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Esta noite no sertão

11 de Abril de 2019 às 23:33

Esta noite no sertão Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Carlos Araújo - [email protected]

Meu nome é João José da Silva, tenho 50 anos e sou caminhoneiro. Em trinta anos de estradas, conheci todo o Brasil e vi e vivi coisas de arrepiar por esse mundão afora, desde contatos com assombrações até o dia em que fui vítima de assalto seguido de sequestro. Mas nada mais extraordinário do que esta noite em que presencio um encontro de Machado de Assis, João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos.

Passa da meia-noite. O local é o interior de um bar perdido na curva de um caminho perdido na caatinga. Os três grandes escritores brasileiros estão reunidos em torno de uma mesa mal iluminada, oculta por uma coluna de sustentação do imóvel. Eu me aproximo e me escondo atrás de um balcão. Contenho o impulso de anunciar a minha presença. Não há mais ninguém no ambiente. Minha ansiedade é ouvir o que dizem e transmitir o assunto da conversa, como faço agora.

-- Estou angustiado com o Brasil -- diz Machado de Assis. -- Sinto as pessoas aflitas com o presente e incertas quanto ao futuro. Na verdade, parece que não saíram do passado. Muita gente continua com a alma no século 19 e até antes, embora o corpo esteja no século 21.

-- Na queda, os estragos são sempre proporcionais ao abismo -- filosofa Graciliano Ramos. -- Os brasileiros atingiram avanços da modernidade. Viveram a ilusão de vitória nos campos da ciência, da engenharia, da medicina, da tecnologia, e isso é motivo de comemoração. Mas se deram conta de que não conseguem barrar os desastres ambientais, a violência urbana e rural, a polarização que transforma amigos em inimigos e destrói as relações humanas. Não há alegria que consiga resistir a tantas frustrações.

-- Todo esse universo atualiza “Os Sertões” de Euclides da Cunha, o livro que é uma síntese do Brasil, arcaico e moderno -- compartilha Guimarães Rosa. -- Eu criei uma obra que amplia o clássico de Euclides e identifica o sertão de cada um. E o sertão do indivíduo traduz o Brasil, um país incompleto que marcha no rumo de um destino imprevisível. O sertão está em cada um de nós e ele se descortina como um labirinto com poder de desafiar os historiadores e surpreender os brasileiros. O Brasil é o reflexo de sua história e não há como querer que o resultado seja outro.

-- Certamente -- concorda Machado de Assis. -- O problema é que muita gente mede o Brasil pelos signos da beleza, glória e poder das grandes potências. Não há como querer que tenhamos a Torre Eiffel, se o nosso símbolo é o Cristo Redentor. E nós também temos as nossas glórias, desde as riquezas minerais às maravilhas ambientais da Amazônia, do Pantanal, da Serra do Mar. Os russos têm a taiga, nós temos a caatinga, o pampa, o cerrado, a mata atlântica. E no quesito das grandes cidades, entre Nova York, Londres e Paris, nós temos o Rio de Janeiro.

-- E olha que o Brasil não se resume ao Rio -- observa Graciliano Ramos. -- Outras capitais brasileiras são igualmente fantásticas e entre elas eu cito a minha Maceió e também Fortaleza, Salvador, Recife, Manaus, Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Aracaju e tantas outras cidades. Cada uma com vocação diferente, tradições e culturas populares diversificadas, inspiradoras de poetas e artistas, talhadas para encantar os mais exigentes turistas do mundo. E toda essa cultura já produziu tanta coisa boa, da Bossa Nova ao Carnaval, do Cinema Novo à Tropicália, da criação de Brasília à velhinha de Taubaté do Veríssimo.

-- E por que um País magnífico como esse continua mergulhado num clima de tanta angústia? - pergunta Machado de Assis.

-- É o sertão, meus caros amigos, o indomável e indescritível sertão -- sentencia Guimarães Rosa.