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Peregrinos urbanos

24 de Agosto de 2018 às 08:53

Peregrinos urbanos Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Eram outros tempos, mas o drama permanece o mesmo. Sair de casa todos os dias em fevereiro de 1980 para procurar emprego e voltar abatido, sem nenhum resultado, era uma desilusão cortante. Imagens recentes de longas filas de trabalhadores para a disputa de vagas nos grandes centros do Brasil fazem recordar aqueles dias sombrios e dão a sensação de que o País retrocedeu quase 40 anos.

Mudaram as ferramentas de interação com o mercado de trabalho. Redes sociais facilitam a troca de informações. Mas o contato pessoal ainda faz toda a diferença nas relações em que a tecnologia por enquanto não substituiu totalmente o trabalho humano. E isso ainda requer longas jornadas cidades adentro.

No fim de 1979 eu concluí o ensino médio. Em fevereiro de 1980, aos 18 anos, eu acabava de ser demitido de uma indústria metalúrgica em Jandira, na Grande São Paulo, onde morava. A frustração foi indescritível. O País atravessava uma crise terrível e as dificuldades de recolocação eram enormes.

Sem emprego, não mudei meus horários. Continuei a sair de casa às 6h da manhã e procurava emprego de porta em porta até às 13h, horário em que os departamentos de recursos humanos deixavam de atender para o almoço dos funcionários.

E à tarde eu não voltava para casa. De onde estivesse, ia para a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, onde lia até à noite. Só então voltava para casa. Morava com meus pais. Nos primeiros dias não lhes contei sobre a demissão e a nova rotina. Tive medo da reação deles. A bronca seria severa. Deixar de contribuir com a renda familiar era uma falta grave porque as consequências tinham impacto na diminuição de recursos para a sobrevivência diária.

E eu também sentia vergonha. Ter emprego com carteira assinada era um valor social de grande importância. Ser mais um desempregado, tanto para a família como para os vizinhos, era uma desvalorização que fazia o infeliz sofrer preconceito, deboche, exclusão. A sensação de desamparo era medonha.

O segredo da minha demissão durou pouco. Dias depois, meus pais desconfiaram da irregularidade de horários que marcavam o meu retorno para casa e eu tive que confessar a verdade. Descrevi a rotina intensa de bater de porta em porta nas fábricas, transformando em trabalho o desafio de procurar um novo emprego.

Eu não tinha profissão definida e isso dificultava as coisas. Procurava vagas de ajudante geral, auxiliar disso, aprendiz daquilo. Nessas condições, era como ir para a guerra sem o devido preparo. Se para os profissionais com experiências comprovadas a batalha já era difícil, imagine para um candidato sem treinamento.

Eu estava disposto a aprender as funções pretendidas, mas isso era inútil. Empresa não é uma escola técnica, mas unidade de negócio, e os profissionais que ela admite têm que estar qualificados. O erro tático do despreparo prolongou a agonia diária na luta por uma vaga que não acontecia.

De janeiro até julho percorri fábricas, outras unidades de serviços e agências de emprego nas cidades de Jandira, Barueri, Carapicuíba, Osasco, São Paulo. Imaginei a alternativa de sair do País, mas com que dinheiro? Habitualmente andava só com a passagem de trem. E continuava a me refugiar na biblioteca a partir do meio da tarde e até à noite. Os livros eram uma válvula de escape.

E eu procurei tantos empregos, preenchi tantas fichas como candidato às vagas disponíveis, andei por tantos bairros operários, criei tantas expectativas. A falta de resultados me levou ao desalento. Um dia, diminui a frequência das jornadas, porque também começou a faltar o dinheiro da passagem de trem.

Nesse período, às vezes eu ficava em casa. Meus pais, pressionados pelas dificuldades, continuavam a me cobrar uma definição. Isso tornava o clima lá em casa asfixiante. E eu saía para vagar sem rumo pelas ruas de qualquer lugar. Sem poder contribuir com a renda familiar, tinha até vergonha das despesas que dava como um peso para a família.

Numa segunda-feira, quando as esperanças estavam zeradas, eu preenchi mais uma ficha numa fábrica de produtos de carvão da rua Mofarrej, na Vila Leopoldina, e fui chamado para uma vaga de ajudante geral. Minha reação foi um suspiro pelo alívio de uma dor cruel, a dor do desemprego.

Agora empregado, voltei a contribuir com o sustento da família. Meus pais, que eram evangélicos, compararam o novo trabalho a uma bênção de Deus.