Os nomes dos pratos podem soar diferentes, mas a experiência de degustá-los é única. O “mantu”, bolinhos de massa recheados com cebola e carne moída ou cordeiro, e o “bolani”, um pão achatado sem fermento recheado com uma variedade de ingredientes, desvendam o sabor da tradição, trazendo consigo paladares recheados de memórias e amor.

Os “falafels” surpreendem com uma explosão de especiarias, enquanto o “quarma” (um guisado que pode ser feito com carne, vegetariano ou até doce) e o “kufta” (almôndegas de cordeiro afegão) mostram a riqueza das carnes temperadas, oferecendo um verdadeiro festim de sabores.

Esses pratos afegãos são cuidadosamente servidos ao lado do tradicional pão “chapati” e de uma seleção de legumes frescos que equilibram o paladar. E, é claro, tudo isso ganha vida com o tradicional molho de iogurte fresco, alho e hortelã.

Todos esses pratos, além de outras opções como hambúrguer afegão, kabuli, sanduíche de falafel e sucos naturais, podem ser adquiridos na “Cozinha da Zakia”. Para isso, basta entrar em contato com a família com um dia de antecedência via WhatsApp pelo número (15) 99719-9959. Também é possível acompanhar a cozinha pelo perfil @cozinhadazakia no Instagram. (Wilma Antunes)

Cozinha da Zakia reúne os pratos mais representativos da culinária afegã - FÁBIO ROGÉRIO (24/10/2023)
Cozinha da Zakia reúne os pratos mais representativos da culinária afegã (crédito: FÁBIO ROGÉRIO (24/10/2023))

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