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Os vivos e os mortos na esquina do mundo (I)

21 de Fevereiro de 2020 às 00:01

Os vivos e os mortos na esquina do mundo (I) Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Carlos Araújo - [email protected]

Que Kafka tenha construído labirintos que nos ajudam a entender quem somos hoje e que Poe tenha criado o terror que inspira os nossos pesadelos, não há sombra de dúvida. Que esses dois profetas do apocalipse da existência revolucionaram a literatura, também não há dúvida. A novidade é que eu os vi ontem à noite e, uma vez que eles fugiram quando me aproximei, volto agora ao lugar onde isso aconteceu para tentar reencontrá-los. Se tiver sorte, desta vez não vou perdê-los de vista.

Ontem, alta noite, eu acabava de sair de um bar e voltava a pé para casa porque o último ônibus já havia passado e o próximo horário seria só no começo da manhã. Numa esquina, vi dois homens parados. Conversavam. Atraíam a atenção pelas roupas. Em plena noite de verão, vestiam sobretudos de lã escuros e usavam chapéus de feltro.

Entre apreensivo e ansioso, retardei o passo. Fui andando devagar. Quando estava bem perto, eles voltaram os rostos para mim e nesse instante os reconheci. Eram Poe e Kafka, sem dúvida.

Eu parei por um instante. Foram frações de segundo em que perdi a fala. Foi tempo suficiente para Poe e Kafka interromperem a conversa, dobrarem a esquina e desaparecerem na rua escura. Num impulso, corri pela rua na tentativa de encontrar sinal deles, mas foi inútil.

Lamentei a minha reação. Eu deveria ter mantido o controle emocional na hora em que os vi. Deveria ter corrido imediatamente para eles e tê-los segurado pelos colarinhos, pelos punhos, sei lá. Não deveria jamais tê-los deixado fugir. Mas tenho que admitir que não é possível ter controle emocional diante de fantasmas. E eram os fantasmas de Kafka e Poe, os autores que marcaram a minha vida desde a infância, lá se vão cinco décadas.

O encontro seria um acaso? Não existe acaso, já dizia Borges. O que acontece é a convergência de direções que se cruzam num mesmo ponto e à qual damos o nome de acaso.

O que Kafka e Poe conversavam? O que vieram fazer aqui? Tramavam uma conspiração? Retornaram ao mundo dos vivos para conhecer a internet? Por que escolheram esta cidade para visitar, e não outro lugar do planeta? Por que se deixaram descobrir por mim?

Se fossem vistos pela polícia, poderiam ser abordados como suspeitos de crimes. Imagino os dois tomando uma geral da polícia, sem serem reconhecidos. Seria estranho. Se fossem flagrados por agentes de órgãos de inteligência, poderiam ser classificados como terroristas. Seriam presos, interrogados, talvez se confessassem culpados por terem rompido tradições literárias e criado obras originais.

Será que tramavam novos ataques à literatura? Bem, de certa forma já fizeram isso quando criaram obras como “A metamorfose” (Kafka) e “O corvo” (Poe). E a humanidade nunca mais foi a mesma.

Confesso que eu gostaria de não ter conhecido as obras deles. Impossível ser feliz depois de se perder nos labirintos que eles criaram. Eles desnudaram o nosso ser como agentes do absurdo e do terror da existência. E não conseguimos ignorá-los, pois eles nos fizeram reféns de suas teias.

Diferente da filosofia, notável pelo campo das perguntas, a literatura oferece respostas, habitualmente desagradáveis, grotescas, infames. Ter conhecido Poe e Kafka por meio de suas obras também tem suas vantagens. Eles fizeram com que as pessoas perdessem a inocência. Aprendemos com eles que, enquanto pensamos que somos boas criaturas, também somos capazes de cometer as piores atrocidades.

Agora, volto à esquina de ontem à noite. O que me anima é a suspeita de que o bandido retorna sempre ao local do crime. Pode ser que Kafka e Poe retornem e desta vez permitam que eu faça parte da conversa.

Estou escondido atrás de uma parede. A noite está como a de ontem. Faz calor. Uma corrente de ar prenuncia chuva. As condições são propícias para que eles reapareçam. Só me resta aguardar que isso aconteça.