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Holocausto negro

22 de Novembro de 2019 às 00:01

Holocausto negro Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Carlos Araújo - [email protected]

Racismo é, antes de mais nada, um ato de covardia. Ataques racistas habitualmente são disparados quando o covarde se sente protegido pelo grupo. Ou quando se esconde na terra de ninguém das redes sociais. Às vezes ele é flagrado por câmeras ou alvo de denúncia por parte da vítima e testemunhas. Racismo é um problema da condição humana, independentemente da cor da pele.

Pensei em não tocar nesse assunto. Mas o tema me persegue, me faz sofrer desde a infância e é impossível ignorar essa dor universal nesses dias de homenagem a Zumbi dos Palmares, o maior herói negro do Brasil.

Racismo é um problema doloroso demais. Lugares de fala não conseguem dar conta de tamanha tragédia. A sociedade brasileira é farta em discurso e nobre em lamentar feridas abertas, mas é frágil em admitir responsabilidade.

Há anos, neste espaço, contei que convivi na infância com o problema do racismo nas relações familiares. Meus avós paternos eram racistas. E isso não era visto como escândalo. Era encarado com normalidade absurda.

E eles eram pessoas que, contraditoriamente, tinham grandes qualidades. Meu avô era excelente contador de histórias, minha avó era cozinheira de mão cheia. Mas isso não os absolvia. E o preconceito que manifestavam influenciava o comportamento de outros parentes.

Escrevo com dor no coração e na alma. Meu avô chegou ao cúmulo de ofender com frequência minha mãe, descendente de indígenas, com a denominação em tom preconceituoso de que ela era a “nega” de Loro -- apelido do meu pai. Minha avó, que tomou conta de mim em certo período dos meus 4 ou 5 anos enquanto minha mãe trabalhava como empregada doméstica, uma tarde me deu uma surra de chinelo na bunda porque eu desobedeci a ordem de não brincar com coleguinhas de uma casa vizinha. A família vizinha era negra. Minha mãe chorou quando viu as marcas do chinelo. E nos dias seguintes, como num ato de rebeldia inconsciente para a idade, continuei a frequentar o quintal da família vizinha onde eu me divertia com brincadeiras, cães e gatos, galinhas, música, alegria.

Em outra ocasião e lugar, meu avô estendeu uma estopa em cima do muro de uma casa vizinha, ampliando a altura do muro para impedir o contato visual com os vizinhos negros. E quando meu irmão mais novo nasceu, um tio escreveu para meus avós uma carta com uma frase inicial terrível: “Nasceu o filho de Loro: é branco.” A cor clara da pele do bebê foi o primeiro motivo de comemoração, acima da saúde da criança e da mãe.

Em outro momento, uma das filhas de meu avô (minha tia) casou com um homem negro. A família ficou dividida e o genro só foi aceito após longo tempo de turbulência. Eram frequentes entre alguns familiares descrições racistas como “negro de alma branca” e anedotas de igual gravidade. Um respiro era saber que meus pais combatiam esse tipo de tragédia familiar com repreensões severas.

Sem dúvida, o racismo não é somente reflexo de uma escravidão de Estado, mas também do preconceito de pessoas e famílias. Esse é o peso de quase 350 anos de escravidão no Brasil. Em seu livro “Escravidão Volume I”, o jornalista e escritor Laurentino Gomes informa que o Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental por quase três séculos e meio: “Recebeu, sozinho, quase 5 milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América.”

Chegaram 10,7 milhões à América e 1,8 milhão foi o número de mortes na travessia. Cardumes de tubarões seguiam navios negreiros. Gomes calcula que essa mortalidade foi equivalente a 14 negros lançados ao mar todos os dias durante todo o tempo da escravidão. E o Brasil foi também a nação que mais tempo resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir oficialmente o cativeiro no continente americano.

A leitura do livro provoca instantes de nó na garganta e lágrimas. É uma narrativa para sensibilidades fortes. Esses dados comprovam que houve um holocausto negro unindo a África, o Brasil e toda a América e essa dimensão catastrófica é ignorada pela história oficial.

Nenhum país passa por essa brutalidade impunemente. Nenhuma sociedade. Nenhuma família. Passado e presente se fundem como reflexo da crueldade humana. É como se precisássemos de uma nova Abolição.

Sempre houve escravidão, no Brasil e no mundo inteiro, desde os tempos mais remotos. E a servidão humana continua presente nas relações de dominação econômica, social, política.

Em 1988, em entrevista a este repórter por ocasião de reportagem para o Cruzeiro do Sul sobre o centenário da Abolição, o sociólogo Clóvis Moura, em visita a Sorocaba, decretou a sentença que mais traduz essa situação dramática: “Nós temos uma verbalização democrática e um subconsciente racista.”