A história de um resgate que comoveu o mundo
O mundo e, certamente, os leitores do Cruzeiro do Sul, acompanharam o épico resgate dos 12 adolescentes, entre 11 e 17 anos, e seu treinador da caverna onde ficaram presos por 17 dias na Tailândia. Mas, mesmo a presença de mais de 1.100 jornalistas não foi suficiente para detalhar os acontecimentos. Parte deles permaneceu em segredo (por exemplo, o fato de os jovens terem sido sedados antes de serem retirados da caverna, por não terem tido condições de aprender mais que rudimentos de técnicas de mergulho, e para evitar o pânico); assim, fomos buscar informações com alguém que conhece o assunto. A história aconteceu entre os dias 23 de junho e 9 de julho.
Ricardo Perez, 45 anos, casado, é sorocabano. Foi cinco vezes campeão panamericano e sulamericano e tricampeão brasileiro de bicicross. Chegou a ser o terceiro melhor do mundo. É proprietário da Task, que desenvolve e fabrica equipamentos para resgate em altura e trabalhos verticais, onde funciona um dos melhores centro de treinamento do mundo em trabalho em altura, acesso por corda e resgate. É também um espeleólogo, ou seja, explorador de cavernas, e mergulhador.
O início
Para comemorar o aniversário de 17 anos de um deles, todo o grupo, que forma o time de futebol (os Javalis Selvagens) da pequena aldeia de Mae Sai, decidiu fazer uma visita de exploração à caverna Tham Luang, vizinha do lugarejo, já conhecida deles. Só que, dessa vez, decidiram ir, literalmente, mais fundo. Levaram lanches e, de tênis e com suas bicicletas, foram para a aventura.
Tahm Laung é uma caverna grande, com muitos túneis, parte deles inexplorados. Não há ali, como existe nas cavernas do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, guias treinados, regras de visitação, padrões de segurança. Você chega e entra. Foi que o grupo fez.
Entretanto, cavernas podem ser locais perigosos. Ricardo nos conta que "as cavernas, formadas pela infiltração de água que, lentamente, retira a terra, são facilmente inundáveis. E, para isso, não é necessário chover na entrada, basta que chova na região" -- e, nessa época do ano, chove quase todo o tempo e com muita intensidade. Assim, quando os garotos estavam lá dentro, a água começou a subir, cada vez mais, e eles foram entrando cada vez mais fundo, ficando isolados sobre uma ponta de rocha, um espaço com mais ou menos 4 x 4 metros.
O desaparecimento deles foi notado imediatamente por uma das mães, e o alarme chegou às autoridades e ao conhecimento público. Mergulhadores da Marinha são chamados, e outros, de várias nacionalidades, residentes na Tailândia, se oferecem como voluntários (e, logo depois, começa a chegar gente de todo o mundo...). Mas, somente 10 dias após o início das operações, é que os jovens são encontrados, por três mergulhadores britânicos, especialistas neste tipo de resgate. E, três dias depois, a tragédia. Um ex-militar tailandês, voluntário, morre numa passagem inundada. A partir daí, entidades internacionais, como a Federação Francesa de Espelossocorro e o Conselho Britânico de Resgaste em Cavernas, entram oficialmente na operação.
Ricardo diz que o resgate em caverna -- ainda mais subaquático -- "exige que todas as pessoas envolvidas sejam espeleólogos com vasta experiência. Foi possível ver, pelos vídeos e fotos, pelo tipo de equipamento, que, no início da operação, muitos dos envolvidos não eram espeleólogos". Ele explica que "o resgate submerso em cavernas obedece a algumas regras. Sempre se trabalha com quantidades de (cilindros de) ar com mais redundância que no mar, com sistema de iluminação avançado, em duplas, e sempre com uma corda-guia, para que você possa entrar em alguns locais e consiga voltar".
Frio e cheirinho de gente
Parte importantíssima é que o "controle emocional tem que ser muito apurado, porque uma pessoa, entrando num lugar desconhecido, sem conseguir sair, ou enroscando alguma parte do equipamento numa saliência, pode se desesperar. Por isso a necessidade de um companheiro."
"Pelas informações que nós recebemos da Federação Francesa, uma das equipes envolvidas, do ponto onde os mergulhadores entravam (na água), até o ponto onde os meninos estavam, eram mais ou menos mil metros, ou seja, mil metros de dificuldades, como ter que sair (da água), remover os cilindros (para conseguir passar por obstáculos), passar por locais estreitos e, com certeza, toda a movimentação de mais de 50 mergulhadores deixou a água com visibilidade zero. Tinham iluminação, mas não deviam ter um palmo de visibilidade."
E ele lembra a questão da temperatura . "Cavernas são ambientes extremamente úmidos. O ambiente onde eles estavam tinha, provavelmente, uma temperatura de 18, 19 graus, e na água, em torno de 15 a 16 graus." "Hipotermia é um problema sério. Mergulhadores usam roupas de borracha que é térmica, e tem variações de espessura. Em caminhadas em água ou em caverna, usa-se meia de borracha".
Fernando Raigal, mergulhador espanhol radicado na Tailândia e voluntário na equipe, contou ao UOL que "meus colegas relataram que a primeira pista que tiveram foi o "cheirinho de gente" que sentiram conforme se aproximavam dos meninos". Cheirinho de gente? o que é isso? Ricardo explica que os exploradores e os resgatistas "fazem as necessidades num saquinho e carregam na mochila. Penso que os meninos fizeram dessa maneira, na água ou na caverna mesmo". É bom lembrar que os jovens bebiam da água que pingava do teto...
E Ricardo acerta ao afirmar que era praticamente impossível eles terem ido tão longe sem algum tipo de iluminação. "Eles usaram algum sistema de iluminação, com certeza". Hoje sabemos que os jovens pouparam as baterias de celulares e lanternas.
Mesmo com iluminação, os "Javalis Selvagens" enfrentaram outra dificuldade -- a noção de tempo. Ricardo nos conta que "mesmo com iluminação, perdemos totalmente a noção do tempo. Quando levo pessoas para treinamento em caverna eu costumo perguntas se elas sabem há quanto tempo estão ali. E respondem que há 45 minutos, uma hora. E eu digo -- nós já estamos aqui ha 12 horas!".
Eficiência e planejamento
Uma operação dessas exige rigorosa eficiência e planejamento. Ricardo explica que há um método adotado internacionalmente. "Chamamos a isso de Sistema de Comando de Incidentes; nele há um posto de comando e existem áreas de atuação - Planejamento, Operações, Finanças e Logística, cada uma com um líder. Esse Sistema nasceu na Califórnia, nos grandes incêndios florestais na década de 60. Quando chegam recursos como alimentos, bombas de remoção de água (no caso da Tailândia), etc., isso vai para Logística. Especialistas, para Planejamento; mergulhadores e especialistas em caverna, Operações".
"A chefia desse Sistema de Comando de Incidentes fica com a autoridade local. Em São Paulo, por exemplo seriam os Bombeiros. Mas, existe compartilhamento de informações na Base Operacional. Os ingleses, os franceses, os norte-americanos, todas as pessoas que ajudaram nesta operação, estavam na Base, mas a ordem final era dos tailandeses. Em Sorocaba seria o 15º Batalhão de Bombeiros."
Mergulhadores profissionais, de várias nacionalidades, residentes na Tailândia, imediatamente se ofereceram para ajudar. Gente que estava de férias, médicos e outros profissionais, a mesma coisa. Alguns, meteram-se num avião e foram para lá imediatamente.
Como funciona esse apoio? De duas maneiras. "Algumas pessoas -- conta Ricardo -- ficam sabendo e vão por vontade própria, isso acontece muito. Mas, com certeza, a Federação Francesa só foi ao local com um pedido de ajuda formal. No início, os tailandeses não quiseram pedir ajuda. Eles acreditaram que não teriam nenhum problema -- assim como os meninos também acreditaram ao entrar na caverna que não haveria risco nenhum".
A morte do voluntário tailandês mudou isso. "As associações de resgate podem ajudar, mediante solicitação formal, para que as equipes possam se deslocar e entrar no país como um ato de ajuda, e aí muda o tipo de operação. Ministérios do Exterior dos dois países entrando em contato um com o outro, formalizando o pedido, se acertam as condições, às vezes o país solicitante custeia esse deslocamento. tudo isso é negociado quando se pede ajuda de forma oficial".
No Brasil, um problema desse tipo é bem mais difícil de acontecer. "Nós, em Sorocaba, estamos a três horas de uma das regiões com o maior número de cavernas do mundo, que é o Petar; lá existe, sim, organização. Núcleos para visitação, com regras. Gente com recursos humanos, um histórico de quase 50 anos de exploração de cavernas aqui na região, e muito conhecimento. Nessa região temos grupos de monitores Já treinados, com enfermeiros, voluntários, equipamentos. em Apiaí temos um Corpo de Bombeiros especializado em resgate em cavernas. Temos no Estado e no Brasil como um todo, treinamento e equipes especializadas, com treinamentos frequentes e tecnologia de ponta."