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Sorocaba

55 horas na UPH - da fila de espera ao heroísmo coletivo

11 de Julho de 2021 às 00:01
Marcel Scinocca [email protected]
Pacientes e familiares aguardam na recepção da unidade.
Pacientes e familiares aguardam na recepção da unidade. (Crédito: MARCEL SCINOCCA)

23h35 de sexta-feira, o dia é 26 de março de 2021. Na UPH da zona leste de Sorocaba, o movimento é intenso. O atendimento é relativamente rápido. Quem tem a situação mais crítica, em especial dores e falta de ar, precisa, na maior parte dos casos, ficar internado. O sistema de saúde de Sorocaba se mantinha à beira do colapso, com unidades de saúde lotadas, incluindo as particulares. Este é o início do relato de mais de 50 horas acompanhando a movimentação na unidade de saúde, uma das referências para atendimento às pessoas com sintomas do coronavírus na cidade.

Já na área destinada aos internados, há sons de todos os tipos, desde os humanos, como tosse, espirro, gemidos e choro, aos mecânicos, como o “oxigênio”, o filtro de água e o painel da recepção, que controla a peregrinação dos pacientes, e que pode ser ouvido em quase toda a unidade. Da avenida Nogueira Padilha, sirenes, buzinas e motores dão sua contribuição para a maratona acústica. No telhado, a chuva dá o tom e até encobre os demais barulhos. Mas ela passa e tudo volta ao normal, como num relógio, em constante mudança, mas sempre no mesmo movimento.

Os herois caminham por toda a parte, de verde ou azul. Alguns deles, entretanto, preferem o jeans e a camiseta. São os médicos, a maior parte, aparentemente, com menos de 40 anos. Independentemente da idade, das vestes, a dedicação não muda, nem deles, nem de outros profissionais.

É sábado (27 de março). O movimento segue intenso e constante, em todas as horas do dia, mesmo com a sensível redução durante à noite. Uma profissional leva aos enfermos os objetos enviados pelas famílias à Ouvidoria, órgão da Santa Casa. A Ouvidoria é a ponte entre doentes e familiares na UPH Leste e na própria Santa Casa. Roupa é o principal item recebido. Quando não são pencas de sacolas na mão, ou quando as duas mãos não vencem, um carrinho de supermercado auxilia.

Notável entre todos, pelo tradicional jaleco branco, Fernando Brum, o médico e diretor clínico da Santa Casa, entidade responsável pela unidade, caminha entre os pacientes. O olhar distante buscava alguma solução para amenizar o caos. Naquele domingo, a visita se repetiu. Durante à noite, 20 novos leitos foram anunciados para a unidade.

Sim, é um caos, que estressa, cansa e martiriza. Mas é um caos controlado, graças à habilidade dos guardiões da linha de frente. Não há tempo para descanso ou qualquer parada, por mais curta que seja. No quarto improvisado, o paciente precisa ir ao banheiro, na ponta do corredor, o outro precisa ser avaliado para alta. Há vários esperando medicação. O carrinho da sopa chega. A moça atenciosa chama um a um, até os dois andares com as marmitas se esgotarem. Pelo cheiro, parece bom, mas muitos ali não podem sentir, afetados temporariamente pela Covid-19, a doença provocado pelo coronavírus.

Os controladores de acesso parecem se acostumar com as atividades que vão além das suas obrigações. Além de abrir a porta e verificar a situação dos pacientes -- se estão entrando no local correto, por exemplo -- eles são um misto de psicólogos e advogados. Ouvem todo tipo de súplica e mazela, organizam, chamam os pacientes -- sempre pelo nome. Há ocasiões, ainda, em que eles intermediam crises. E se precisar pegar ou recolher a cadeira de rodas, eles vão. Se for preciso colocar copos descartáveis para os pacientes, eles colocam.

“Quer bolacha?”, pergunta a paciente, “almoçando” em uma unidade de saúde em pleno domingo (28 de março). “Não. Faz três dias que não estou comendo”, responde a senhora em tom de agradecimento. No domingo não se sabia o número de pacientes na unidade em fila de espera para leitos. No sábado, eram 58, arredondado de forma justa por uma funcionária, que relatava para uma colega 60. E tinha ainda mais gente na recepção.

Às 11h, já havia aglomeração de automóveis em frente à unidade. A maioria era de pessoas com sintomas gripais relacionados ao vírus. Uma mulher, com a permissão da ironia, viralizava com um vídeo ao reclamar das condições de um paciente, familiar seu. À noite, o prefeito Rodrigo Manga (Republicanos) foi ao local, acompanhado do secretario de Saúde, Vinícius Rodrigues, e do assessor Rodrigo Alcântara. A visita durou cerca de vinte minutos. Mais tarde, num alento ao afogamento de vagas, 60 novos leitos foram confirmados pela Prefeitura de Sorocaba. A fila, porém, tinha mais de 90 pessoas.

Como quem foi preparado para tal situação, os profissionais quase não revidam ou contra-argumentam desabafos e até desaforos. “Estamos fazendo o possível”, “não tem leito disponível‘ e “assim que tiver vaga, a gente avisa” é o que mais se houve. O nível do tom, de tão calmo, evita o revide.

Aliviado, o paciente que reclamava por estar acomodado em duas cadeiras, recebe alta. Vai se recuperar em casa. Foram mais de trinta horas nessa situação. Mas ele é só agradecimento. Antes de deixar a unidade, porém, ele deixa uma lição. Dois profissionais avaliam o vazamento de oxigênio em uma “estação” que atende dois pacientes. As saídas estão com fita crepe, aparentemente. Um brinca que é uma gambiarra necessária e que deu certo. Depois da saída deles, o homem corrige: “O nome disso é ajuste técnico. Precisa chamar assim.” Foi esse ajuste que ajudou esse senhor a se sentir melhor, até ir para a casa, segundo ele, com as filhas e a mãe.

O ajuste é alvo de fotos de uma funcionária. Provavelmente, se necessário, será feito em outro local. A expressão era de agradecimento e não de reprovação. Mais tarde, o ajuste técnico deu lugar à solução definitiva, com a troca do aparelho.

A limpeza também é constante e ininterrupta. Todos os profissionais colaboram de alguma forma. Uma moça chamada Vivi alcança, limpa e desinfeta corredores, objetos e equipamentos. Vivi não está sozinha. Ela é parte de um batalhão de incansáveis.

Não há TV na unidade. Celulares são liberados nesse estágio de internação. Os pacientes falam com seus entes, relatam suas agonias, fazem pedidos, transbordam esperança. Compõe o cenário, aparentemente, a voz de um pastor evangélico, ao som de fundo de “Ballade pour Adeline”, de Richard Clayderman. Se para uns irrita, para a maioria é um efeito sonoro bem vindo e necessário. Ninguém reclamou.

Frisa-se que esse ponto, relatado no texto, a área onde estivemos, não é o local onde estão, por exemplo, os pacientes intubados, que ficam em outro setor. Imaginem as cenas ainda mais heroicas que devem ser reproduzidas lá, dia após dia, momento após momento. Foram 55 horas na UPH Zona Leste, observando chegadas e saídas, sorrisos e lágrimas. Uma pequena amostra de quanto os profissionais envolvidos na saúde se dedicam para que toda a sociedade fique bem, em especial neste momento. (Marcel Scinocca)