Buscar no Cruzeiro

Buscar

A força para superar a dependência química

21 de Julho de 2018 às 15:07

Daniela Jacinto - [email protected]

Você já tentou parar de beber por uma semana ou mais, mas só conseguiu por alguns dias? Tomou um trago pela manhã nos últimos 12 meses? Teve "apagamentos" durante uma bebedeira? Se essa reportagem está começando com muita pergunta pra você, segura mais essa: Já pensou que sua vida poderia ser melhor se você não bebesse? O Mix falará um pouco sobre essa droga lícita e também sobre as ilícitas, mas mais do que dizer sobre seu poder destrutivo, a ideia é mostrar que a dependência química pode ser superada, desde que se queira e tenha em mente que basta viver um dia de cada vez. Os grupos Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, entre tantos outros que existem, podem te ajudar com isso. A reportagem mostra um pouco sobre como são as reuniões e apresenta depoimentos de quem conseguiu dar a volta por cima. Conforme eles disseram, a meta é só por hoje. Você consegue!

Alcoolismo é doença 

O alcoolismo é a incapacidade de controlar a ingestão de álcool devido a dependência física e emocional. Consumir bebidas alcoólicas em excesso aumenta o risco de pressão alta, diabetes, AVC e insuficiência cardíaca. Pode gerar danos ao fígado, ao coração e ao cérebro. Também é maior a tendência à depressão, mas de acordo com um novo estudo, publicado no periódico científico Lancet Public Health e realizado na França com mais de 1 milhão de adultos que têm esse problema, beber em excesso pode aumentar o risco de desenvolver demência.

O primeiro passo para evitar tantos danos à saúde, e claro, a morte, é admitir a impotência perante a bebida. Admitir que a vontade de beber se tornou incontrolável. É o que orienta o grupo que mais ajuda as pessoas no mundo a superarem essa doença: o Alcoólicos Anônimos, conhecido pela sigla AA.

Sim, foi falado doença. Desde 1967, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o alcoolismo uma doença e recomenda que as autoridades encarem o assunto como questão de saúde pública. Ainda conforme o órgão, o Brasil é o 3º com mais mortes causadas pelo álcool nas Américas, seja por problemas de saúde ou acidentes de trânsito relacionados à embriaguez.

O álcool é uma droga como a heroína, a cocaína, o crack e outras, porque vicia e altera o estado mental da pessoa que o utiliza, causando mudanças no comportamento e sofrimento a todos aqueles que cercam quem o consome. E foi por terem tido problemas com a bebida que os amigos Bill Wilson, corretor da Bolsa de Valores de Nova Iorque, e Robert Holbrook Smith, um médico cirurgião, fundaram nos Estados Unidos o grupo de Alcoólicos Anônimos (AA) há 83 anos. Os resultados foram tão positivos que a ideia se espalhou e hoje o AA atua em cerca de 180 países.

Sorocaba conta com seis endereços, que podem ser vistos no quadro. Para participar das reuniões, não é preciso pagar nada, tampouco assinar lista, nem fazer cadastros ou fornecer informações. O nome usado, se assim a pessoa desejar, pode ser fictício. Há apenas um único requisito para ser membro do AA: o desejo de parar de beber. Como o alcoolismo não tem cura, a única alternativa é estacionar a doença, por meio da abstinência. A sugestão dada pelo grupo é evitar o primeiro gole.

No AA, a ajuda é mútua e acontece de forma muito simples: ouvindo e aprendendo uns com as experiências dos outros. R.*, membro da entidade, afirma que o programa de recuperação é dividido em doze passos e o primeiro deles é reconhecer a doença. "Somos uma irmandade de homens e mulheres. Ali compartilhamos a experiência que temos", explica.

De acordo com R., "ninguém se torna alcoólatra da noite para o dia". "Eu não sabia que era doente alcoólico. Eu levantava tremendo, aí falavam "toma uma que passa"", recorda.

Chegou um momento da vida de R. que pensava que todas as coisas de ruim só aconteciam com ele. "Perda do emprego, da moral, esposa e filhos envergonhados...", lamenta. "O álcool hoje é a primeira doença que mais mata, mais causa acidentes. Nunca vi álcool e sucesso andarem juntos. Nunca vi alguém beber e ter sucesso na vida."

R. conta que as pessoas o aconselhavam a beber menos. "Mas o alcoolismo é a doença da negação, que todos escondem. Eu colocava bala de hortelã na boca achando que isso iria disfarçar", diz, acrescentando que aos poucos foi percebendo que sua vida na família e na sociedade estava se tornando insuportável. "Em todas as empresas que trabalhei fiz meu chefe chorar. Eu já chegava cheirando bebida. O AA surgiu para resgatar as pessoas que estão na sarjeta. Eu vim de lá."

R. lembra do passado, mas não sofre por ele duas vezes. "Refiz minha vida, recuperei a família. Consegui me aposentar, comprar casas... Existe uma saída, mas depende da pessoa. Hoje, não é que eu não possa beber, é que eu não quero. Foi a decisão que tomei, de evitar o primeiro gole. Hoje sou feliz." A família do alcoólatra, assim como acontece em qualquer outra dependência química, também adoece e precisa de ajuda, por isso R. afirma que há um grupo, o Al-Anon que trabalha com a família no mesmo conceito de grupo encontrado no AA.

'Por que não posso beber?' 

Foi por causa dos problemas no trabalho e também com a família que D.* procurou ajuda. "Comecei a beber cachaça com 10 anos de idade. Mas quando completei 36 anos de casado, percebi que estava perdendo a minha família", desabafa. Por outro lado, ele pensava: "Por que não posso beber? Eu trabalho, eu tenho direito."

Um dia, D. diz que admitiu para si mesmo que tinha perdido o domínio de sua vida. "Eu pensava por que Deus não me fazia parar de beber? Eu não sabia que eu que tinha de aceitar e procurar ajuda." A essa altura, ele já tinha se prejudicado também profissionalmente, lembra. D. trabalhava como motorista e foi detido dirigindo embriagado. "O álcool me tirou muita coisa", conta, emocionado.

Então, foi internado em uma clínica. Lá, recebeu conselho que era para sair da clínica e ir direto para o grupo do AA. "Não adianta parar de beber e ir jogar truco com os colegas no bar", diz.

Parar de beber não é fácil, comenta. "Em casa a gente não tempera salada com vinagre, tudo que é derivado é problema." D. afirma que começou a fazer palestra, manter a mente ocupada. "Hoje sei comer um churrasco sem bebida", comenta, feliz com a sua recuperação. "Até a fé que tenho agora é diferente. Eu sei o que eu passei e se voltar a beber, sei onde vou parar."

O AA, diz, salvou sua vida e sua família. "Eu e minha esposa estamos hoje melhor do que quando casamos", afirma, todo feliz. Agora o propósito de D. é levar uma mensagem para quem está sofrendo. "O segredo é você amar a si mesmo."

* Por fidelidade ao anonimato exigido pelo programa, os nomes dos entrevistados são preservados.

 - ERICK PINHEIRO

- ERICK PINHEIRO

'As pessoas precisam saber que existe um lugar que pode salvar vidas'

"Não estamos interessados no que ou quanto você usou, quais eram os seus contatos, no que fez no passado, no quanto você tem ou deixa de ter. Só nos interessa o que você quer fazer a respeito do seu problema e como podemos ajudar". Essa é a filosofia do grupo de Narcóticos Anônimos (NA) de Sorocaba. Conforme H.*, que faz parte do subcomitê de relações públicas do grupo, o recém-chegado é a pessoa mais importante em qualquer reunião.

Inspirado nos Alcoólicos Anônimos, o NA também tem os 12 passos, as 12 tradições, que se refere à preservação dos grupos, e os 12 conceitos, que são voltados ao direcionamento ao serviço abnegado. O NA, diz ele, não combate e não faz prevenção às drogas, é para quem quer a recuperação. É preciso ter o desejo de parar de usar. "As pessoas precisam saber que existe um lugar que pode salvar vidas", afirma H.

Outro membro do grupo, o gerente industrial A.*, de 44 anos, contou para a reportagem a sua história. Ele disse que é um adicto em recuperação. "Essa é uma doença progressiva, incurável e fatal, que leva à morte", alerta. A recuperação, diz, começa com o pedido de ajuda. No grupo, os membros partilham conquistas e desafios. "Juntos somos mais fortes."

Durante as reuniões, não é mencionado nome de droga ou de bebida. "É a primeira tradição nossa para quem quer se recuperar. Ficar ouvindo gera mal estar, mas todas as experiências são respeitadas."

A. afirma que está limpo há seis anos, seis meses e 16 dias. "O dia mais importante para mim é hoje. Cheguei aqui falido fisicamente, mentalmente, espiritualmente, emocionalmente", lembra.

No estado físico que se encontrava quando foi pela primeira vez na reunião, alguns membros do grupo choraram e o abraçaram. "É muita dor. Eu estava com 48 kg, o rosto ferido pela alergia às drogas e cabelo comprido. Parece que eu estava assumindo que tinha perdido, para começar a ganhar."

A. conta que já tinha tentado se livrar das drogas antes, mas as entidades que procurou não foram tão eficazes para ele quanto o NA. "Quando comecei a ouvir as partilhas, vi que eram histórias pessoais e não conselhos. Aí passei a entender o que estava acontecendo comigo e comecei a ter esperança."

Ele conta que ficou um tempo indo às reuniões, mas convivendo com o medo que algo atrapalhasse sua ida, sua tentativa de melhorar. "Fiquei nove meses sem faltar nenhum dia. Até que parei para pensar até quando vai ser só isso minha vida?", disse.

Foi com o tempo que as coisas voltaram a acontecer para A. "Voltei a ter emprego, casei de novo, e minha mãe está muito feliz de ver minha vida hoje." Sobre os 12 passos, que é a base do grupo, ele afirma que contém princípios importantes pois falam de honestidade, mente aberta, prece, meditação, e espiritualidade. "Mas não é religioso", afirma.

A. afirma que hoje consegue se sentir útil, parte da sociedade. "Posso contribuir com meu trabalho. O grupo me trouxe senso de disciplina e está me devolvendo a um estado de espírito que é de sanidade. Encontrei equilíbrio físico, emocional", comenta, acrescentando que a doença o tinha tornado uma pessoa com "certa inabilidade em viver e aceitar a vida como ela é". "E isso gerou em mim um defeito de caráter, porque eu queria ser uma pessoa que eu não era. A droga me ajudava a achar que eu era aquilo só que virou, as drogas passaram a me usar e eu fazia de tudo para consumir mais."

Por causa das drogas. A. perdeu o primeiro relacionamento. "Mas hoje sou referência positiva para meus filhos. A mãe deles me respeita muito, conversa comigo sobre as crianças, pede ajuda para mim. A irmandade me devolveu o amor próprio. Dor partilhada é dor diminuída."

Ele, que perdeu um irmão para o vício, já viu bem de perto a morte. "Eu estava apenas há 10 meses limpo quando isso aconteceu. Senti muito porque tentei ajudá-lo e não deu. Nesse dia estava doendo demais e pensei muito em usar de novo, mas consegui ir para a reunião."

A. acredita que muitos não querem largar das drogas porque temem a depressão e têm medo de lidar com o rastro todo do passado, de encarar as coisas que fizeram de cara limpa. Mas é algo que vale a pena.

O NA, diz ele, continua sendo a melhor parte da sua vida. "Hoje tenho amigos, bom emprego e minha esposa está grávida. O que mais quero é dividir. Só eu sei a dor que eu passava, a vontade de me matar. Agora a cada dia vou dormir com a certeza que fiz o meu melhor."

* Por fidelidade ao anonimato exigido pelo programa, os nomes dos entrevistados são preservados.

Aplicativos auxiliam na recuperação

Na internet é possível encontrar dicas de aplicativos que ajudam dependentes químicos em seu processo de recuperação e melhora da autoestima. Basta digitar nas buscas, mas uma dica com relação ao alcoolismo é este site, onde constam 12 opções: https://bit.ly/2N7SGzd. Já para quem quer superar os problemas com drogas, vale a pena conhecer "Eu me importo", que acessa mais de 1.000 endereços de grupos de apoio e unidades de saúde que existem nas imediações de onde você estiver para o tratamento da dependência química. Há outros como "My Journey", "Posso ajudar" e "Socorre-me".

Cuidar do outro é uma forma de cuidar de si mesmo

De acordo com Angela Cristini Gebara, doutora em psicologia clínica pela USP e professora coordenadora da pós graduação lato-sensu em Psicologia na Unip, a essência desses grupos é a ajuda mútua. "Cuidar do outro é uma maneira de cuidar de si mesmo. Deste modo, a qualidade da compaixão promove a cura daquele que tem e daquele que recebe", resume.

Angela afirma que a avaliação da dependência pode ser dividida em duas etapas: a fase diagnóstica e a de tratamento. Conforme ela, a dependência pode estar associada a outras patologias psiquiátricas, que devem ser identificadas e tratadas. "O diagnóstico diferencial irá determinar o tratamento e o prognóstico. A causa pode ser multifatorial; estar associada a condições de saúde, fatores genéticos, psicossociais, afetivos e ambientais."

Quando há uma comorbidade, o que não é incomum, a exemplo uma depressão, fobia social ou ansiedade, esta deve ser devidamente tratada, por meio das possibilidades dentro do sistema de saúde, diz a psicóloga.

Angela ainda observa que a participação em grupos ajuda porque o objetivo das reuniões é a (re) construção da identidade, em que os participantes podem se conhecer como "doentes em recuperação", em oposição a ideias pejorativas de "bêbados" e "cachaceiros", no caso do alcoolismo, ou "nóias" e "drogados", no caso das substâncias ilícitas.

Grupos do AA em Sorocaba

- Além Linha: Rua Olegário Ribeiro, 40, Vila Fiore. Terça e quinta, às 20h

- Central Parque: Rua Luiz Fernando de Carvalho, 401, Central Parque. Sexta, às 20h

- Bom Jesus: Rua Péricles Pilar, 80, Vila Hortência. Quarta, às 19h30

- Central Sorocabano: Rua Cel. Cavalheiros, 282, Centro. Segunda a domingo, 19h30

- Central do Éden: Rua Bonifácio Oliveira Cassú, 751, Éden. Terça e quinta, às 20h; domingo, às 9h

- Al-Anon - Santa Rita (famílias): Rua Bartolomeu de Gusmão, 333, Vila Santana. Segunda, às 20h

Telefones para contato: (15) 3232-1646, 99645-1410 e 98177-2195.

No site www.alcoolicosanonimos.org.br tem mais informações e um chat, intitulado Amigo Anônimo.

Grupos do NA em Sorocaba 

- Mosteiro de São Bento: Rua Newton Prado, 326, Vila Hortência. Vários horários: manhã, tarde e noite (verifique pelo telefone 99793-8553). Aos domingos tem reunião aberta, às 18h

- Mosteiro Central: Largo São Bento, 86, Centro. Terça e quarta, às 20h; quinta reunião aberta às 20h; sexta 22h; sábado 18h

- Vitória: Rua Luiz Fernando Carvalho, 28, Central Parque. Vários horários: verifique pelo telefone 99793-8553

- Princípios: Rua Oswaldo Gonçalves dos Santos, 97, Parque das Laranjeiras. Terça e quinta, às 20h

- Esmeralda: Rua Vitor Cioffi de Luca, 140, Jardim Santa Esmeralda. Quarta, às 20h

- Quinta Tradição: Rua Otaviano Felix Pereira, 10, Aparecidinha. Terça, às 20h

- Nar-Anon (famílias): funciona nos grupos Mosteiro Central e Vitória

Linha de ajuda: telefone (15) 99793-8553 (WhatsApp).

Mais informações no site www.na.org.br.