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Crianças são flagradas trabalhando no semáforo em Sorocaba

02 de Julho de 2020 às 10:35
Ana Claudia Martins [email protected]

Garotos vendem pacotes de pipoca em um cruzamento na zona sul de Sorocaba. Crédito da foto: Vinícius Fonseca (30/1/2020)

Crianças e adolescentes continuam sendo explorados e vítimas de trabalho infantil, por meio da venda de doces, nos cruzamentos de algumas das mais conhecidas avenidas de Sorocaba. Na manhã de terça-feira (30), dois garotos vendiam saquinhos de pipoca no cruzamento da Antônio Carlos Comitre com as avenidas Washington Luiz e Barão de Tatuí, no bairro Campolim, na zona sul da cidade.

Segundo a Secretaria da Cidadania e Participação Popular (Secid), de janeiro a abril de 2020, foram identificadas 24 crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil na cidade, e 15 famílias atualmente são acompanhadas pelo Centro de Referência em Assistência Social Especializado. Já em todo o ano passado, levantamento da Secid apontou o total de 235 crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, inclusive nos semáforos.

Assim que o semáforo fecha para os automóveis, os garotos colocam os saquinhos de pipoca nos espelhos retrovisores dos veículos e correm contra o tempo quando conseguem vender alguns para receber o dinheiro e recolher o que sobrou da mercadoria oferecida aos motoristas. Segurando sacolas com os produtos, os garotos, um aparentando entre 10 a 11 anos e outro entre 12 a 14 anos, e usando máscaras de proteção facial, são observados a distância por alguns adultos. O que indica que os meninos são aliciados por adultos para vender os doces, ou seja, são explorados pelo trabalho infantil.

A mesma cena se repete com frequência em outros cruzamentos de importantes avenidas da cidade e em diferentes regiões de Sorocaba. A reportagem do Cruzeiro do Sul já mostrou flagrantes de trabalho infantil por várias vezes, em locais diversos da cidade, mas as crises econômicas e, neste momento, a pandemia acabam contribuindo para a prática da exploração do trabalho irregular de crianças e adolescentes.

Segundo a legislação brasileira, o trabalho infantil é toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida. No Brasil, é proibido qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos.

Pela manhã, enquanto os garotos vendiam os doces nos semáforos, no Campolim, uma viatura da Guarda Civil Municipal (GCM), estava estacionada próximo ao local, mas nada foi feito para impedir a prática do trabalho infantil. Aliás, o cruzamento da avenida Antônio Carlos Comitre, com a Washington Luiz e Barão de Tatuí é um dos principais pontos de trabalho infantil na cidade, e bastante conhecido do poder público.

A GCM foi questionada a respeito e esclarece que as ações de combate ao trabalho infantil são planejadas e orquestradas de maneira a não colocar a vida de crianças em risco de atropelamento, ao tentar fugir da viatura. A GCM já realizou inúmeras ações de combate a trabalho infantil e, inclusive, já apresentou esse tipo de ocorrência na Polícia Federal.

28 processos no Jeia

Um levantamento do Juizado Especial da Infância e Adolescência (Jeia), do Fórum Trabalhista de Sorocaba, de janeiro último, aponta que em 2019, até o mês de novembro, foram registrados 28 processos relacionados ao trabalho infantil. Os dados mostram que as vítimas têm entre 13 e 17 anos e em um dos casos o adolescente morreu enquanto trabalhava.

Do total de processos em andamento, 16 envolviam meninos e 12 apontavam garotas desempenhando funções irregulares. Além disso, dos 28 casos, dois estavam devidamente contratados como aprendiz, que é permitido a partir dos 14 anos, porém, os adolescentes foram vítimas de acidente de trabalho.

Já o juiz da 4ª Vara Trabalhista e diretor do Fórum Trabalhista local, Valdir Rinaldi, destaca que embora a aprendizagem seja permitida a partir dos 14 anos, há dezenas de atividades que não podem ser desempenhadas por menores de 18 anos por constarem na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, a chamada Lista TIP. “Nessa lista estão inseridas todas as funções que possam prejudicar a saúde, a segurança e a moral das crianças ou adolescentes, e isso inclui trabalho em altura, trabalho noturno e todas as atividades que tragam riscos operacionais”, explica o magistrado.

Em um ano, programa fez 400 abordagens

De acordo com dados recentes do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) de Sorocaba, no ano passado foram realizadas mais de 400 abordagens e 235 crianças foram flagradas trabalhando pelas ruas e avenidas.

Segundo a Prefeitura de Sorocaba, do total de casos identificados pelo Peti na cidade, 57% das crianças abordadas trabalhavam no comércio ambulante, outras 25% estavam nas ruas cobrando para olharem carros, enquanto 12% pediam esmolas. Foi identificado ainda que 6% das crianças flagradas realizava a coleta de materiais recicláveis.

Já o Conselho Tutelar de Sorocaba (CTS) afirma que em Sorocaba “é de conhecimento público e notório das autoridades (Ministério Público, Poder Judiciário, Poder Executivo, entre outros) a problemática envolvendo principalmente a “exploração de trabalho infantil” (venda de pipocas e outros) no cruzamento das avenidas Barão de Tatuí e Antônio Carlos Comitre. “Existe um processo de investigação e responsabilização de adultos que efetuam essa exploração em andamento junto a Polícia Federal, mas não temos informações atualizadas sobre o mesmo”, diz o órgão.

O CTS disse ainda que, “durante os anos de 2018 e 2019 foram realizadas diversas ações buscando coibir tal prática, de modo que as medidas sociais, que são aplicadas pelos Serviços de Assistência Social, assim como as medidas protetivas, que são aplicadas pelo Conselho Tutelar, se esgotaram”, aponta.

O CTS também afirma ainda que, “conforme fluxo estabelecido pelo Comitê Municipal de Enfrentamento ao Trabalho Infantil, a atuação primária nos casos de trabalho infantil deve ser realizada pelo Serviço de Abordagem Social. Na cidade de Sorocaba a entidade que firmou convênio com a Prefeitura de Sorocaba para a realização do referido serviço é o SOS Sorocaba”, destaca.

O gerente-administrativo do SOS Sorocaba, Vanderlei da Silva, disse que a entidade tem a parceria com a Secretaria da Cidadania e Participação Popular (Secid) e que mantém um veículo diariamente nas ruas da cidade para averiguar as denúncias recebidas de trabalho infantil. “Muitas vezes chegamos ao local e as crianças e adolescentes saem correndo e não temos como obrigá-las a entrar no veículo. E há adultos que são responsáveis por usá-los para o trabalho infantil”, destaca.

As denúncias ao SOS Sorocaba podem ser feitas pelo telefone 3229-0777, sete dias por semana, sendo de segunda a sexta das 8h às 22h, e aos finais de semana das 10h às 22h.

TAC quer erradicar trabalho infantil

Em fevereiro deste ano, a Prefeitura de Sorocaba firmou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT) para colocar em prática uma série de medidas, visando a erradicação do trabalho infantil na cidade.

O TAC faz parte de um projeto nacional do MPT, chamado “Resgate à Infância”, em que um dos eixos é dedicado à criação de políticas públicas em municípios brasileiros com o objetivo de acabar com o trabalho proibido de pessoas menores de 18 anos.

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) também é signatário do compromisso, na pessoa da promotora da Infância e Juventude de Sorocaba, Cristina Palma.

No documento, por exemplo, que é assinado pela prefeita Jaqueline Coutinho, ficou estabelecido que a Prefeitura de Sorocaba precisava implementar uma série de medidas e programas e destinar verbas suficientes para o combate ao trabalho infantil e adolescente, com atendimento das famílias cujos filhos estejam em trabalho proibido.

Além disso, em 90 dias, o município deveria realizar um diagnóstico do trabalho infantil em Sorocaba, identificando as situações de trabalho e mapeando os dados das vítimas, a serem repassados ao MPT. E a atualização do diagnóstico deve ser anual.

No mesmo prazo, o TAC determina ainda que o poder público faça parceria com entidades da sociedade civil e órgãos públicos (Conselho Tutelar, Assistência Social, Programa de Saúde da Família, Secretaria de Educação) para fazer a busca ativa de casos para identificar e fazer o resgate de pessoas menores de 18 anos em situação de trabalho proibido, por meio de equipes multidisciplinares. “O município deve garantir o atendimento por meio de “aparatos sociais”, como o Bolsa Família, Mais Educação, Escola em Tempo Integral, Aprendizagem Profissional, etc”, aponta o documento.

Conforme o MPT, o descumprimento do TAC resultará na aplicação de multa de R$ 1.000 por dia, para cada item descumprido.

Políticas públicas

Para o Conselho Tutelar de Sorocaba devem ser elaboradas políticas públicas que promovam a inserção dessas crianças e adolescentes em programas sociais que possam auxiliar suas famílias. Assim como promover a quebra do senso comum de que o trabalho infantil não causa prejuízos. “Quantas vezes já ouvimos “melhor trabalhar do que roubar e/ou traficar”, dizem os conselheiros.

O Conselho afirma ainda que os prejuízos do trabalho infantil para crianças e adolescentes não são, em muitos casos, percebidos em curto período de tempo. “Muitos acabam não atingindo níveis mínimos de escolaridade, o que acaba por perpetuar um ciclo que se repete nas famílias mais vulneráveis. A atuação do Conselho Tutelar se dá quando da não adesão da família aos encaminhamentos e orientações realizados pelos Serviços de Assistência Social, o que pode acarretar na violação dos direitos da criança e do adolescente”, diz o órgão.

O desembargador do Trabalho, João Batista Martins Cesar, afirma que em momentos de crise econômica aumenta a fragilidade das famílias e em consequência aumenta o trabalho infantil. “A questão do trabalho infantil nos nossos semáforos para também pela questão cultural, que eles conseguem vender os doces e o sorocabano compra. Infelizmente, isso é um grande problema em razão de ser uma criança vendendo, só que em muitos casos elas estão sendo exploradas”, aponta.