Sepultadores se arriscam para enterrar mortos de Covid
O Cemitério Municipal Santo Antônio é para onde é levada a maioria das vítimas da pandemia, a qualquer hora do dia ou da noite. Crédito da foto: Fábio Rogério (29/6/2020)
“Muita gente até debocha, sente nojo, mas a gente está aqui correndo risco e nossa profissão continua desvalorizada”. É dessa forma que o sepultador Tiago Donizete Matias Maccari, 35, desabafa sobre a rotina dentro no cemitério municipal Santo Antônio, no bairro Wanel Ville, em Sorocaba. Os profissionais, que já foram chamados de coveiros no passado, convivem com a pior consequência da Covid-19, que é a morte, e passaram a adotar várias medidas de segurança.
Separados pelo portão do cemitério, a reportagem do Cruzeiro do Sul entrevistou três sepultadores e eles narraram a sensação de diariamente observar as vidas ceifadas pelo novo coronavírus. Com um trabalho de extrema necessidade, com ou sem a pandemia, os trabalhadores lamentam a invisibilidade da profissão.
Ricardo Aparecido Bernabé. Crédito da foto: Fábio Rogério (29/6/2020)
Ricardo Aparecido Bernabé, 37, foi contratado há dois meses, quando a pandemia já fazia vítimas em Sorocaba. Desempregado havia seis meses, ele não tinha experiência na função, já que anteriormente trabalhava como almoxarife. “Foi estranho no começo, mas é uma profissão importante e digna, a diferença é que a maioria das pessoas não reconhece que nós também estamos nessa linha de frente, assim como os profissionais de saúde, que são essenciais”, disse.
Tiago Donizete Maccari. Crédito da foto: Fábio Rogério (29/6/2020)
Já Tiago exerce a profissão no cemitério Santo Antonio há seis meses e conta que além de se proteger do vírus utilizando todos os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), tenta proteger também a mente. “É difícil não se abalar porque uma morte já é triste, mas do jeito que vem sendo é pior ainda. Às vezes as famílias ficam aqui no portão chorando e ver esse sofrimento abala muito.”
O medo, afirma, já virou quase um companheiro fiel, presente na maior parte do tempo. “Faz a gente querer se proteger ainda mais e é por mim, pela minha família e também pelos meus colegas de trabalho”, definiu o rapaz, que é casado e tem um filho de um relacionamento anterior. “Moro com a minha esposa e meus dois enteados, mas o meu filho mesmo eu não vejo desde que começou essa pandemia e é difícil lidar com essa saudade”, relatou o rapaz.
Bruno Rafael Lima. Crédito da foto: Fábio Rogério (29/6/2020)
Assim como Tiago, Bruno Rafael Lima, 30, também é pai e não vê os filhos há bastante tempo por segurança. “Vendo a consequência dessa doença, a gente fica mais cauteloso e todo dia, antes de sair de casa, eu peço a proteção divina”, disse ele, que é sepultador há três anos. Abraçar a família, conta o trabalhador, passou a ser um desejo constante, assim como a espera pela notícia do fim da pandemia.
Longa jornada
Os três profissionais atuam por 12 horas consecutivas, em esquema 12 por 36, no cemitério municipal que concentra os sepultamentos de casos confirmados ou suspeitos de Covid-19. Eles contam que embora não sejam religiosos praticantes, fazem suas preces por aqueles que enterram. “Antes as famílias acompanhavam, podiam fazer uma oração e agora é tudo muito solitário”, conta Ricardo, que explica sobre os atuais protocolos sanitários, com os corpos sepultados muito rapidamente, levando entre cinco e dez minutos.
Quando há sepultamento de pessoa que faleceu com suspeita ou confirmação de contaminação pelo novo coronavírus os profissionais são avisados pelas funerárias com pelo menos uma hora de antecedência. “Aí a gente já deixa tudo preparado para ser o mais rápido possível, para só levar o caixão lacrado até a cova e finalizar”, explica Tiago. Para o momento do sepultamento eles utilizam, além das luvas e máscaras, um macacão e botas impermeáveis e toda a roupa é lavada no próprio cemitério.
Bruno acredita que os protocolos alterados com a pandemia devem durar ainda por bastante tempo. “Acho que todo esse cuidado será permanente agora e talvez as pessoas passem a valorizar um pouco mais o nosso trabalho”, disse o funcionário.
Sepultadores enfrentam rotina de tristeza e riscos
Cícero e Gilberto não descuidam dos protocolos e do uso de EPIs. Crédito da foto: Fábio Rogério (30/6/2020)
Depois de deixar Pernambuco com sete filhos e a esposa, Cícero Severino de Oliveira, 59, passou a sustentar a família com o ofício de sepultador. Ele desempenha a mesma função há quase 26 anos no cemitério Pax, no bairro Árvore Grande. Na pandemia, conta, as mudanças foram muitas e conseguir “se colocar no lugar do outro para exercer o trabalho diariamente” tem sido a sua fortaleza. Companheiro de trabalho de Cícero, a história de Gilberto Aparecido Chambo, 47, não é muito diferente. “Diante da necessidade de colocar comida na mesa, trabalho como sepultador e mesmo com algumas pessoas diminuindo a profissão, ela é muito digna”, afirma.
Assim como nos cemitérios municipais, no Pax, quando há sepultamento de pessoa morta com suspeita ou confirmação de Covid-19, os protocolos de segurança são diferentes. “Usamos macacão descartável, óculos, luvas, botas, máscara e uma série de equipamentos”, conta Cícero. Ele relata que atualmente os filhos já estão todos crescidos e não moram mais com ele, que divide o mesmo teto apenas com a esposa. “Mas tenho os netos, que moram perto e são mais um motivo para eu me proteger ainda mais. Não quero levar esse vírus para a casa”, disse.
Ele conta que deixou a terra natal por dificuldades para conseguir trabalho e já tinha familiares em Sorocaba. “Eu não encontrava nada e aqui me deram uma oportunidade temporária que acabou sendo definitiva e criei todos os filhos com esse trabalho, que para muitos é motivo de constrangimento, mas para mim nunca foi problema”, conta ele que confessa nunca ter imaginado viver um período como o atual. “A gente sente medo, mas não pode ser fraco. Tem que tirar força dessa tristeza e seguir em frente.”
Já Gilberto chegou a Sorocaba em 2012, para que a esposa tratasse de um problema de saúde. “Comecei a trabalhar com construção civil, mas aí acabou o contrato e me chamaram para ser sepultador. Na hora eu achei estranho porque a gente cresce sentindo medo de cemitério, mas depois acostumei”, afirmou ele, que é pai de três filhos. “Quando eu chego em casa a criançada já vem correndo abraçar e eu preciso colocar um breque, tomar banho, trocar de roupa e aí sim fico com eles”, contou o trabalhador, que acredita que por presenciar a despedida solitária de vítimas da Covid-19 acaba tendo ainda mais cuidados com as medidas de higiene.
Doença contagiosa alterou protocolo de sepultamento
Médica infectologista Naihma Salum Fontana. Crédito da foto: Arquivo Pessoal
Os protocolos de sepultamento, destaca a infectologista Naihma Salum Fontana, foram modificados com o objetivo de resguardar a saúde de pessoas saudáveis, impedir a transmissão do vírus do cadáver para seus familiares e uma possível contaminação do solo e, consequentemente, dos lençóis freáticos. Ela destaca que até mesmo o tamponamento do corpo passou a ser realizado no leito onde ocorre o óbito, prática que já não ocorria há muitos anos. Tamponamento é o preenchimento dos orifícios naturais da pessoa com algodão e o procedimento é realizado para que gases, secreções e sangue não sejam liberados.
O cadáver, explica a médica, precisa ser envolvido em dois sacos impermeáveis, que são higienizados na parte externa, e seu sepultamento deve ocorrer em no máximo duas horas após o óbito. “Cada etapa no manejo do corpo é pensada para evitar a contaminação do meio ambiente e das pessoas que terão que lidar com aquele corpo, e devem ser estritamente seguidos para a segurança dos envolvidos”, alertou.
Além do uso indispensável de todos os equipamentos de proteção individual (EPIs), a desparamentação correta, pontua a infectologista, é fundamental, pois é nessa etapa que ocorrem a maioria das contaminações, com higienização das mãos entre cada retirada de equipamento.
Segundo a médica, a possibilidade de contágio por meio de contato com cadáver nas primeiras horas após o óbito é igual quando comparado a uma pessoa viva com o vírus. “O vírus permanece vivo por algumas horas no corpo do paciente, sendo passível de transmissão por contato ou permanência prolongada no local do óbito”, afirma a especialista. A proibição de visitas ao cemitério, além do risco de contaminação, acontece também para que o isolamento social seja respeitado. Naihma lembra ainda que no dia 13 de abril deste ano foi registrado, na Tailândia, o primeiro caso de infecção e morte por Covid-19 transmitida de um paciente morto a um médico legista. O caso foi relatado na publicação especializada Journal of Forensic and Legal Medicine.
Sobre a necessidade de impedimento de velórios, a infectologista explica que a medida de segurança é necessária, já que em um momento tão intenso, como a morte de um ente querido, os familiares e amigos estão especialmente fragilizados e emocionados. “Não há como garantir que, tomados pela emoção e intensidade do momento, não irão abraçar ou beijar o cadáver. O contato físico numa situação dessa é altamente provável que vá ocorrer, expondo-os ao vírus. Assim, a medida radical é necessária para evitar novos adoecimentos e novos óbitos, o que seria especialmente desastroso numa família que já está enlutada”, explicou.
Sepultamento 24 horas
Segundo a Secretaria de Serviços Públicos e Obras (Serpo), são 33 sepultadores nos quatro cemitérios municipais de Sorocaba: Santo Antônio; Consolação, Saudade e Aparecidinha. Desse número, 13 são de empresa terceirizada, como os ouvidos pela reportagem. Equipes de quatro funcionários se revezam no Cemitério Santo Antônio em turnos que ocorrem das 7h às 19h e das 19h às 7h, para que os sepultamentos ocorrem 24 horas por dia.
No Pax, conforme a administração do cemitério, os sepultamentos de pessoas acometidas pela Covid-19 podem ocorrer a qualquer hora do dia para atender as medidas de segurança sanitária. Em todas as madrugadas uma equipe fica de sobreaviso, em casa, e caso seja necessária abertura de jazigo e sepultamento, um motorista busca o trabalhador. (Larissa Pessoa)
* Até ontem, 139 pessoas haviam morrido em Sorocaba vítimas da pandemia causada pelo novo coronavírus.
Número de pacientes internados com Covid-19 cai para 81 em Sorocaba
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