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Quatro olhos e uma canção

23 de Novembro de 2018 às 00:01

Quatro olhos e uma canção Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

A primeira vez que identificou a necessidade de usar óculos foi aos 7 anos, na escola, quando tinha que se levantar da cadeira e deixar o fundo da classe, onde se refugiava da timidez incurável, para se deslocar à frente e poder enxergar a lição na lousa.

Aos 8 anos começou a usar os óculos. Difícil adaptação. Algumas brincadeiras se tornaram complicadas. No futebol, o maior risco era tomar bolada na cara e ter quebradas as lentes e a armação, o que significaria prejuízo para os pais.

Ainda na escola aconteceu o primeiro bullying. “Quatro olhos”, alguém gritou em tom de esculhambação. Queixou-se ao pai, que o aconselhou a reagir com indiferença. Impossível. Olhar feio para o autor do bullying, disposto a resolver o problema no braço, foi a melhor saída. Foi assim que aprendeu a lição de que habitualmente os agressores de todo tipo são movidos por doses ocultas de covardia.

Na adolescência, quando começou a ser rejeitado pelas garotas do ginásio e do ensino médio em investidas mais platônicas do que qualquer outra coisa, achou que a culpa era dos óculos. Mulheres não gostam de caras de óculos, pensou. O acessório lhes dá a aparência de seres estudiosos, legais, boas praças, qualidades excludentes quando a questão é o poder de atração sobre a alma feminina. E ele se firmava no exemplo de que os Dom Juans da história nunca usaram óculos.

Então, para melhorar as chances com as garotas, trocou os óculos por lentes de contato gelatinosas. A substituição lhe custou a cifra equivalente a um salário do seu trabalho como auxiliar de escritório. Mas a novidade durou pouco, no máximo três semanas. Estava no período em que as lentes eram usadas duas, três horas por dia, como forma de adaptação.

Nesses dias, a lente do olho direito se desprendeu por conta de uma irritação na retina. Soltou-se no ar. Ele não conseguiu segurá-la devido ao tamanho minúsculo e ela caiu em meio à água corrente da guia da calçada por onde passava naquele instante. Frustrado, foi obrigado a render-se de vez ao uso dos óculos.

Outra vez, experimentou não usar os óculos na balada. Sua teoria de que os óculos eram os maiores inimigos na hora de tentar atrair a atenção de uma garota era agora uma fixação. Mas, sem os óculos e na pouca iluminação de balcões, corredores, escadas e pistas de dança das casas noturnas, tinha dificuldade para decifrar os olhares das mulheres. E a linguagem do olhar é absolutamente tudo na arte da sedução. Desde então, os óculos voltaram a acompanhá-lo também nas baladas.

Nessa época, os Paralamas lançaram o sucesso “Óculos”. A identificação foi instantânea. Sentiu que não estava sozinho. A canção fazia crer que havia uma confraria de caras de óculos marcados pelo mesmo turbilhão de tensões. Na letra da canção, o cara perguntava à garota por que ela não olhava para ele, por que ela dizia sempre que “não”, e ele respondia que não nasceu de óculos, que não era assim. O mais incrível era que o público feminino gostava da canção, apesar do tom de lamentações da letra. Talvez porque a melodia fosse contagiante.

Tempos depois, quando trabalhava numa fábrica, ganhou o apelido de “Zé do Ocro”. Também achava que os óculos eram positivos somente como instrumentos de auxílio à leitura, atividade que desde a infância era sua verdadeira paixão. Mas, coerente com as suas ideias, rejeitava o uso dos livros como arma de sedução ou compensação para o poder depreciativo dos óculos. Mulheres não gostam de literatura, filosofia, essas coisas, pensava. Nem de poesia, nem de flores, alertava uma voz interior.

Passaram-se os anos. A hipermetropia e o astigmatismo se mantiveram e por isso os óculos nunca saíram da sua cara. Apesar dos temores e inseguranças, descobriu que algumas mulheres (iluminadas, generosas) não faziam restrição aos homens que usam óculos. Sem dúvida. Os óculos não impediram que curtisse alguns amores, com tudo o que continham de alegrias e de amarguras. Casou, teve filhos, descasou. Perdeu-se em utopias e entrou em rotas de colisão que resultaram em novas desilusões.

Hoje, as tensões de outros tempos estão superadas. Os óculos fazem parte da sua identidade. Principalmente agora, que o glaucoma prejudicou a visão do olho direito. Se antes os óculos eram necessários, agora são imprescindíveis.