Na contramão dos clássicos (II)
Crédito da foto: Arte Lucas Araújo
Carlos Araújo - [email protected]
Apesar dos clássicos e também pelo que eles significam como fontes de inspiração, o importante é que novos produtos continuam a dar as caras nas artes deste mundo árido, frio, distópico. O mesmo processo se repete nas ciências, nos esportes, na cultura pop. Nessa equação, o que move os aprendizes a continuar produzindo suas criações se o que fazem pode não ter nenhuma importância perante as obras-primas dos grandes mestres?
O amigo Giuliano Bonamim, com quem iniciei essa conversa e que rendeu a crônica da semana passada, observa, por exemplo, que todo escritor quer ser lido. Tenho dúvida. O escritor não tem garantia de que alguém vai ler o que produz e isso não o impede de ir adiante e contar histórias. Mas sou obrigado a concordar que no fundo ele deseja ser lido e essa pretensão pode ser um estímulo.
Outro amigo prefere acreditar que o fator de incentivo é a pretensão de usar a obra como arma de sedução no perigoso território do amor. Nesse raciocínio, a ideia é que uma obra bem feita pode atrair holofotes sobre o autor e, como efeito, pode despertar especial atenção por parte da musa que arrebata o seu coração.
Engano. Porque, ao menos no campo dos livros, literatura não é arma de sedução nem aqui nem na China; muito ao contrário. Apesar das histórias que usaram esse artifício. Um caso famoso é o do norte-americano Francis Scott Fitzgerald. Aos 23 anos, ele insistiu para um editor publicar o seu primeiro romance, “Este lado do paraíso”. Achava que com a publicação da obra conquistaria o coração de Zelda Sayre, jovem ambiciosa por quem era apaixonado. O projeto deu certo, mas não pelo livro em si, e mais pelos frutos decorrentes da obra: o escritor ganhou fama e dinheiro e se casou com Zelda.
Uma amiga, Daniela Jacinto, rebate a ideia de que os clássicos possam inibir autores e artistas iniciantes em suas áreas de atuação. Ela acha que nomes como Shakespere e Machado de Assis, embora sejam cânones de reconhecida importância, não esgotam a criatividade e as possibilidades de novas obras de grande impacto.
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Como prova do seu raciocínio, Daniela cita a canção “Romaria” que começa com os versos “É de sonho e de pó / o destino de um só”. Acredita que só a sensibilidade artística de quem viveu o tema da canção pode ter criado esta maravilha de poesia. E ela acrescenta que um universo cultural dominado pelos clássicos não impediu o surgimento de poetas como Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade -- que, por sua vez, também se tornaram clássicos.
Drummond mostrou ao mundo o poema “A flor e a náusea”, que celebra o fenômeno de que “uma flor nasceu na rua!” e diz que ela “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Um poema que, como metáfora, captou o espírito do nosso tempo. Do tempo de intolerância em que vivemos. E não por acaso. Tanto no passado como no presente, a sociedade sempre foi intolerante, violenta, excludente. E a arte de Drummond desnuda o nosso pesadelo, ao mesmo tempo em que propõe uma alternativa na suave figura da flor em meio à secura do asfalto selvagem.
Citando os sambas cariocas, Daniela também sugere imaginar se os sambistas dos morros, autores de verdadeiras obras-primas, fossem pensar em Shakespeare, Machado de Assis, Balzac, nos momentos de composição de suas letras e melodias. E ela lembra que entre eles houve casos em que muitos venderam seus sambas a preços de banana, cedendo a glória da autoria aos compradores em nome da sobrevivência.
Nessa linha, ela acrescenta: “Ainda bem que pessoas simples não se comparam, porque quando a gente se compara, quando a gente pensa, a gente deixa de ser a gente e de produzir o nosso melhor. Ainda bem que temos grandes poetas, simples, que desconheciam isso (referência ao poder inibidor dos clássicos)”.
Como exemplos de composições antológicas, não posso deixar de pensar em Nelson Cavaquinho, o compositor de “A flor e o espinho”: “Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor.” Daniela cita a poetisa Cora Coralina, que toca o universo com a sua simplicidade. Na literatura, recordo “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus, um tapa na cara de nossas certezas e utopias.
Apesar dos clássicos, a roda da criatividade continua em movimento. As obras-primas podem servir de inspiração, mas não devem ser copiadas. Haverá sempre novos caminhos a serem percorridos. Que o digam Raduan Nassar, Milton Hatoum, Márcia Denser, Clarice Lispector e tantos outros autores e artistas que nos encantam e nos deconcertam o tempo todo.