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Direitos das PcD ainda são negligenciados

03 de Dezembro de 2020 às 00:01
Vinicius Camargo [email protected]

Edi Wilson Akira Nagatomo. Mônica da Silva Souza. Pamela Cristina Santos da Silva. Estes são apenas três dos nomes dos aproximadamente 172 mil sorocabanos que têm alguma deficiência. O número representa 26,4% da população total da cidade. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) e divulgados pela Coordenadoria de Desenvolvimento Social da Pessoa com Deficiência. Apesar de terem histórias e realidades distintas, uma causa une Edi, Mônica e Pamela: a luta pela inclusão. No Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, celebrado hoje, especialistas apontam o capacitismo, o preconceito e, sobretudo, a falta de políticas públicas como as principais causas das dificuldades enfrentadas pelas PcD.

Na cidade, a deficiência mais recorrente é a visual. Ao todo, 96.331 pessoas têm algum grau de dificuldade para enxergar. Do total, 2.516 têm cegueira completa. Na sequência, aparecem os problemas auditivos. Segundo o IBGE, 71.968 não ouvem adequadamente e 1.824 são surdos. Já as condições motoras aparecem na terceira posição, com 37.621 casos. Destes, 3.030 não conseguem se locomover. Por fim, as deficiências intelectuais atingem 8.896 moradores do município.

Carências

Apesar do grande número de PcDs na cidade, elas ainda não recebem o auxílio necessário e adequado para serem efetivamente incluídas na sociedade, avalia Andrielle Moraes, 42 anos, presidente do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de Sorocaba (CMPcD). Segundo ela, os problemas são observados em todos os âmbitos -- saúde, educação, mercado de trabalho, mobilidade e até na cultura.

Direitos das PcD ainda são negligenciados Andrielle Moraes preside o CMPcD. Crédito da foto: Acervo Pessoal

De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo (Sedettur), de todas as pessoas com deficiência, apenas 230 conseguiram emprego pelo Posto de Atendimento ao Trabalhador (PAT), entre 2019 e 2020. “Porém, em razão da pandemia, muitos acabaram perdendo seus postos de trabalho”, informa a pasta. Já em relação ao sistema educacional, há 906 estudantes PcDs matriculados na rede pública, desde o berçário até a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Para Andrielle, o déficit com maior urgência de resolução é na área de saúde. Hoje, afirma ela, faltam centros especializados no tratamento de PcD na cidade. Há, inclusive, carência de itens básicos para o atendimento a essas pessoas, como medicamentos, fraldas, dentre outros. Muitas vezes, para receber assistência adequada, os pacientes precisam se deslocar até unidades de saúde da capital. “A saúde é primordial. Para estar bem para trabalhar, para estudar e viver a vida em si, a pessoa precisa estar saudável”, completa.

Educação e trabalho

Na educação, o cenário é semelhante. As escolas públicas carecem de estrutura física acessível, profissionais capacitados e materiais para atender eficazmente essas pessoas. É preciso implementar, nas instituições, elenca Andrielle, tecnologias assistidas, qualificar os educadores e investir em instrumentos e metodologias adaptados de ensino. Os cursos devem estar disponíveis já nos primeiros anos escolares. Caso contrário, as crianças não desenvolverão a aprendizagem, nem serão incluídas. “O professor deve estar preparado para receber e acolher esse aluno, passar para os outros estudantes e para toda a escola sobre como deve ser esse acolhimento e saber inseri-lo no convívio social. Falta preparação para acolhimento e capacitação didática. Mas, esse atendimento não pode ser generalizado, e, sim, específico”, acredita.

A vice-presidente da Associação dos Deficientes da Região de Sorocaba (Aderes), Célia Regina Barbosa, 54 anos, diz que o ingresso de estudantes com deficiência nas instituições de ensino regulares está mais frequente. Contudo, esse aumento não indica a aptidão do sistema de ensino público para recebê-los. Pelo contrário. “Faltam avanços para o ensino público de qualidade no atendimento às pessoas com deficiência”, enfatiza.

Direitos das PcD ainda são negligenciados Célia Regina Barbosa, da Aderes. Crédito da foto: Fábio Rogério (2/12/2020)

Sem a educação adequada, na fase adulta, essas pessoas têm mais chances de enfrentar dificuldades no mercado de trabalho, diz Andrielle. Neste aspecto, a falta de preparo das empresas para receber empregá-las é outro entrave. Os impasses começam já na oferta das vagas em formatos aos quais as PcD não têm acesso. Depois, as contratantes restringem o tipo de deficiência aceita para cada vaga. E, mesmo quando finalmente conseguem emprego, ainda enfrentam barreiras. A falta de acompanhamento no desempenho das funções, das oportunidades de desenvolvimento profissional e de apoio são as principais, aponta a presidente do CMPcD. “Não é só colocar a pessoa na empresa. Ela precisa ter suporte e acompanhamento”, reforça. Andrielle defende, ainda, a capacitação profissional das PcD, com a oferta de cursos e incentivo ao empreendedorismo.

Lei de Cotas

O artigo 93 da lei número 8.213/91, conhecida como Lei de Cotas, determina que de 2% a 5% dos quadros de funcionários das empresas sejam preenchidos por PcD. O número varia de acordo com a quantidade de colaboradores. A determinação, afirma Célia, muitas vezes, não é seguida. Em outros casos, as vagas não são preenchidas devido à grande quantidade de exigência das contratantes. “Agências, empresas, lojas ligam aqui (na Aderes) e dizem querer contratar um deficiente. No entanto, pedem para não ser cadeirante, pois a função exige locomoção, ou não pode ter problemas nas mãos, porque precisará mexer no computador. Ou seja, só querem cumprir as cotas, e não têm a preocupação de inseri-las (pessoas com deficiência) no mercado”, salienta.

Além de tudo, hábitos simples, como passear pelas ruas da cidade e frequentar parques municipais, é um desafio para essas pessoas, lembram. A maioria das calçadas, ruas e prédios da cidade não tem recursos de acessibilidade, como rampas, ou apresenta problemas estruturais, a exemplo de desníveis e buracos. Isto dificulta a locomoção de pessoas cadeirantes ou com deficiências visuais. “Muitas vezes, elas sequer conseguem entrar em lugares públicos, supermercados, lojas, etc. Até transitar de um quarteirão para o outro parece impossível”, fala Célia.

Políticas públicas

Para Andrielle e Célia, a principal causa da recorrência dessas adversidades é, acima de tudo, a falta de políticas públicas para as pessoas com deficiência. “O poder público precisa conhecer mais de perto a realidade delas, ouvi-las diretamente e identificar as demandas mais necessárias. A partir daí, desenvolver ações efetivas e acabar, definitivamente, com essas dilemas na vida das PcD”. Entre as medidas, ela indica a constituição de uma secretaria da pessoa com deficiência. “Falta esse olhar de sensibilidade e de empatia dos gestores públicos para a pessoa com deficiência”, critica Andrielle. É igualmente necessária a mudança de comportamento social e a extinção do capacitismo (preconceito contra a pessoa com deficiência, que a considera incapaz para o trabalho, por exemplo), sugerem.

Inserção no mercado de trabalho configura-se um dos maiores desafios

Direitos das PcD ainda são negligenciados Mônica: psicóloga aprovada em concurso. Crédito da foto: Vinícius Fonseca (2/12/2020)

A psicóloga Mônica da Silva Souza, 32 anos, convive com a paralisia cerebral desde o nascimento e é cadeirante. Na infância e adolescência, estudou em escolas particulares. Teve o auxílio de cuidadores, professores preparados e toda a estrutura adequada à disposição. No período escolar, não enfrentou grandes dificuldades e o seu processo de aprendizagem foi efetivo. “Se hoje eu sou alfabetizada, foi devido ao trabalho dessas escolas”, diz. As boas oportunidades lhe permitiram chegar, inclusive, à universidade. Mônica se formou em psicologia em uma instituição particular da cidade, em 2011. O curso superior igualmente foi concluído sem problemas.

Contudo, após a formatura, a realidade mudou. As entrevistas para vagas de emprego eram raras. Quando conseguia algumas, não era aprovada. Foram mais de dois anos desempregada. “Eu sei, claramente, que não era contratada por ser deficiente não funcional (cadeirante), e não por incompetência”, conta. A oportunidade só veio no início de 2014, mais de dois anos após se formar. Ela começou uma pós-graduação e o curso lhe garantiu uma vaga no programa de residência da Universidade de Sorocaba (Uniso). Posteriormente, em 2016, finalmente conquistou uma oportunidade em uma clínica particular de Sorocaba. Mas o trabalho não estava dentro do esperado e, após muito estudo, ela foi aprovada em um concurso público em abril. Atualmente, atua como psicóloga em uma unidade de saúde de Votorantim. “Eu só consegui trabalho porque passei no concurso público. Se dependesse das empresas privadas, jamais conseguiria”, critica.

Mônica sabe que essa não é realidade de todas as PcD. “Eu só cheguei onde estou devido ao apoio dos meus pais. Algumas pessoas conquistam as coisas com muito mais batalha, enquanto outras nem conseguem.”

Habilidade nas mãos

Direitos das PcD ainda são negligenciados Edi, artesão e massagista, estuda pedagogia. Crédito da foto: Fábio Rogério (1/12/2020)

O artesão, massagista e estudante de pedagogia Edi Wilson Akira Nagatomo, 49 anos, se encaixa no primeiro caso descrito por ela. Nagatomo perdeu a visão há mais de 20 anos, em decorrência de atrofia ótica hereditária de Leber (doença ocular neurodegenerativa ocasionadora de cegueira). À época, ele tinha 28 anos. Antes de parar de enxergar, Nagatomo trabalhava regularmente, no setor industrial. Mas, junto com a cegueira, todas as portas se fecharam. Desde 2000, está desempregado. Já são 20 anos na informalidade. Para sobreviver, conta com a aposentadoria da esposa, o auxílio dos pais e a renda obtida com a venda de tapetes artesanais e a realização de massagens. Nesse período, foram inúmeros processos seletivos. Grande parte, sem resposta. Os seus cursos profissionalizantes e a capacidade parecem não ser levados em consideração, informa ele. “Fiz cursos, me atualizei, me aperfeiçoei, mas a sociedade não acredita que um deficiente visual possa trabalhar e contribuir com uma empresa”, diz. Não bastasse o descrédito, em algumas ocasiões, chegou a se sentir envergonhado. “Uma vez, a recrutadora do RH de um supermercado me perguntou se eu conseguiria ver a data de validade de um pacote de bolacha. Achei absurdo!”, relata.

Em 2019, Nagatomo iniciou a faculdade de pedagogia, para tentar melhoria de vida e ajudar o próximo, especialmente, as crianças. “Quando perdemos a visão, precisamos de um norte, de exemplos motivacionais. E, quando as crianças vêem que conseguimos trabalhar, estudar, ter uma boa vida, elas, com certeza, se sentem motivadas”, considera. Na faculdade, feita à distância, os problemas persistem. A plataforma não é adequada para deficientes visuais, assim como nem todos materiais são adaptados em áudio, explica.

Paixão pela dança

Direitos das PcD ainda são negligenciados Pamela quer oferecer dança inclusiva. Crédito da foto: Fábio Rogério (2/12/2020)

Na área de cultura e lazer, cujo intuito deveria ser promover a alegria e a diversão, as dificuldades para as PcD também não desaparecem. A dança é uma das paixões de Pamela Cristina Santos da Silva, 28 anos, diagnosticada na infância com paralisia cerebral. A cadeira de rodas não é um empecilho para a prática. Mas, por conta da falta de uma academia pública de dança inclusiva, não consegue, por vezes, fazer o que ama. Diante da falta de um local do tipo, ela pretende criar o seu próprio. “Eu quero fazer a diferença em Sorocaba e, também, no mundo”, projeta, esperançosa.

Um corriqueiro passeio nos parques da cidade, também opção de lazer, é grande desafio para os três. As complicações de mobilidade e acessibilidade nas calçadas, vias, guias e prédios impedem, por vezes, o desfrute desses momentos. “Sorocaba tem média de quase 80 mil deficientes visuais, e ainda não houve o planejamento das calçadas e das guias”, reclama Nagatomo. Ele já chegou a cair em calçada desnivelada, quase se chocou contra muro, porque o piso tátil estava erroneamente posicionado, e esperou longos períodos para atravessar ruas, pois os semáforos não tinham sinalizadores sonoros. Pelas mesmas razões, Mônica se locomove apenas de carro. Quando optar por sair a pé, não o faz sozinha, por receio. “No Brasil, ainda estamos ‘engatinhando’, começando a ter entendimento quanto à acessibilidade. Precisamos evoluir muito. A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) é maravilhosa, mas só falta ser colocada em prática”.

Políticas públicas não suprem todas as necessidades

Os governos municipal e estadual têm programas voltados às pessoas com deficiência, mas ainda há carências. Em Sorocaba, há a Central Intérprete de Libras (CIL), que promove a inclusão social de pessoas com deficiência auditiva e facilita o acesso a serviços. Intérpretes mediam a comunicação por meio da Libras, com tradução e interpretação.

O Centro de Convivência, na Vila Gabriel, oferece atividades de inclusão e os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) promovem atividades de convívio e inclusivas. Já o Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência (CMPcD) é canal para discussões e elaboração de políticas públicas.

A Urbes - Trânsito e Transporte oferece transporte específico para as pessoas com deficiência. A Universidade do Trabalhador (Uniten) oferece cursos profissionalizantes adaptados. E o Posto de Atendimento ao Trabalhador (PAT) atua junto às empresas para captar vagas no mercado de trabalho. Por conta da pandemia e de muitas pessoas com deficiência serem do grupo do risco, algumas atividades estão suspensas, enquanto outras acontecem virtualmente, informa a Prefeitura.

O governo do Estado também oferece o curso de Libras para formar intérpretes, com aulas gratuitas, na capital, interior e litoral. Também há cursos EaD de alfabetização digital, digitação, redes sociais e tecnologia e Libras. O programa Meu Emprego Inclusivo contribui para a formação e a educação dessas pessoas, com livros em formatos variados.

Há, ainda, o TeleApoio Tecnológico, que auxilia PcD no uso de recursos digitais. E o TeleApoio Emocional para acolher e orientar quem passa por problemas emocionais em razão da pandemia.

O projeto TODAS in-Rede, da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SEDPcD), incentiva o empoderamento das mulheres com deficiência, por meio do acesso à informação; trabalho, renda e independência financeira; exercício dos direitos afetivos, sexuais e reprodutivos; prevenção à violência; e autoestima e liderança.

O Polo de Empregabilidade Inclusivo (PEI), dentro do Programa Meu Emprego Inclusivo, propicia a inclusão e desenvolvimento profissional. O Centro de Informação à Pessoa com Deficiência oferece atendimento em quiosque na estação Tatuapé do metrô. Os serviços englobam intérpretes de Libras, pequenos consertos em cadeira de rodas, bengalas e recebimento de currículos para encaminhamento aos PEIs.

São Paulo tem, ainda, a 1ª Delegacia de Polícia da Pessoa com Deficiência, com equipe formada por psicólogos, assistentes sociais, intérpretes, sociólogo e técnico em tecnologia assistiva. Mais informações sobre a pessoa com deficiência estão na Base de Dados dos Direitos da Pessoa com Deficiência. (Vinicius Camargo)

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