Sorocaba
Uma mãozinha para voltar à vida
Programa Humanização atua junto a pessoas em situação de rua para oferecer uma chance de reinserção social
“Eu falava que ele tinha morrido, para protegê-las da verdade”. Durante anos, a auxiliar de logística Renata Aparecida Arminda, preferiu contar essa história às três filhas e esconder que o pai delas, o pedreiro Anderson Soares Ribeiro, havia deixado a família para morar nas ruas. Ribeiro viveu sem um lar por quase 20 anos, mas a sua história -- e a sua vida -- mudaram no início de 2023. Com o auxílio do programa Humanização, da Prefeitura de Sorocaba, ele voltou para casa, se reencontrou com a família e consigo mesmo.
Ribeiro é uma das mais de quatro mil pessoas que retornaram aos seus lares desde o início do projeto, em fevereiro de 2021, até outubro deste ano. Desenvolvido pelas secretarias da Cidadania (Secid), Saúde (SES) e de Segurança Urbana (Sesu), a ação oferece ajuda a pessoas em situação de rua.
Diariamente, equipes multidisciplinares e especializadas em abordagens sociais atuam em todos os pontos da cidade onde costuma haver concentração desse público. Os profissionais também atendem a casos específicos, a partir de chamados da população. Segundo a Secid, até o momento, o Humanização efetuou mais de 27,5 mil abordagens. Desse total, cerca de 25 mil resultaram em acolhimentos no Serviço de Obras Sociais (SOS); 14,4 mil em encaminhamentos ao Centro de Triagem; e mais de 200 em atendimentos de saúde.
Segundo o secretário de Cidadania, Clayton Lustosa, o principal objetivo da iniciativa é promover a mudança de vida e a reinserção social dos atendidos. Por isso, as frentes de apoio vão além do oferecimento de cobertores, abrigo e alimentação, por exemplo. Elas englobam, igualmente, o encaminhamento para clínicas de reabilitação, Centros de Atenção Psicossocial (Caps), Centros de Referência de Assistência Social (Cras), cursos profissionalizantes e vagas de emprego, dentre outros, até o recâmbio social. “A ideia é dar andamento para a necessidade específica de cada indivíduo”, disse.
Recâmbio
De acordo com Lustosa, cerca de 80% das pessoas em situação de rua não são de Sorocaba. Por isso, um dos focos das equipes é reconduzi-las para suas cidades e convívio familiar. O titular da Secid explica que a primeira etapa do processo consiste em localizar algum familiar do acolhido. Depois, havendo interesse das duas partes em restabelecer o vínculo, a pasta busca um serviço social na localidade para onde ele quer ir. A prioridade é por programas capazes de continuar a oferecer as mesmas assistências prestadas pelo Humanização.
Resolvidos esses tramites, são pagas, então, as passagens de ônibus para o atendido reencontrar os seus parentes. Mesmo após a conclusão do seu trabalho, a secretaria mantém contato com todos os assistidos e as entidades responsáveis por ampará-los, a fim de acompanhar a situação de cada um.
Problemas emocionais
Conforme Lustosa, a maioria das pessoas acaba nas ruas por conta de questões emocionais, bem como pelo vício em drogas ou álcool. “A maior parte sofreu desilusões amorosas, quebra de vínculo com o pai, com a mãe, com a família”, explicou. “São questões da vida com as quais, muitas vezes, elas não conseguem lidar. Isso faz com quem acabem procurando uma alternativa longe do seio familiar”.
Nas ruas, além das questões internas, os indivíduos precisam lidar com uma dura realidade, segundo o secretário municipal. Com isso, os adictos tendem a aumentar o consumo de substâncias nocivas, e quem não usava nada passa a fazê-lo. Assim, completa Lustosa, as pessoas perdem a capacidade de sair dessa situação sozinhas. “Elas acabam desenvolvendo não só dependência química, mas também dependência (de ajuda) humana, porque nem sabem o quão mal estão fazendo para si mesmas”, apontou.
Por isso, de acordo com Lustosa, a recuperação desses pacientes depende, primeiramente, de uma rede de apoio para auxilá-los a se livrar dos vícios. O secretário ressalta que a família é parte fundamental nesse processo, pois, geralmente, trata-se da maior fonte de suporte, motivação e afeto do acolhido. “A falta do vínculo familiar faz com que essas pessoas não sintam nem muita vontade de viver, então, elas não têm força para sair dessa situação por si mesmas, mas conseguem com a ajuda de alguém que amam, dos pais”, ressaltou.
Duas histórias de superação e reconstrução da dignidade
Os dias nas ruas viraram apenas lembranças ruins para Anderson Soares Ribeiro, de 46 anos, mas ele não faz questão alguma de esconder a sua história. Afinal, ela o transformou em quem é hoje. Ribeiro saiu de casa pela primeira vez em 2000, por problemas com o pai. Foi para a Cracolância, na capital paulista. Lá, desenvolveu, logo de cara, o vício em entorpecentes. Entre idas e vindas, foram 19 anos sem um lar.
Em 2007, quando foi resgatado e levado para Minas Gerais pelo pai, a vida de Ribeiro parecia que voltaria aos eixos. Ele conquistou trabalho, conheceu a esposa, teve as três filhas e conseguiu abandonar, ao menos por um tempo, as drogas. Porém, em 2010, sofreu uma recaída e, novamente, deixou a família para seguir sem rumo.
Para lidar com as angústias, ele sempre recorria a diversas drogas, como crack, cocaína e maconha. “Eu usava para amenizar o coração, o vazio que sentia dentro de mim”, contou. “Eu preferia usar droga do que me alimentar”. Diante dessa situação, ele até pensava em voltar para casa, mas tinha medo e vergonha. “Eu pensava: ‘vou chegar em casa com uma mão na frente e outra atrás, e a minha família vai me humilhar’”, falou.
Recomeço
Apesar do receio, em 2020, o desejo de reencontrar a família falou mais alto. Determinado a mudar de vida, Ribeiro se encheu de coragem e partiu para Sorocaba, onde descobrira que estavam a sua esposa e filhas. Morou com elas até 2021, mas, como ainda não havia se livrado dos entorpecentes, retornou para as ruas naquele ano.
Como não conseguia superar a adicção sozinho, em março de 2023 ele decidiu aceitar a ajuda do programa Humanização. As equipes o encaminharam para uma clínica de reabilitação, onde permaneceu internado por seis meses. Quando saiu, em setembro, iniciou, finalmente, o seu processo de recomeço.
Atualmente, vive com a família e não usa mais drogas. Continua em tratamento e sob acompanhamento de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps). A lista de alegrias proporcionadas pela nova vida é grande. A chegada da primeira neta, Liz Ribeiro Arminda, hoje com cinco meses, figura entre as principais. Para completá-la, Ribeiro precisa apenas conseguir um emprego.
Religioso, agora, em vez das substâncias ilícitas, busca na fé a força necessária para seguir em frente e continuar a prosperar. Inclusive, ingressou em um grupo de evangelização, para inspirar outras pessoas a seguir o seu exemplo. “Parece que Deus preencheu os meus vazios e que a minha família me restaurou”, revelou.
Esposa exala felicidade
Esposa de Anderson Ribeiro, Renata Aparecida Arminda, de 43 anos, não precisa mais alterar a história sobre o paradeiro do pai de suas três filhas. Embora ela usasse a morte para justificar a ausência do marido, às vezes, acreditava que isso realmente pudesse ter acontecido, pois ficava longos períodos sem receber qualquer notícia dele. As buscas eram constantes, porém, ela nunca o encontrava. “Passava a noite procurando”, relembrou.
Tudo isso ficou no passado, e, hoje em dia, quem estava sempre ausente permanece ao lado da família em todos os momentos. Renata exala felicidade por conta dessa transformação. “É outra vida”, resumiu.
Mudança em segundos
A vida do psicólogo Eduardo de Souza Alves, de 50 anos, era estável. Em poucos segundos, literalmente, tudo mudou. Em 2019, para passar mais tempo com a filha e a esposa, ele abandonou a psicologia e apostou na profissão de caminhoneiro. Durante uma viagem de retorno do Uruguai, na qual toda a família estava no caminhão, Alves cochilou ao volante, após 60 horas sem dormir. O veículo tombou na Serra de Pitani, no Paraná. A menina, de 4 anos, e a mulher, de 36 anos, morreram.
Desolado com as perdas, Alves, natural de São Roque, na Região Metropolitana de Sorocaba (RMS), acabou nas ruas, em 2020. “Quando saí do hospital, não tinha mais família, (então) fui para a casa da minha mãe e fugi, mesmo cheio de pontos na barriga, e fui viver nas ruas”, contou. Durante cerca de três anos perambulando, ele passou por várias regiões e municípios brasileiros.
Independentemente de onde estivesse, a realidade era sempre igual. Dormia sob o sol, o frio e a chuva. “Eu dormia ao lado das fezes”, recordou. Tomava banho no esgoto. Para comer, pedia alimentos aos outros, buscava no lixo, esperava doações ou, quando tinha dinheiro, ia a restaurantes populares. Muitas vezes, temia pela própria vida. “À noite, a sociedade vai dormir e apaga as luzes, e as ruas viram uma selva”, narrou. “O perigo de morte é constante. Violência, drogas, traficantes...”
Com o intuito de tentar “amenizar” todo esse sofrimento, Alves virou usuário de drogas e alcoólatra. “Eu entrei em depressão, passei a sofrer de confusão mental, quase uma psicose”, disse. “Eu não conseguia dormir durante a noite, começava a cochilar e via as duas passando por mim. Eu levantava e saia correndo para chamá-las. O que aliava um pouco desse sofrimento eram o álcool e as drogas”.
O são-roquense chegava a beber oito corotes em um único dia. Obtinha o dinheiro para sustentar os vícios catando materiais recicláveis. Puxava um carrinho de reciclagem o dia todo, de segunda a segunda. “Se eu ganhasse R$ 100, gastava tudo em bebida e droga”.
Ao longo do tempo, ele percebeu que a situação havia se tornado insustentável, porque “a saúde mental e espiritual estavam destruídas”. Os entorpecentes e o álcool o impediam até mesmo de sentir fome e saudade da família. “Eles (vícios) roubam a necessidade da família, o amor que temos pela família, você acaba vegetando nas ruas e aceita aquela situação”, relatou.
Em abril deste ano, porém, Alves cansou de aceitar aquele cenário e recorreu ao Humanização. Imediatamente, foi encaminhado para uma clínica de reabilitação. Paralelamente, as equipes do programa localizaram a mãe dele, a aposentada Vera Lúcia Pacheco de Souza, de 66 anos, e os dois se reencontraram. “Uma lembrança que eu vou carregar para o resto da vida é a minha chegando na clínica e gritando: ‘Meu filho’”, comentou.
Depois de receber alta, em setembro, o psicólogo se reergueu, sempre tendo a família como a sua maior fonte de incentivo. “O amor da família me fortalece. Estando próximo dela, eu me restabeleci e me ressocializei, e isso já é o bastante para saber que, só por hoje, não posso usar drogas, nem tomar um gole sequer de álcool”, pontuou. Além de reconstruir os laços familiares, ele voltou a atuar na sua área profissional e até já comprou um automóvel. “Considero uma recuperação da minha vida, da minha dignidade, a dignidade de ter uma vida de volta à sociedade”.
Principal apoiadora
Vera é a principal apoiadora do filho nesse momento de reconstrução. Segundo Alves, ela não sai de perto dele um minuto sequer. O carinho entre os dois fica evidente pelos abraços dados no decorrer da entrevista, algo que a mãe não podia fazer até pouco tempo atrás. Por anos, ela conviveu com a agonia de só conseguir ver e estar próxima do filho, de alguma forma, por fotos. “Eu não tinha nenhuma notícia dele, não dormia direito, pensava nele, achava que estava morto, era uma tristeza muito grande e profunda”, relembrou. “Era uma perturbação, eu não tinha paz, a preocupação não me deixava descansar, acordava preocupada, quando estava frio ou chovendo”.
Esse sofrimento se findou apenas no instante em que ela o viu novamente, vivo e bem. Desde então, se sente completa e realizada. Até lhe faltam palavras para definir a emoção de finalmente ter o filho ao seu lado outra vez. “Eu estou numa felicidade que não tem como explicar, não tem nada que pague essa felicidade”, concluiu.
Suporte familiar é essencial
O psicólogo especialista em dependência química e professor da faculdade Anhanguera de Sorocaba Sérgio Leão Balsamo afirma que o restabelecimento do convívio familiar é essencial no processo de recomeço. Segundo ele, a família é o primeiro vínculo formado pelo ser humano em sua vida. Por isso, trata-se do agente mais importante no desenvolvimento do indivíduo de forma total, de acordo com Balsamo.
Ainda segundo o especialista, embora os familiares sejam, geralmente, a principal fonte de afeto e apego, por exemplo, algumas pessoas consideram esses sentimentos insuficientes, por problemas de inadequação causados por razões diversas. Assim, acabam indo para as ruas na tentativa de preencher esse vazio e em busca de liberdade.
No entanto, de acordo com Balsamo, é comum a frustração só aumentar, pois a realidade encontrada longe de casa é mais difícil e cheia de obstáculos.“A pessoa começa a perceber que essa liberdade da rua é uma ilusão e que o acolhimento, o aconchego, o amor que ela tinha dentro de casa superam o desejo de liberdade, de poder fazer as coisas sem dar satisfação, sem ter que cumprir determinadas regras sociais”, falou.
Quando nota isso, o indivíduo começam a procurar outros meios de alcançar o tão desejado alívio de suas angústias. Segundo o psicólogo, a maioria recorre ao álcool e às drogas, vindo a desenvolver o vício. Ele diz que a adicção dificulta ainda mais o retorno da pessoa em situação de rua para o seu seio familiar. Com isso, muitas passam a viver um dilema, pois querem voltar, mas não sabem se serão aceitas.“Elas se deparam, às vezes, com alguns impedimentos próprios, como sentimentos de culpa, inadequação, medo, vergonha”, apontou.
Por esse motivo, conforme Balsamo, a família disposta a acolher o seu ente novamente deve estar preparada para suprir, de alguma forma, as necessidades emocionais dele. Dependendo das circunstâncias, ele aconselha os familiares a recorrer a apoio psicológico, para saber como lidar da melhor forma com a situação. O amparo de profissional especializado também evita que a família seja negativamente afetada pelo desafio de auxiliar uma pessoa em situação de vulnerabilidade.“É necessária uma avaliação caso a caso, para que possa ser determinado que tipo de auxílio tanto a pessoa, quando a família necessitam”, apontou.
Conforme ele, o foco deve ser a criação de um ambiente saudável, estruturado, funcional, acolhedor e compreensivo. Tudo isso ajuda o acolhido a realmente querer mudar de vida e o motiva a não voltar para a sua realidade anterior.“Se a família consegue garantir que a pessoa possa se sentir reconhecida, validada, valorizada enquanto indivíduo, e tentar entender por que ela foi buscar essa situação de mais liberdade, essa família pode criar um ambiente acolhedor de novo, para que essa pessoa se sinta novamente em casa”, destacou. “Esse resgate precisa ser trabalhado, para que seja definitivo”.
Como acionar o programa Humanização
A população pode acionar o programa Humanização pelo WhatsApp (15) 99666-2636, disponível 24h por dia, ou pelos telefones (15) 3229-0777, do SOS; (15) 3212-6900, da Secid; e 153, da Guarda Civil Municipal (GCM).
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