Uma chance é tudo de que eles precisam
Coopereso ajuda ex-presidiários a vencer preconceitos, conseguir emprego e iniciar uma vida nova
“A taxa de reincidência na criminalidade dos que passam pelo projeto não atinge 1%” Miraci Vieira Cugler, presidente da Coopereso
Quando as grades do sistema prisional se abriram para Melissa Garcia Melo, de 40 anos, e Thiago Ramos dos Santos, 26 anos, as portas de oportunidades, por outro lado, se fecharam. Após cumprir suas penas, ambos saíram da prisão com o desejo de deixar a antiga vida para trás e iniciar uma nova, totalmente diferente da anterior. Contudo, no caminho, esbarraram com o preconceito. Isso os impedia, principalmente, de dar o primeiro passo para recomeçar: conseguir emprego. Com a esperança prestes a se esgotar, Melissa e Santos encontraram na Cooperativa de Trabalho e Social de Egressos, Familiares de Egressos e de Reeducandos de Sorocaba e Região (Coopereso) a luz no fim do túnel.
Fundada em 2004, a entidade auxilia ex-presidiários e parentes que comprovadamente dependem financeiramente de encarcerados a ingressar no mercado de trabalho. Segundo a presidente da cooperativa, Miraci Vieira Cugler, 43 anos, nesses 19 anos, mais de 12 mil pessoas já foram beneficiadas. Desde 2019, a Coopereso passou a atender, também, munícipes em situação de extrema vulnerabilidade social.
Hoje, são 170 cooperados — 75% ex-presidiários e 35% familiares. Destes, 60%, são homens; 35%, mulheres; e 5%, LGBTQIA+. Do total, 75% se autodenominam não brancos (negros ou pardos). Conforme Miraci, em média, 20 novos interessados buscam o projeto por mês.
Fundada em 2004, a entidade auxilia ex-presidiários e parentes que comprovadamente dependem financeiramente de encarcerados (crédito: Vnicius Fonseca)
De acordo com ela, o principal objetivo da cooperativa é promover a ressocialização dos cooperados, por meio da oferta de oportunidades, para evitar reincidência criminal. “A gente acha que todo mundo merece uma segunda chance”, disse.
Ainda conforme ela, esse trabalho é necessário porque os ex-prisioneiros enfrentam muita dificuldade para conquistar uma vaga por conta própria, devido à discriminação por parte dos contratantes e da sociedade em geral.
Como funciona
O próprio interessado deve procurar a Coopereso para se filiar, como explica a responsável pela entidade. Para formalizar a cooperação, verifica-se, primeiramente, se a situação do futuro membro está em conformidade com o exigido. Em caso afirmativo, a equipe avalia o perfil e as habilidades dele, com o objetivo de indicá-lo para vagas nas quais melhor se encaixa.
Familiares, especificamente, precisam provar que eram sustentados pelo detento. Já pessoas em situação de vulnerabilidade devem ser encaminhadas pelos Centros de Referência de Assistência Social (Cras).
Atualmente, segundo Miraci, os cooperados são contratados pela Secretaria da Cidadania (Secid) de Sorocaba, por meio de parceria com a Prefeitura. Eles atuam em funções de limpeza e manutenção em órgãos e parques públicos, por exemplo, além de cooperativas de reciclagem. Conforme ela, empresas privadas também podem firmar acordos com a cooperativa.
Os filiados, informa Miraci, trabalham oito horas diárias, não excedendo 40 horas semanais, seguindo a legislação. Todos eles fazem retiradas mensais e possuem seguro de vida. Há, igualmente, recolhimento dos valores da Previdência Social. Nenhuma taxa é cobrado dos integrantes.
Além disso, os uniformes, ferramentas e equipamentos de proteção individual (EPIs) para uso no trabalho são fornecidos gratuitamente, de acordo com ela.
Cursos e assistência
As frentes de trabalho da Coopereso também incluem oferecimento de cursos profissionalizantes e assistência psicológica. Para Miraci, o acompanhamento com terapeuta é primordial para o egresso, sobretudo, entender a própria realidade, conhecer os meios e possibilidades de transformação, bem como sentir-se motivado a alcançar essa mudança.
“A pessoa sai do sistema prisional rancorosa com a sociedade, porque acha que tirou algo dela. Então, temos que fazê-la ter consciência de que ela errou, mas tem a oportunidade de começar de novo”, explicou.
De acordo com a presidente da iniciativa, os resultados dessas ações podem ser observados na prática. “A taxa de reincidência na criminalidade dos que passam pelo projeto não atinge 1%”, afirmou. Além disso, acrescentou, cerca de 40% se desligam da cooperativa porque conseguiram emprego registrado em empresas ou abriram seus próprios negócios. “No ano passado, no prazo de seis meses, cerca de 12% dos trabalhadores foram contratados por prestadoras de serviços”.
Perfil semelhante
Miraci Cugler comenta que a maioria dos membros do projeto tem perfil semelhante. São pessoas oriundas de favelas, em situação de vulnerabilidade e com núcleo familiar problemático. Melissa Garcia Melo se encaixa exatamente nessa descrição. Natural da capital paulista, ela começou a ser estuprada por amigos do pai — usuário de drogas — aos 7 anos.
Os abusos continuaram até os 13 anos, quando ela tomou coragem e contou tudo para a mãe. Revoltada, a mulher decidiu sair de casa e foi morar com os três filhos na rua. Nessa época, para tentar atenuar a fome e todos os outros obstáculos vividos por quem não tem um lar, assim como a dor pela morte dos dois irmãos, Melissa começou a usar crack. Foi nessa fase que ela, sem conseguir emprego, também entrou para a prostituição. “Eu cheguei a me prostituir por uma pedra de crack”, contou.
Com o tempo, o dinheiro obtido com os programas tornou-se insuficiente para manter o vício. Com isso, aos 18 anos, ela começou a praticar furtos. Os crimes culminaram em seis anos na prisão. A liberdade ocorreu em 2022. Aquele parecia o fim da sua agonia, mas, na verdade, era o início de outra. Transsexual e egressa, Melissa até tentou conseguir trabalho, porém, o mercado estava contra ela. Tanto nas candidaturas on-line, quanto presenciais, ouvia a mesma resposta, quando apresentava os antecedentes criminais. “Diziam que o meu perfil não foi aprovado”, relatou.
Diante disso, abalada, ela voltou a se drogar e a morar na rua. A situação mudou neste ano, quando foi espancada por um traficante para quem devia dinheiro. Naquele dia, teve a certeza de que era a hora de seguir por novos caminhos. “Eu falei: ‘Deus, me tire dessa vida ou tire a minha vida. Eu não aguento mais’”, narrou, aos prantos.
Melissa teve o seu pedido atendido. Conheceu a Coopereso, mudou-se para Sorocaba e conquistou a tão sonhada vaga. Hoje, integra a equipe de limpeza do Parque da Biquinha, no Jardim Vergueiro. Empregada, casada, com renda e um teto, ela chora ao lembrar do passado, mas também sorri, se orgulha e demonstra gratidão por todas essas vitórias do presente. “Hoje, eu tenho vida”, destacou. Após tanto sofrimento, hábitos simples, como poder entrar no supermercado e comprar o que quiser sem ser expulsa, ganharam significado imenso para ela. Coisas ainda mais comuns fazem, igualmente, parte dessa lista. “Depois de anos e anos, eu pedi uma pizza”, disse Melissa, com um enorme sorriso.
Atualmente, Melissa enfrenta uma nova batalha -- o câncer. Diagnosticada com um tumor cerebral, ela está em tratamento. Mas a doença não é capaz de abatê-la. Com o desejo de viver a sua nova vida por muito tempo ainda, a egressa reúne todas as suas forças para lutar contra o problema. Inclusive, conta que as mudanças na sua realidade têm favorecido a sua saúde e contribuído para lhe ajudar a vencer essa luta. "Depois que comecei a trabalhar, o médico falou que o tumor até reduziu", afirmou.
“Pela dor”
Thiago Ramos dos Santos também encontrou todas as portas fechadas quando saiu da prisão. Então morador de uma comunidade em Sorocaba, ele começou a vender drogas aos 16 anos e, logo no início, foi apreendido. Em 2014, junto com a maioridade, veio uma prisão por roubo. Depois de cerca de sete anos na cadeia, a soltura ocorreu em 2021. Durante o período de encarceramento, além da liberdade, o rapaz perdeu a mãe, em 2018.
Ao voltar para o convívio social, Santos se viu órfão, desempregado, desamparado e sem um lugar para morar. A única saída foi buscar assistência no Serviço de Obras Sociais (SOS). Em meio a tantas atribulações, ele percebeu ser o momento de deixar o velho Thiago para trás e iniciar a construção de um novo. “Foi pela dor que eu decidi que era hora de mudar de vida”, frisou.
Ainda em 2021, ele ingressou na Coopereso. Hoje em dia, coordena a equipe de manutenção em uma cooperativa de reciclagem. Mais do que dinheiro, a ocupação trouxe felicidade, possibilitou a concretização de sonhos e, especialmente, transformou a realidade dele. A lista de realizações inclui o casamento, condições de pagar o aluguel de sua residência e a compra de uma motocicleta. E ele quer mais — a próxima meta é adquirir um automóvel.
Santos afirma ter entendido só haver progresso quando opta-se por seguir no caminho certo. Assim, descobriu, também, que os atalhos, embora atrativos e aparentemente mais fáceis, tratam-se de armadilhas. “Tem que buscar (as coisas) com suor, da maneira certa”, reforçou. Por isso, de agora em diante, quer focar apenas no presente e no futuro. Ele não esquece, é claro, do passado, não por vontade de voltar, mas, sim, para nunca mais repeti-lo. “Eu estou só andando para a frente, nada de voltar para trás de novo”, garantiu. “Minha vida progrediu e as portas se abriram de novo”, concluiu.
Discriminação e falta de políticas públicas são os maiores problemas
Miraci Vieira Cugler considera que a reintegração social de egressos enfrenta dois entraves no Brasil: o preconceito e a falta de políticas públicas. Para ela, em Sorocaba, um dos problemas centrais é a ausência de um Escritório Social. Impulsionados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde 2016, esses equipamentos públicos oferecem serviços especializados de acolhimento ex-detentos e seus familiares. Segundo Miraci, a Coopereso poderia trabalhar em parceria com o órgão. Com isso, o auxílio aos atendidos seria ampliado.
Integrante da comissão de Direitos Humanos da subseção de Sorocaba da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcelo Savoi Pires Galvão, 41 anos, também aponta a carência de políticas como impasse principal. Segundo Galvão, a Lei de Execução Penal e outros dispositivos preveem a reintegração social de ex-presos. Contudo, acrescenta, eles não são efetivamente aplicados no País com a terceira maior população carcerária do mundo. São mais de 900 mil aprisionados, conforme dados do CNJ.
De acordo com o advogado, pela legislação brasileira, o preso tem direito a buscar emprego e educação mesmo enquanto estiver no sistema prisional. Ele explica que o objetivo é iniciar o processo de ressocialização antes mesmo de a pessoa deixar a cadeia. Porém, conforme o advogado, muitas vezes, os encarcerados não têm essas opções à disposição. Dessa forma, as dificuldades de reintegração surgem ainda na prisão. “A maioria dos estabelecimentos prisionais não tem condição de oferecer ensino ou trabalho para todo mundo que está lá dentro”, lamentou.
Ainda segundo Galvão, sem essas possibilidades no sistema prisional, ocorre a defasagem profissional. “Dependendo da área em que a pessoa trabalhava, tem alteração, surgem novas tecnologias, e ela não se atualiza”, disse. Para ele, isso, juntamente com o antecendente criminal, dificulta a reinserção do egresso no mercado de trabalho. Soma-se, igualmente, o fato de vários conquistarem a liberdade após muitos anos, com idade já avançada. Nesse caso, para o especialista, o ex-presidiário pode sofrer etarismo -- discriminação em razão da idade -- na hora de procurar emprego. “Quanto mais velho, mais difícil fica”, frisou.
Para mudar esse cenário, Galvão aponta como essenciais o desenvolvimento de ações de conscientização da importância de se dar oportunidades a egressos e de combate à discriminação. Nesse sentido, ele indica ser igualmente importante a criação de medidas, por parte do Poder Público, de incentivo à contratação deles. Como exemplos, cita o abatimento tributário e vantagens em licitações para empresas que tiverem ex-detentos em seu quadro de funcionários. Além disso, completa o membro da OAB Sorocaba, não basta proporcionar emprego; é preciso, também, prover qualificação e chance de crescimento profissional para ajudá-los a realmente mudar de vida. “Temos que dar uma chance para que ele (egresso) não volte para aquele lugar onde sempre tem uma vaga, que é o crime”, destacou. (Vinícius Camargo)
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