Copa da vitória e da derrota
Carlos Araújo
Vitória e derrota são os extremos de maior impacto na Copa do Mundo da Rússia. Vibrações em alta voltagem. A vitória se traduz em gritos de alegria, enquanto a derrota se manifesta no silêncio da dor. Multidões buscam o prazer do triunfo e fogem da tristeza provocada pelo fracasso. É como se os dois fenômenos opostos disputassem um campeonato à parte.
No final, a disputa termina com uma única seleção campeã. E fica pelo caminho uma legião de perdedores. Pode parecer contradição, mas a derrota é superior à vitória em vários aspectos. E o principal deles abrange o grande e vasto número de inscritos pela natureza das competições como destinados a fazer parte da categoria dos mais fracos e abatidos.
Indecifrável e estranho é o mundo. Imprevisíveis e contraditórias são as criaturas. Em choque com os discursos humanistas, solidários, fraternos, ninguém gosta de derrotados. Nem os próprios perdedores se suportam. Reagem em busca de superação. Focam em milagres que possam levá-los ao poder e à glória. Ninguém, em sã consciência, aceita a queda como destino e vocação.
Mas as duas vertentes se impõem, cada uma à sua maneira. Vitória é sonho, felicidade, fantasia marcada por símbolos de superioridade. Derrota é destino, realidade, ferida aberta e jamais cicatrizada. A primeira é seletiva, privilégio de poucos, armadura de nobres e poderosos. A segunda é abrangente, condenação de multidões, irmã da perdição e da travessia no deserto. Uma explode em festa e comemoração com abraços, sorrisos, champanhe; a outra se recolhe em humilhação, lágrimas, clima de velório.
O vitorioso é admirado, exibido como exemplo a seguir e imitar, entra para a memória humana e tende a jamais ser esquecido. O fracassado, por sua vez, não é símbolo para nada, raramente é lembrado e habitualmente cai no esquecimento, no abandono, no desamparo, só sendo reconhecido pelo cão vira-lata quando por alguma sorte inútil o encontra caído na sarjeta.
E os dois grupos são diferentes também na forma, no conteúdo, na embalagem. Conflitantes na ideologia, na identidade cultural, na história, assumem posições inimigas, irreconciliáveis, intocáveis. Odeiam-se. Desprezam-se. Impossível se amarem. Não possuem nada em comum, a não ser a implacável sentença da finitude da qual ninguém escapa.
Os vencedores são destinados ao mando, pois desenvolvem a capacidade de governar e preservar interesses. Aos vencidos, coitados, cabe o papel da submissão e da ideia de que a fragilidade é uma condição natural do ser.
Os que mandam têm comportamentos estranhos. Nos EUA, aprisionam filhos de imigrantes ilegais, o que ganha contornos de calamidade humanitária. O Brasil dá sua contribuição matando suas crianças com balas pedidas em violentas operações de forças de segurança justificadas como ações de combate à violência. Nos dois casos, os vencedores compartilham a cartilha do instinto selvagem. Os vencidos choram e enterram seus mortos em covas de sete palmos cobertas de montes de terra.
A publicidade busca quem vence, porque criaturas dessa categoria são ícones para negócios e para o giro do dinheiro. Ao contrário, quem se arrasta no chão ainda encontra um lugar, um lugar na sensibilidade da arte, um espaço no campo minado da literatura, um mirante no indescritível território de indagações da filosofia.
Nessas seara (que são reflexos da sociedade), todas as possibilidades abrem espaços para o fortes e os fracos, representantes de uma e outra classe de criaturas. Se Shakespeare explorou os poderosos na sua arte de decifrar a humanidade, Dostoiévski (um escritor russo) desconcertou a indiferença do mundo com os dramas dos "humilhados e ofendidos". Nos dois extremos, tudo é humano, tudo é mistério.
Se há redenção? piedade? trégua? Não, não há. Por isso é que as válvulas de escape são acionadas com tanta sofreguidão. Válvulas de escape como carnaval, novela da Globo, futebol. Fantasias, crer em magia, consultar o horóscopo. Tudo isso é necessário para encarar a loucura do cotidiano estilhaçado pelas perversões entre violência e derrota. A vitória é festejada com música; a derrota é um silêncio sepulcral.
Essa é a Copa do Mundo que não está só nos estádios da Rússia: ela avança, penetra e se agita no corpo e na alma de cada torcedor pelo mundo a fora.