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Leões do Facebook

28 de Setembro de 2018 às 11:06

Leões do Facebook Arte: Lucas Araújo

O incêndio do Museu Nacional capturou o espírito do tempo que marca o Brasil em 2018. Um tempo em 3D de desesperança, descrédito, desconfiança. Feitas as contas, o fogo desconstruiu toda ilusão possível nesses tempos de crise. Nenhuma ideia iluminista é superior à força das cinzas.

O fogo parecia o símbolo de um país que perdeu o rumo. Duzentos anos de história e ciência extintos em poucas horas. Era como se o tempo ganhasse uma nova dimensão, em forma de chamas. Um tempo intocável, incompreensível, indiferente à sensibilidade humana.

O choque de um país inteiro foi dilacerante, mas revelador de uma hiprocrisia coletiva. Não dá para entender a desproporção entre os lamentos de agora e o desleixo a que o museu era relegado antes de ser consumido pelas chamas.

O país não liga para a sua história como quer fazer crer agora, após o incêndio trágico. Não há como esperar o zelo de uma sociedade por seu passado se ela não cuida nem do seu presente e não dá nenhuma importância às projeções para o futuro.

No presente, o país piora no ensino de português e matemática; tem índices de homicídios superiores aos de países em guerra e muitas das vítimas são jovens, negros, favelados; tem desemprego altíssimo; tem muitos outros patrimônios abandonados. esquecidos ou reduzidos ao pó; tem falta de controle sobre doenças de outros tempos e que retornaram; tem promessas que foram feitas há muitos anos e que continuam na ordem do dia porque o país perdeu o bonde da história.

Isto é o presente. E o país o contempla com a mesma impotência com que se deparou com as chamas do museu. Como se, tal como aconteceu diante das chamas, não houvesse mais nada a fazer.

E o futuro que sairá disso tudo, como será? A sociedade brasileira tem o hábito de esconder o passado. E muitas vezes usa o fogo deliberadamente. Rui Barbosa mandou queimar arquivos da escravidão negra no fim do século 19. No início dos anos 2000, o prédio do Carandiru foi destruído para dar lugar a um jardim. Nos municípios, o desaparecimento de muitos patrimônios é mistério ligado a todo tipo de interesses.

Sem o passado preservado e sem os cuidados com o presente, o futuro é condenado à crise de identidade e destinado à repetição de erros da memória extinta. A indiferença é tão acentuada que o mais provável é que em pouco tempo a tragédia do museu caia no esquecimento. Coisas de um país sem memória.

Há quase cinco meses um edifício em São Paulo foi destruído pelo fogo com saldo de vítimas fatais e famílias desabrigadas. Ocorreram comoções de primeira hora e até o presidente da República visitou o lugar, tendo sido recepcionado com protestos e obrigado a fugir amparado por seguranças. Hoje ninguém fala mais nisso. Nesse conjunto de tragédias, o desastre ambiental de Mariana ainda causa indignação.

De susto em susto, o pior é que a sociedade não aprende as lições das catástrofes. O inconsciente coletivo se manifesta em críticas, mas a repercussão não vai além dos revolucionários de redes sociais. Se não forem convocados pela mídia, mão se habilitam a sair do conforto da postagem virtual.

Governos ruins existem por cumplicidade ou omissão dos homens. Não adianta culpar só os poderosos. A indiferença dos brasileiros com os marcos nacionais também é responsável pelas chamas que destruíram o museu.

Chorar diante das cinzas não recupera tudo o que foi destruído. Criticar, ficar chocado, esbravejar após o desastre não é compensação para a indiferença que provoca esse tipo de horror.

Só falta saber onde será o próximo incêndio. Há muitos outros museus e incontáveis patrimônios ameaçados. Qualquer um deles, como alvo da indiferença brasileira, pode ser o próximo a pegar fogo.

Patrimônios em ruínas deveriam ser tratados como escândalos nacionais, mas só causam choque quando são devorados pelas chamas. Agora falam em gastar milhões para a recuperação do museu. As ruínas deveriam ser preservadas como prova da nossa incapacidade de preservar a história.

Depois que o fogo arrasa tudo, não adianta rugir como leões do Facebook, como revolucionários de mesa de bar ou como inspiração de cronista perdido em dúvidas e incertezas.